domingo, julho 21, 2024

REFLEXÕES SOBRE LITERATURA, SAÚDE E MEDICINA

Começo afirmando que, a partir da segunda metade do século XX, a História e a Medicina nos presentearam com um paradoxo: o positivo aumento da longevidade e a consequente, mas negativa, morte do mundo a que a gente pertence, antes de a gente morrer. De forma mais lenta, acho que isso sempre aconteceu, pois somos seres históricos que transformam o mundo ao longo do tempo. Entretanto constato que, recentemente, a velocidade com que essas transformações acontecem aumentou muito e, paralelo a isso, vivemos mais.

          Não tinha sido capaz de escrever sobre o impacto que o fim do meu mundo causou em mim; “fico muda quando mudo” é a frase que uso para pedir um tempo de silêncio aos que me cercam e amam. Os convites sequenciados que médicos me têm feito para fazer palestras me deram força suficiente para o esforço de escrever para compreender e explicar, o que constitui uma das tarefas de minha vida.   

No começo do mês, pensando sobre o que traria dessa vez para vocês, lembrei-me de um livro que li em 2015, cujo título é “Sobre Alice”, do jornalista americano Calvin Trillin, que, como eu, justifica seu relato dizendo que um escritor ou o jornalista têm o instinto (do qual não podem fugir) de tentar encontrar sentido nos fatos que nos atropelam durante a vida.

“Sobre Alice” é uma linda declaração de amor que o autor escreveu sobre a sua esposa Alice Stewart Trillin, que morreu antes dele, de problemas cardíacos decorrentes de um tratamento de câncer de pulmão a que ela tinha se submetido 25 anos antes. Alice venceu o câncer (morreu, muito tempo depois, da cura e não da doença em si), e a recuperação lhe rendeu a chance de ver o casamento de suas duas filhas e de ajudar muitos médicos e outros doentes a entenderem o que se passa com os pacientes em tratamento, por meio de palestras e de um famoso depoimento escrito chamado “Sobre dragões e ervilhas – uma paciente de câncer conversa com médicos”.

De acordo com Alice, os dragões do título eram uma metáfora para o fato de que a doença era um monstro difícil de matar e podia ficar à espreita e despertar quando menos se esperava; as ervilhas, outra metáfora para as coisas que, a despeito do que se pode antever antes de adoecer, têm que continuar iguais, como ir à feira, pagar as contas, perder entes queridos, manter, minimamente, a própria identidade...

O câncer foi, na história de Alice, o que ela mesma chamava de “concretização de nossos piores pesadelos”, isto é, às vezes somos surpreendidos por acontecimentos incompreensíveis, de tão brutais. O que fazemos dos episódios e de nós mesmos depois faz muita, muita diferença.

        Naquele ano de 2015, eu disse que a compreensão disso torna cada um de nós ainda mais responsável pelos outros: precisamos continuar fazendo esforços para conviver em harmonia, pois o episódio, por bruto que seja, não traz com ele passes de desculpas, nem justificativas para eventuais descortesias que possamos cometer daí para frente. As pessoas, simplesmente, não têm nada a ver com o fato, nem podem ser depositárias de nossa revolta com o lotérico caso que ocorreu na “nossa” vida e não na “delas”. E mais: não querem ficar ouvindo lamúrias... E mais: algumas são incapazes de, minimamente, entender o que aconteceu... E mais: outras acham que, se aconteceu conosco, azar o nosso... E mais: algumas não pensam sobre essas coisas, só vivem...

Um pouco calados, temos que seguir em frente com essa razão (como diz a matemática) invisível que potencializa as coisas da vida...

O que acontece comigo é que mudanças, mesmo pequenas, despertam a lembrança “do meu pior pesadelo” – a doença neurológica gravíssima de meu filho do meio, que o transformou e a mim mesma em pessoas completamente diferentes... E, sim, há as dificuldades mesmas da vida, que não param e se somam, cotidianamente, ao acontecimento, numa equação com muitas incógnitas... E muitas lágrimas... Se pais têm medo de morrer e deixar os filhos, o meu medo é maior; se pais temem adoecer quando seus filhos são ainda dependentes, o meu temor é mais longo; se pais acham difícil sustentar seus filhos, minha dificuldade é maior; se pais acham penoso contratar cuidadoras e babás, a minha pena é maior...

Não há muito o que fazer depois que um fato desses se instala nas nossas vidas: às vezes, temos que apenas suportar enquanto ele passa, como no caso de Alice; às vezes, temos que aprender a viver com suas intermitências, como acontece nas recidivas antes da cura final; às vezes, ele não passa nunca, como no caso de meu filho, que carrega, desde a fase aguda de sua infecção, há mais de 20 anos, sequelas irremediáveis muito limitantes.

E não há consolo, apesar de muitas pessoas terem umas ideias prontas que as blindam do medo da vida e suas tocaias: algumas pensam que Deus não enviaria um fardo desses para elas, pois Ele sabe que elas não suportariam; outras, que dizer a uma pessoa que outras têm problemas maiores do que os dela é suficiente; outras, que Deus manda o fardo e o “como” carregá-lo; outras pensam que se matariam, cometendo, a meu ver, uma covardia; outras passam a vida inteira sem pensar nessas coisas difíceis, achando que a vida é uma passagem festiva e sem problemas e que só algumas pessoas fazem confusão, porque são confusas, como eu, conforme me disse, há algum tempo, um aluno meu. E ainda acrescentou:

– Viemos ao mundo para comprar!

Eu lhe disse que Deus não teria uma ideia idiota como essa, e até hoje não sei se ele pensa mesmo isso, ou se eu lhe disse alguma coisa que o tocou tanto que ele se defendeu com essa “pérola” materialista...

Como gostaria de acrescentar raciocínios aos que fiz em 2015, queria dizer que tanto as experiências de Calvin e Alice Trillin quanto as minhas aconteceram dentro de hospitais e ao lado de sua população – médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos... e doentes. Na verdade, acho que um hospital é um lugar no qual a vida de muitas pessoas muda, de repente, para uma outra parte e por isso é preciso muita generosidade e muita delicadeza no trato com elas. Ou no de quem é de lá de alguma forma (plantões, internatos, diretoria...).

         Não saberia, de jeito nenhum, ensinar a vocês como se mover na vida ou num hospital (os dois espaços podem servir um como metonímia do outro). Mas acho que posso afirmar que momentos de transição – aquilo que nem todos, mas uma quantidade significativa de pessoas vive dentro de um hospital – são sempre muito difíceis: usando metáforas, é a gente precisando caminhar sem mapas... ou tentando se equilibrar com cada perna em um barco diferente... ou sendo vítima de um terremoto que tira o chão de nossos pés.

Profissionais de saúde são testemunhas dessas experiências radicais e intuo que é a própria humanidade do médico que pode ajudar nessas situações, servindo de bússola, ou seja, quanto mais profissionais de saúde sejam gente como toda a gente, mais conseguirão dar conta da tarefa, apesar das dificuldades.

Foi o escritor inglês de origem indiana e islâmica Salman Rushdie quem me deu as metáforas com as quais seguirei pensando:  a vida é uma casa muito, muito grande, cheia de buracos nas telhas, no chão; as paredes estão em condições ruins, ameaçando ruir... Nela estão todos os seres humanos – parentes, amigos, amantes, conhecidos, desconhecidos, desconhecidos perigosos... E a gente dentro daquela casa, andando, andando, sem saber para onde, levando quedas e pancadas... De repente, a gente se dá conta de que a casa não tem saída... No meio do pavor dessa descoberta, constata-se que há alguns quartinhos onde existem vozes que falam da casa... São os escritores (ou os artistas): pessoas que, dentro da casa, falam dela para nos distrair do terror (é que algumas vozes são obscenas, outras safadas, outras amáveis, outras engraçadas, outras tristes...) e dar algumas dicas. No seu ensaio, Salman pede que imaginemos o que seria ficar na casa sem a linguagem das artes, como esse espaço se tornaria ainda mais assustador, sem a distração momentânea ou as direções mínimas apontadas... Ele conclui: “tenho certeza de que, imediatamente, nos lembraríamos de que não há saída!”

Talvez venha daí a explicação para o fato de haver tantos escritores médicos, ou seja, na essência, o médico é próximo do escritor, ou deveria ser: dentro da casa (ou da vida ou do hospital), o médico devia guiar um pouco, usando não só a linguagem objetiva da ciência (que não permite mais de uma interpretação), mas também a figurada da literatura.

A sensação de superioridade que alguns médicos têm é um verdadeiro impeditivo para o percurso suportável nesse lugar aflitivo. Durante a internação de meu filho, na fase aguda de sua doença, duas técnicas de enfermagem me ajudaram em ocasiões diferentes: uma delas me contou uma piada da qual não me lembro e que terminava dizendo que “alguns médicos pensam que são deuses, e neurologistas têm certeza”; e a outra me disse que eu sossegasse, pois os médicos costumam dar vereditos errados, uma vez que ela já tinha presenciado milagres sem conta que os desmentiam, na UTI em que trabalhava. Com as metáforas, elas me deram uma espécie de agasalho, ou seja, fortificaram a possibilidade de eu continuar pensando que talvez aquilo que os médicos diziam não se realizasse, o que terminou por acontecer. 

Quando tento me lembrar do período daquela internação, uma nuvem confusa parece atrapalhar tanto relato quanto lembranças: fui bombardeada com suposições, veredictos e impressões que não se cumpriram. Portanto, acho que poderia ter sido poupada de muito do que ouvi.

Entendo, perfeitamente, que os médicos se sentiam meio que obrigados a me preparar para o pior, já que achavam que meu filho iria morrer “dentro de um ou dois dias”, como me foi dito várias vezes. No entanto, de forma geral, eu merecia mais cuidado: naquela longa internação, meu filho estava num limbo entre a vida e a morte, e eu era uma mãe amorosa que perdia o filho aos poucos. E que, ao fim e ao cabo, não o perdeu de todo.

As recentes notícias da tragédia do Rio Grande do Sul me deram a expressão “fadiga por compaixão” com a qual agora posso falar sobre o que talvez aconteça dentro dessa casa chamada hospital: há um equilíbrio muito difícil entre a compaixão e a exaustão na área de saúde e, ao contrário do que se pensa, também deve haver compaixão em direção aos profissionais da saúde; é recíproca a relação de humanidade necessária nesse, digamos, encontro.

Entretanto, se o médico se coloca acima de seu paciente, numa posição estapafúrdia de superioridade, como ele espera merecer sua cota de compaixão? Na verdade, o médico que se coloca nessa posição se recusa a participar desse jogo de afetos tão humano − a confluência de erros e acertos, amores e dificuldades que resume a vida de todos nós.

Além disso, com certeza, pode-se esperar, escolhendo-se a Medicina, uma remuneração que dará condições de vida muito acima da média. Mas é preciso atentar para outros pontos: o custo social da formação e, portanto, o troco que a sociedade brasileira precisa que seja dado. E as próprias necessidades da população do país. Todos temos de procurar ter mais do que apenas dinheiro; ter só dinheiro é uma forma ridícula de pobreza.

É urgente a busca de explicações, sentidos, propósitos (que antigamente eram dadas pela Religião ou pela Tradição), os quais são procuras também cruciais para que nós, embora presos nessa casa caindo aos pedaços que é a vida, ou o mundo ou o hospital, cumpramos as tarefas a que viemos ou que, cegos e enganados, escolhemos...

Aí a literatura pode ajudar. O escritor mexicano Carlos Fuentes chegou a comparar o romance com “uma arena privilegiada”, embora ele não quisesse dizer com essa expressão que esse gênero textual seja um espaço sagrado, ou seja, não precisamos tirar os sapatos antes de entrar nele. Ao contrário, na sua opinião, o romance nasce do fato vagabundo de não mais nos entendermos, depois que a linguagem unitária e ortodoxa da Religião se esfacelou. Em outras palavras, o romance, ou a própria literatura, na sua visão, são a arena onde se digladiam várias ideias, linguagens e valores e onde todos entram de sapatos e brincam de os intercambiar.

Acrescento que ler livros literários treina a gente a ler, reconhecer, desdobrar e, claro, acertar a usar a linguagem polissêmica que, antes de tudo, dá ao leitor ou receptor o direito de ter acesso à informação, no ritmo que lhe convier ou que lhe for possível.  Ou seja: em livros, a informação não chega nem em grande e rápida quantidade, nem desorganizada como hoje.  

Não compreendo como coincidência o fato do encontro de duas gerações; na verdade, acho até que há um sentido em todo encontro – de amantes, de parentes, de amigos, de vizinhos, de aluno e professor, de médico e paciente... A gente pode não se dar conta disso... Guimarães Rosa diz que “quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”... Eu talvez acrescentasse “milagre que a gente não sabe ver”, pois estamos perdendo a habilidade de ver o invisível...

Tanta coisa bonita pode acontecer entre pessoas, e a gente só tem a ideia de competir... E, portanto, de simplificar para ganhar... Nossas relações políticas, por exemplo, estão nos dividindo entre bons e ruins. Shakespeare, no século XV, já sabia que isso não é verdade...   

Finalizo esta palestra dizendo que o mundo em que fui formada morreu, mas eu ainda estou aqui, não sei bem para quê... Se bem que eu jamais deixaria de escrever e falar se convidada a fazer isso, uma vez que essa é a minha tarefa.

Todos cometemos erros desastrados e devemos seguir em frente, tentando fazer melhor. O nosso melhor pode não ser suficiente, mas é o que, esfolados, conseguimos. Diferentemente de como nos comportamos nas redes sociais, precisamos levar em conta, como no Direito, a tal da “presunção da boa fé”. Pensei isso, recentemente...

Meu terceiro filho vivia me perguntando “e se eu não tivesse nascido?” Eu lhe respondia que eu seria incompleta, que a família seria menor... Mas ele continuava a repetir a suposição. Um dia, ele chegou perto de mim todo contente e disse: “eu já sei: se eu não tivesse nascido tinha uma coisa desmantelada no Universo”.

Então: espero ter cumprido a tarefa de levantar pontos que façam sentido para vocês; espero que cada um de vocês compreenda qual coisa desmantelada do Universo depende de vocês para ser consertada, porque isso é uma direção; espero que vocês entendam que há muita coisa invisível e calada que se passa entre nós, seres humanos, e que ninguém veio ao mundo para apenas ganhar dinheiro. Nosso espírito está fraquinho, com problemas graves de segurança alimentar... Mas ele existe, e acredito que a felicidade tem mais ligação com ele do que com a matéria (essa é uma das poucas certezas que tenho). Ao fim, é isto: nunca vi uma pessoa ser, realmente, feliz sozinha. Então se trata de conjugar verbos simples – amar, repartir, cuidar, tentar, falhar, consertar, resistir... Entre erros e acertos... Isso somos nós...