MULHER E LITERATURA
Há
mais de seis meses, não escrevo em prosa; nesse período compus alguns poemas,
ação mais fácil quando me faltam ideias claras e articuladas... Mas confesso
que, desde as eleições, venho sentindo muita dificuldade de entender e
explicar, os dois verbos que movem a minha escrita.
Ao longo desse tempo, assisti (meio
intrusa) às aulas do meu amigo Antônio Paulo, li e pensei muito... Prestei
intensa atenção nas pessoas... Aí esse texto começou a nascer, embora estivesse
entalado...
Pois bem: chegou a hora do Congresso
da Academia de Estudos onde trabalho. Cida Pedrosa, a convidada com quem vou
dividir a fala, escolheu o tema “Mulher e literatura”; por acaso, eu estava
acabando de ler dois livros − “Meio sol amarelo” (de Chimamanda Nigozi Adichie)
e “Mais de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI” (de Amós Oz) −,
e tudo começou a se encaixar.
Antes de começar a falar de
Chimamanda, ou de qualquer literatura escrita por mulheres, preciso explicitar
com cuidado o conceito de “centrifugação”, levantado por um grupo de escritores
espanhóis. “Centrifugar” e “centrifugação” são duas palavras cujos significados
remetem a “tirar do centro”. Quando escrevi no Google “Escritores africanos”,
por exemplo, apareceram na tela quatro escritores brancos; é isso centrifugar,
algo como invisibilizar, se é que essa palavra existe. Duas mulheres negras
formidáveis (Chimamanda e Mukasonga) simplesmente não apareceram na tela do meu
computador.
Estudando Chimamanda depois de
terminar de ler seu livro, eu esbarrarei num vídeo do Youtube em que ela
levanta o conceito de single story (história única, em
português). Por meio de narrativas, como costumam fazer os escritores, ela
enfatiza a importância de escutarmos várias histórias, para termos uma visão
mais completa da realidade. De alguma forma, eu intuía isto: durante o ano
passado, falei várias vezes de escuta.
No vídeo, ela conta que, quando
chegou nos Estados Unidos, sua colega de quarto admirou-se de ela saber falar e
escrever tão bem em inglês, ou seja, Chimamanda constatou que ela sabia quase
nada da África e do seu país, a Nigéria, que tem a inglesa como língua oficial.
Mas de forma bem humilde também narra um episódio que aconteceu com ela
própria: quando chegou no México, admirou-se de o povo de lá viver de forma tão
normal e, na verdade, viu que tinha assimilado, sem querer, a história única
dos mexicanos contada pelos americanos.
Ela
adianta que, ao lado dos genocídios, das guerras, das catástrofes e das
epidemias, a África tem, como o México, pessoas que resistem, lutam, prosperam
− apesar dos governos −, amam, são amadas, estudam, leem, escrevem... E
conclui: a história única não é mentirosa, mas incompleta e geradora de
estereótipos. Vale-se de palavras de outro escritor nigeriano (Chinua Achebe),
para afirmar que é necessário um “equilíbrio de histórias”. O livro “Meio sol
amarelo” de Chimamanda é um painel sobre a guerra de secessão Nigéria/Biafra,
entre 1967-70, que perpetrou o genocídio de sua etnia, a Igbo, e matou mais de
um milhão de pessoas.
Tudo
isso combina perfeitamente com as ideias de Amós Oz no seu esclarecedor “Mais
de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século XXI”, coletânea de três
ensaios em que o autor defende, resumidamente, que há mais de uma luz, não uma
só, daí o título do livro. E que há muitos tons e subtons entre o preto e o
branco.
No
primeiro ensaio, chamado “Caro fanático”, ele começa dizendo que “uma coisa é
sair em perseguição a um bando de fanáticos armados nas montanhas do
Afeganistão, nos desertos do Iraque ou nas cidades da Síria. Outra,
completamente diferente, é combater o próprio fanatismo”. E começa a apresentar
ideias sobre a natureza do fanatismo e sobre como contê-lo.
Afastando-se
dos leitores simplificadores de Samuel Huntington, para quem o campo de batalha
atual é uma guerra de civilizações travada entre a selvageria islâmica e a
cultura ocidental, Oz reconhece vários comportamentos como fanáticos menos
evidentes: antitabagistas, vegetarianos, ambientalistas, opositores da
globalização, membros de partidos políticos e de times de futebol...
apresentam, infelizmente, condutas violentas. E ele tem razão.
Depois
diz ele que o fanatismo é mais antigo que toda ideologia que existe no mundo;
“é um fundamento fixo na natureza dos seres humanos, um gene mau”. E
começa a listar: genocídios, jihad, cruzadas, inquisições, gulags, campos de
extermínio, porões de tortura não são novidades na nossa história, e muitos
desses fatos vieram antes do radicalismo atual do Islã.
Continuando
a pensar, Oz chega a um ponto esclarecedor: “quanto mais difíceis e complexas
se tornam as perguntas, tanto mais cresce a avidez por respostas simples,
respostas com uma única sentença, respostas que apontem sem hesitação os
culpados por todos os nossos sofrimentos, respostas que nos asseguram de que,
uma vez que eliminemos e exterminemos os malvados, imediatamente todos os
nossos tormentos desaparecerão”. Cita sua própria infância radical de
sionista-nacionalista e um personagem de uma obra sua, para concluir que há
confrontações que não se definem no preto e branco e que “o ódio cego faz com
que os que se odeiam de ambos os lados da barricada sejam quase idênticos um ao
outro”.
Prossegue
trazendo a ideia de que, no tempo, “estamos todos nos afastando dos horrores”
de Stálin e Hitler os quais, sem querer, evidentemente, desenvolveram, em duas
ou três gerações, um temor profundo de todo extremismo e uma espécie de
contenção das pulsões que levam ao fanatismo; constata o ressurgimento do ódio,
do fanatismo, da aversão ao diferente, da brutalidade revolucionária que não
estão no volume com que são expressos, mas na falta de tolerância com os
discursos discordantes. E levanta três causas para isso – ânsia de pertencer a
um grupo, endeusamento de líderes e políticos e infantilização de multidões que
desaguam em apagamento do sujeito.
A
pertinência de Oz também denuncia o apagamento da fronteira entre a política e
a indústria do entretenimento as quais, servindo-se dos meios de comunicação e
desse “jardim de infância global”, fazem as palavras “irado”, “hilário”,
“bizarro” e “tosco” ganharem eleições, divertirem as massas, desviarem sua
atenção e sugarem o seu dinheiro.
Mukansonga, cujo livro “Baratas”
traz no título a palavra com que sua etnia, os Tutsis de Ruanda, foi rotulada,
materializa a ideia de Chimamanda de que um povo termina por ser reduzido à história
única que se conta, injustamente, contra ele e poderá ser alvo fácil da
violência do extermínio.
Fiquei muito agradecida a Chimamanda
e a Amós Oz por terem me dado o cimento que juntou os tijolos da minha angústia
de vários meses. Por meio deles, obtive mais palavras e mais narrativas para
entender e explicar um pouco melhor o meu próprio contexto social que se mostra
um campo minado em que é muito difícil exprimir ideias, principalmente se elas
saem da ortodoxia polarizada.
Oz
argumenta com propriedade que há escalas do mal – defensores agressivos da
qualidade ambiental causam um mal infinitamente menor que aquele que realiza um
atentado a bomba contra uma multidão. Inclusive acrescenta que também causa mal
quem não atenta à gradação. Já que concordo com ele, pisando no campo minado,
afirmo: embora haja gradações infinitas entre elas, as duas visões que se
confrontam no país estão, sim, dificultando convivências possíveis.
É
obvio que há uma pior do que a outra: mentira e agressão (Oz considera a
agressão a “mãe de todas as violências”) são metodologias tão abertamente
erradas e inaceitáveis, que nem sabemos direito como reagir a elas. Mas também
há do lado cá um comportamento que merece atenção. Um país com 200 milhões de
pessoas não pode ter só duas ideias. Quem está ganhando com isso? Só existe uma
história da escravidão? A mulher é só vítima, e o homem é só algoz no Brasil?
Oz declara a certa altura do texto
que alguns colegas do movimento pacifista o condenam, com raiva, porque ele tem
uma ideia diferente quanto ao caminho para alcançar a paz entre Israel e a
Palestina. Ou seja: a história ou ideia única é imposta como um pacote pronto
com vários itens com os quais se tem que, obrigatoriamente, concordar.
E eu tenho ouvido queixas de amigos
de trabalho sobre xingamentos que receberam por não aceitarem o pacote da
esquerda inteiro, sendo por isso acusados de serem de direita; reclamações de
homens que se sentem agredidos quando ouvem a frase “todo homem é
potencialmente um estuprador”, a qual, em última instância, confirma a força e
a superioridade masculina em detrimento da mulher indefesa que resta fraca e
vítima nas brechas sociais... Não só: acusa todos do crime de poucos. De onde
vem essa polarização que é apenas um resumo mal feito das possibilidades de
nossos relacionamentos? Desde quando a História é apenas um relato? Todas as
mulheres são indefesas? Todos os homens são agressores?
No
seu contexto, Oz propõe como solução para esses impasses curiosidade, imaginação
e humor. E Chimamanda, o tal “equilíbrio de histórias”. Ou seja: ela
convida à disposição de ouvir mais e falar mais, por meio de narrativas
escritas, cinematográficas, radiofônicas... Gosto muito dessas ideias: uma
pessoa curiosa e imaginativa é capaz de se colocar no lugar do outro. Por
conseguinte, é capaz de pensar ‘e se fosse comigo?’ e de, por isso, começar a
respeitar a diferença que o outro sempre carrega, seja ele branco ou preto,
hetero ou homo... E gosto do humor que, mesmo politicamente incorreto, às
vezes, é uma válvula de escape para os seres imperfeitos que sempre seremos.
Pois não podemos só fazer de conta que somos bonzinhos e calar. Mais dia, menos
dia, seremos assaltados pelo recalcado, como diz Freud; de alguma forma isso
escuro que somos deve ser elaborado.
No
nosso contexto, à lista de Oz e Chimamanda eu acrescentaria a palavra, porque ela é, na minha
opinião, a ferramenta para se conseguirem as outras. E, enquanto não houver
escola eficiente para todos, a valorização dos escritores e roteiristas que,
diferentemente do que supõe o autor americano do conceito de “lugar de fala”, são,
sim, capazes de falar pelos centrifugados, como fez Chimamanda de várias formas
– por ser mulher, negra, africana e por ter, corajosamente, colocado Ugwu como
um dos personagens centrais do seu romance.
Num
genocídio, o que corre é sangue; não palavras. Só depois elas vêm, para
lavá-lo, feito a obra de Mukasonga, que é não só a mortalha de sua mãe, mas
também de seu povo. E nossa, que uma história daquela mata todos nós.
Também
é preciso repensar de forma autônoma, para que não se fortaleçam, esses pacotes
de ideias que têm uma ligação muito forte com o cumprimento cego das
expectativas do outro. Esse comportamento nada mais é do que, nas palavras de
Lacan, outra “demissão subjetiva”. Isso tudo tem resultado no inusitado
crescimento do número de suicídios atual.
Mais
que tudo, conclamo a um uso mais responsável dos nossos maravilhosos celulares
e das redes sociais que, em vez de terem se tornado meios de comunicação
efetiva entre nós, viraram uma rinha de galos de briga, porque não estamos
acertando a fazer um equilíbrio de histórias variadas. Em vez disso, vencidos
pelos algoritmos, só ouvimos a palavra de quem pensa igual a nós. No pacote.
Sem contradição. Ou viraram uma marreta com a qual julgamos estar resistindo ao
“inimigo”. Na verdade, estamos amplificando-o e dando a ele a direção de nosso
pensar, de nosso agir, de nosso sentir... “Quase nunca se consegue derrotar uma
ideia, ainda que distorcida, usando apenas uma grande marreta. É necessário ter
uma resposta; uma ideia contrária, uma crença mais atraente, uma promessa mais
convincente”, diz o mágico Oz...
E,
tenho certeza, só chegaremos a elas, se, em vez de armas, usarmos narrativas
que espalhem mundo afora, não as histórias únicas, mas as histórias plurais,
que nos ensinam a verdadeira diversidade que é a que não perde de vista o nosso
tutano comum.
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