Para que servem nossas ficções
Recentemente, tenho ouvido
argumentações simplistas acerca das ficções e suas funções; tenho até falado em
aula e em palestras sobre as funções da arte e da literatura para esclarecer...
Porém, às vezes, é um texto escrito que, de verdade, me salva. E salva (e
organiza) as minhas ideias.
Penso que, talvez, seja essa
ignorância uma consequência da falta de discussão na escola e nas universidades
e faculdades sobre o papel das ficções nas nossas vidas – no fim, o que estamos
fazendo é reduzindo o currículo escolar a aprendizados técnico-científicos (que
são valiosos, é claro), mas que diminuem nossas percepções de outros campos os
quais ampliariam nossas visões e nos fariam mais completos.
Diferentemente dos animais,
que vivem em apenas um lugar – o peixe vive na água e a girafa, na savana –,
nós, seres humanos, vivemos em dois ambíguos “habitats”, o concreto e o
abstrato; somos seres biológicos e sociais, se é que essa última palavra nomeia
a questão. Recentemente, alguém me disse que um ser humano é feito de células,
e eu retruquei:
– Eu pensei que fosse de
histórias...
Pois é assim que penso: nossa
vida se faz de histórias: as que vivemos, as que contamos e as que nos contam e
que se entrelaçam com as nossas e viram nossas, porque nos ajudam a contar as
nossas, as que inventamos... Tudo junto nos precipita num processo de produção
de pensamentos, saídas, soluções, fugas, reflexões, que transformam essa
habilidade num ato final de triunfo da espécie.
Sei que estamos passando por
uma crise muito forte e, nesse contexto, tendemos a transformar tudo num túnel
sem saída. Porém nossas histórias são um acervo que nos move na direção de
soluções e respostas. Desconsiderá-las, portanto, é desconhecer seu potencial
de cura.
Sei também que passamos, às
vezes, anos em labirintos... Entretanto é exatamente nesses tempos escuros que
devemos reobservá-las, reexaminá-las para que, de novo, enxerguemos por onde
ir...
Nossas histórias, desde que
somos crianças, nos ensinam a lidar com a ansiedade; a suportar obstáculos, enquanto
não os anulamos; a pensar os conflitos; a realizar desejos; a sobreviver
psiquicamente enquanto caminhamos... Tudo isso vai fazendo a gramática de nossa
personalidade e de nosso modo único de ser e ver, enfrentar e suplantar as dificuldades
da vida. Com nossas narrativas, trocamos o real impossível pelo possível
sonhado, inventado, procurado, encontrado, satisfeito... Por isso, nossas
ficções são uma ferramenta para entender os enigmas do mundo, do desejo; os
mecanismos do medo e do afeto; as engrenagens da identificação...
Nesse “habitat” social (que é
abstrato), inventamos verdadeiras ficções consensuais as quais construíram
saltos evolutivos que nenhuma outra espécie deu: na natureza não há nação,
dinheiro, justiça, lei, democracia, direitos humanos, amor, casamento,
fidelidade... Na verdade, essas “palavras” são fruto de uma ação ficcional que
alterou o mundo que nos cerca de forma contundente, o que nos permite
acrescentar que nossas narrativas afetam, e muito, a forma como sentimos e
agimos historicamente.
Embora eu consiga ver que
algumas pessoas sofrem muito – e ficam aprisionadas – quando aderem
completamente a essas construções ficcionais compartilhadas (que, em parte, são
um engodo coletivo alucinatório a que não podemos colar totalmente), também
consigo reconhecer que esse sistema ambíguo é resistente, porque também
sustenta alguns de nossos valores, agrega frações de nossa identidade, nos
ajuda a construir nossos sentidos e nos humaniza.
A localização no exato ponto
cardeal (nem aceitação total, nem negação total) é uma negociação vital que nos
acompanha no percurso difícil de sermos seres que falam “duas línguas” – uma
concreta, outra abstrata... uma real, outra imaginária... uma individual, outra
coletiva...
O desafio é aprendermos o
ponto certo em que a escolha não produza sofrimento pessoal desnecessário, nem
rupturas e solidões dolorosas. Usando a razão e a sensibilidade, talvez
possamos, com o acervo e o preenchimento de nossas ficções, ir ajustando as
trilhas de nosso imaginário para que possamos fazer um futuro “que fale a nossa
língua”, como diz Mia Couto.
Enfim, nossas ficções não só nos
forjam: elas também são ferramentas irrenunciáveis para irmos elaborando
passados, suplantando presentes e sonhando futuros melhores. Ou seja: com elas
podemos ir adiante sem sair do nosso posto bonito de seres que agem não só pessoal
e historicamente, mas também evoluem agônica e coletivamente, apesar das
dificuldades...
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A César, que me ajudou a pensar a matéria desse texto.
2 Comments:
Flávia, você é de uma beleza que não cabe nesse mundo.
Pedro Gabriel
Mais uma belíssima voz.
Roseana Murray
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