sábado, julho 20, 2019

MULHER E LITERATURA


   Há mais de seis meses, não escrevo em prosa; nesse período compus alguns poemas, ação mais fácil quando me faltam ideias claras e articuladas... Mas confesso que, desde as eleições, venho sentindo muita dificuldade de entender e explicar, os dois verbos que movem a minha escrita.
            Ao longo desse tempo, assisti (meio intrusa) às aulas do meu amigo Antônio Paulo, li e pensei muito... Prestei intensa atenção nas pessoas... Aí esse texto começou a nascer, embora estivesse entalado...
            Pois bem: chegou a hora do Congresso da Academia de Estudos onde trabalho. Cida Pedrosa, a convidada com quem vou dividir a fala, escolheu o tema “Mulher e literatura”; por acaso, eu estava acabando de ler dois livros − “Meio sol amarelo” (de Chimamanda Nigozi Adichie) e “Mais de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI” (de Amós Oz) −, e tudo começou a se encaixar.
            Antes de começar a falar de Chimamanda, ou de qualquer literatura escrita por mulheres, preciso explicitar com cuidado o conceito de “centrifugação”, levantado por um grupo de escritores espanhóis. “Centrifugar” e “centrifugação” são duas palavras cujos significados remetem a “tirar do centro”. Quando escrevi no Google “Escritores africanos”, por exemplo, apareceram na tela quatro escritores brancos; é isso centrifugar, algo como invisibilizar, se é que essa palavra existe. Duas mulheres negras formidáveis (Chimamanda e Mukasonga) simplesmente não apareceram na tela do meu computador.
            Estudando Chimamanda depois de terminar de ler seu livro, eu esbarrarei num vídeo do Youtube em que ela levanta o conceito de single story (história única, em português). Por meio de narrativas, como costumam fazer os escritores, ela enfatiza a importância de escutarmos várias histórias, para termos uma visão mais completa da realidade. De alguma forma, eu intuía isto: durante o ano passado, falei várias vezes de escuta.
            No vídeo, ela conta que, quando chegou nos Estados Unidos, sua colega de quarto admirou-se de ela saber falar e escrever tão bem em inglês, ou seja, Chimamanda constatou que ela sabia quase nada da África e do seu país, a Nigéria, que tem a inglesa como língua oficial. Mas de forma bem humilde também narra um episódio que aconteceu com ela própria: quando chegou no México, admirou-se de o povo de lá viver de forma tão normal e, na verdade, viu que tinha assimilado, sem querer, a história única dos mexicanos contada pelos americanos. 
Ela adianta que, ao lado dos genocídios, das guerras, das catástrofes e das epidemias, a África tem, como o México, pessoas que resistem, lutam, prosperam − apesar dos governos −, amam, são amadas, estudam, leem, escrevem... E conclui: a história única não é mentirosa, mas incompleta e geradora de estereótipos. Vale-se de palavras de outro escritor nigeriano (Chinua Achebe), para afirmar que é necessário um “equilíbrio de histórias”. O livro “Meio sol amarelo” de Chimamanda é um painel sobre a guerra de secessão Nigéria/Biafra, entre 1967-70, que perpetrou o genocídio de sua etnia, a Igbo, e matou mais de um milhão de pessoas.
Tudo isso combina perfeitamente com as ideias de Amós Oz no seu esclarecedor “Mais de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI”, coletânea de três ensaios em que o autor defende, resumidamente, que há mais de uma luz, não uma só, daí o título do livro. E que há muitos tons e subtons entre o preto e o branco. 
No primeiro ensaio, chamado “Caro fanático”, ele começa dizendo que “uma coisa é sair em perseguição a um bando de fanáticos armados nas montanhas do Afeganistão, nos desertos do Iraque ou nas cidades da Síria. Outra, completamente diferente, é combater o próprio fanatismo”. E começa a apresentar ideias sobre a natureza do fanatismo e sobre como contê-lo.
Afastando-se dos leitores simplificadores de Samuel Huntington, para quem o campo de batalha atual é uma guerra de civilizações travada entre a selvageria islâmica e a cultura ocidental, Oz reconhece vários comportamentos como fanáticos menos evidentes: antitabagistas, vegetarianos, ambientalistas, opositores da globalização, membros de partidos políticos e de times de futebol... apresentam, infelizmente, condutas violentas. E ele tem razão.
Depois diz ele que o fanatismo é mais antigo que toda ideologia que existe no mundo; “é um fundamento fixo na natureza dos seres humanos, um gene mau”. E começa a listar: genocídios, jihad, cruzadas, inquisições, gulags, campos de extermínio, porões de tortura não são novidades na nossa história, e muitos desses fatos vieram antes do radicalismo atual do Islã.
Continuando a pensar, Oz chega a um ponto esclarecedor: “quanto mais difíceis e complexas se tornam as perguntas, tanto mais cresce a avidez por respostas simples, respostas com uma única sentença, respostas que apontem sem hesitação os culpados por todos os nossos sofrimentos, respostas que nos asseguram de que, uma vez que eliminemos e exterminemos os malvados, imediatamente todos os nossos tormentos desaparecerão”. Cita sua própria infância radical de sionista-nacionalista e um personagem de uma obra sua, para concluir que há confrontações que não se definem no preto e branco e que “o ódio cego faz com que os que se odeiam de ambos os lados da barricada sejam quase idênticos um ao outro”.
Prossegue trazendo a ideia de que, no tempo, “estamos todos nos afastando dos horrores” de Stálin e Hitler os quais, sem querer, evidentemente, desenvolveram, em duas ou três gerações, um temor profundo de todo extremismo e uma espécie de contenção das pulsões que levam ao fanatismo; constata o ressurgimento do ódio, do fanatismo, da aversão ao diferente, da brutalidade revolucionária que não estão no volume com que são expressos, mas na falta de tolerância com os discursos discordantes. E levanta três causas para isso – ânsia de pertencer a um grupo, endeusamento de líderes e políticos e infantilização de multidões que desaguam em apagamento do sujeito. 
A pertinência de Oz também denuncia o apagamento da fronteira entre a política e a indústria do entretenimento as quais, servindo-se dos meios de comunicação e desse “jardim de infância global”, fazem as palavras “irado”, “hilário”, “bizarro” e “tosco” ganharem eleições, divertirem as massas, desviarem sua atenção e sugarem o seu dinheiro. 
            Mukansonga, cujo livro “Baratas” traz no título a palavra com que sua etnia, os Tutsis de Ruanda, foi rotulada, materializa a ideia de Chimamanda de que um povo termina por ser reduzido à história única que se conta, injustamente, contra ele e poderá ser alvo fácil da violência do extermínio. 
            Fiquei muito agradecida a Chimamanda e a Amós Oz por terem me dado o cimento que juntou os tijolos da minha angústia de vários meses. Por meio deles, obtive mais palavras e mais narrativas para entender e explicar um pouco melhor o meu próprio contexto social que se mostra um campo minado em que é muito difícil exprimir ideias, principalmente se elas saem da ortodoxia polarizada.  
Oz argumenta com propriedade que há escalas do mal – defensores agressivos da qualidade ambiental causam um mal infinitamente menor que aquele que realiza um atentado a bomba contra uma multidão. Inclusive acrescenta que também causa mal quem não atenta à gradação. Já que concordo com ele, pisando no campo minado, afirmo: embora haja gradações infinitas entre elas, as duas visões que se confrontam no país estão, sim, dificultando convivências possíveis.  
É obvio que há uma pior do que a outra: mentira e agressão (Oz considera a agressão a “mãe de todas as violências”) são metodologias tão abertamente erradas e inaceitáveis, que nem sabemos direito como reagir a elas. Mas também há do lado cá um comportamento que merece atenção. Um país com 200 milhões de pessoas não pode ter só duas ideias. Quem está ganhando com isso? Só existe uma história da escravidão? A mulher é só vítima, e o homem é só algoz no Brasil?
            Oz declara a certa altura do texto que alguns colegas do movimento pacifista o condenam, com raiva, porque ele tem uma ideia diferente quanto ao caminho para alcançar a paz entre Israel e a Palestina. Ou seja: a história ou ideia única é imposta como um pacote pronto com vários itens com os quais se tem que, obrigatoriamente, concordar. 
            E eu tenho ouvido queixas de amigos de trabalho sobre xingamentos que receberam por não aceitarem o pacote da esquerda inteiro, sendo por isso acusados de serem de direita; reclamações de homens que se sentem agredidos quando ouvem a frase “todo homem é potencialmente um estuprador”, a qual, em última instância, confirma a força e a superioridade masculina em detrimento da mulher indefesa que resta fraca e vítima nas brechas sociais... Não só: acusa todos do crime de poucos. De onde vem essa polarização que é apenas um resumo mal feito das possibilidades de nossos relacionamentos? Desde quando a História é apenas um relato? Todas as mulheres são indefesas? Todos os homens são agressores?  
No seu contexto, Oz propõe como solução para esses impasses curiosidade, imaginação e humor. E Chimamanda, o tal “equilíbrio de histórias”. Ou seja: ela convida à disposição de ouvir mais e falar mais, por meio de narrativas escritas, cinematográficas, radiofônicas... Gosto muito dessas ideias: uma pessoa curiosa e imaginativa é capaz de se colocar no lugar do outro. Por conseguinte, é capaz de pensar ‘e se fosse comigo?’ e de, por isso, começar a respeitar a diferença que o outro sempre carrega, seja ele branco ou preto, hetero ou homo... E gosto do humor que, mesmo politicamente incorreto, às vezes, é uma válvula de escape para os seres imperfeitos que sempre seremos. Pois não podemos só fazer de conta que somos bonzinhos e calar. Mais dia, menos dia, seremos assaltados pelo recalcado, como diz Freud; de alguma forma isso escuro que somos deve ser elaborado. 
No nosso contexto, à lista de Oz e Chimamanda eu acrescentaria a palavra, porque ela é, na minha opinião, a ferramenta para se conseguirem as outras. E, enquanto não houver escola eficiente para todos, a valorização dos escritores e roteiristas que, diferentemente do que supõe o autor americano do conceito de “lugar de fala”, são, sim, capazes de falar pelos centrifugados, como fez Chimamanda de várias formas – por ser mulher, negra, africana e por ter, corajosamente, colocado Ugwu como um dos personagens centrais do seu romance. 
Num genocídio, o que corre é sangue; não palavras. Só depois elas vêm, para lavá-lo, feito a obra de Mukasonga, que é não só a mortalha de sua mãe, mas também de seu povo. E nossa, que uma história daquela mata todos nós.
Também é preciso repensar de forma autônoma, para que não se fortaleçam, esses pacotes de ideias que têm uma ligação muito forte com o cumprimento cego das expectativas do outro. Esse comportamento nada mais é do que, nas palavras de Lacan, outra “demissão subjetiva”. Isso tudo tem resultado no inusitado crescimento do número de suicídios atual. 
Mais que tudo, conclamo a um uso mais responsável dos nossos maravilhosos celulares e das redes sociais que, em vez de terem se tornado meios de comunicação efetiva entre nós, viraram uma rinha de galos de briga, porque não estamos acertando a fazer um equilíbrio de histórias variadas. Em vez disso, vencidos pelos algoritmos, só ouvimos a palavra de quem pensa igual a nós. No pacote. Sem contradição. Ou viraram uma marreta com a qual julgamos estar resistindo ao “inimigo”. Na verdade, estamos amplificando-o e dando a ele a direção de nosso pensar, de nosso agir, de nosso sentir... “Quase nunca se consegue derrotar uma ideia, ainda que distorcida, usando apenas uma grande marreta. É necessário ter uma resposta; uma ideia contrária, uma crença mais atraente, uma promessa mais convincente”, diz o mágico Oz...
E, tenho certeza, só chegaremos a elas, se, em vez de armas, usarmos narrativas que espalhem mundo afora, não as histórias únicas, mas as histórias plurais, que nos ensinam a verdadeira diversidade que é a que não perde de vista o nosso tutano comum.