domingo, julho 16, 2006

"Iracema", de José de Alencar: globalização x nação

Já se disse que um bom livro não é aquele que a gente lê; mas o que lê a gente. “Iracema”, de José de Alencar, lê o Brasil e o brasileiro atual de forma lúcida e, mais de cem anos depois, ainda pertinente. É um livro polêmico, como não poderia deixar de ser uma obra de um autor polêmico como Alencar: alguns podem deter-se ainda diante da hipertrofia imagística ou lingüística, mas um leitor maduro percebe sua contribuição valiosa para uma questão que se nos aparece em tempos de globalização: a da identidade cultural.
Iracema é uma personagem instigante. É uma índia tabajara proeminente no seu povo, uma espécie de sacerdotisa, guardiã do segredo da jurema, uma metáfora que simboliza a identidade cultural da sua tribo. Vivia harmoniosamente em contato com a natureza, resgate que o Romantismo fez como contraponto ao progresso industrial que se adiantava na Europa da época. Chega Martim, português estrangeiro. Houve uma quebra desse equilíbrio e instala-se entre eles uma relação dúbia como a do colonizado com o colonizador: amor? crueldade? vínculo? violência? dependência? lucro?
Iracema larga seu povo, sua cultura, suas raízes e entrega-se a essa relação. Há um período rápido de felicidade, mas Martim começa a olhar o mar e, insegura, perdida de seus pontos cardeais, Iracema interpreta isso como pode: ele deve estar pensando numa virgem loura do outro lado do mar.
Martim vai à guerra, Iracema fica só, tem seu filho Moacir e morre. É o que acontecerá com todos os brasileiros, se continuarem, nessa época de imperialismos disfarçados, a abrirem mão de suas raízes culturais em favor da cultura (?) de povos hegemônicos economicamente, nesse processo globalizante, avassalador e massificante a que se assiste.
É claro que se pode pensar num mundo sem fronteiras nacionais, num planeta que seria abrigo para todos igualmente e no qual todos fossem irmãos. Mas a realidade é outra, é iracema: há perdedores e ganhadores.
O ganhador precisa e tripudia; o perdedor agoniza, ainda mais se não tiver a tábua de salvação cultural, aquela a que se recorre em última instância. Quando Iracema deixou tudo para trás, ela o fez por amor ao outro, porém ninguém pode amar contra si mesmo. Nesse mundo, ainda bipolarizado, forte, de mercados e capitais fluidos, de mercadorias desnecessárias e, portanto, de consumismo, de muros não mais verticais, mas horizontais, em que todos querem entrar a qualquer preço, até com a moeda da escravidão, não vale a pena se inserir. Iracema nos ensina isso, quando morreu, já que entrou numa relação desigual e fadada ao fracasso unilateral. Pagar com vidas a entrada nesse mundo é cometer o erro da personagem: abrir mão de tudo e perder tudo.
Alencar fez de Iracema um símbolo da nacionalidade brasileira, num momento em que carecíamos compreender, depois da independência, o que era ser um país. Ainda não aprendemos de todo que um país se faz num processo lento de consciência cultural e de direcionamento político eficaz para o conjunto de sua população. Se entendêssemos o que Alencar simbolicamente nos legou em “Iracema”, trabalharíamos no sentido de tentar uma inserção que, pela primeira vez na História, objetivaria as exigências de nossa própria nacionalidade.

6 Comments:

At 8:32 AM, Blogger Thelma said...

Maravilhoso!!!!

 
At 5:16 PM, Anonymous Anônimo said...

Flávia:
Seu texto me fez lembrar uma matéria que li, de autoria do jornalista Mino Carta, sobre o Gal. Golbery do Couto e Silva, o pai do SNI. Mino Carta relatava um pretenso diálogo havido entre o general e sua esposa a respeito da leitura de jornais e do conteúdo "interessado" que cada um contém, a despeito desses se reclamarem pregoeiros da "verdade", porque dizem descrever os fatos "como os fatos
foram"(??!!), como dizia Paulo Cavalcanti.

Flávia, tudo isso é pretexto para dizer da alegria de ler seus textos e de saber que, finalmente, eles foram reunidos e disponibilizados em um blog, com o apoio de Debi, claro. A Internet, como qualquer fabricação humana, é assim, a priori, nem serve ao bem nem ao mal. Aqui ela veicula a boa língua portuguesa e o pensar criativo e humanista.

Receba minhas felicitações por mais essa criação, depois de Daniel, Felipe e Diogo.

Um grande abraço,
Batista

PS: vou divulgar entre os amigos sua página virtual.

 
At 5:10 PM, Anonymous Anônimo said...

Estou encantada com o texto

 
At 1:06 PM, Anonymous Anônimo said...

Normanda, querida:
Seria possível você me enviar as questões que você armou a partir do meu texto? Quando Débora me falou, eu fiquei morta de curiosidade. Não se preocupe caso não seja possível, que eu entendo. Beijos, Flávia.

 
At 1:14 PM, Anonymous Anônimo said...

Querida Flávia
É um prazer atender ao seu pedido. Adoro os seus textos: além de lindos, inspiram o nosso trabalho em sala de aula. Tenho recomendado a alunos e colegas. Sobre a prova, tratava-se de um concurso para professor de português do ensino médio (Escola Agrotécnica Federal de Barreiros). Era uma prova com duas questões discursivas cujos tópicos foram sorteados uma hora antes da prova. Assim, precisei elaborar uma questão pra cada tópico do programa. Achei que seria ótimo para o candidato ter à mão textos que facilitassem a
reflexão sobre os tópicos ou mesmo a aplicação de certos conceitos. (Pense num trabalhão!!)
Assim, para o tópico "Prosa romântica brasileira em José de Alencar", disponibilizei dois fragmentos de textos de seu blog. Infelizmente esse tópico não esteve entre os sorteados.

ESCOLA AGROTÉCNICA FEDERAL DE BARREIROS
CONCURSO PÚBLICO PARA PROFESSOR
LÍNGUA PORTUGUESA

ETAPA 1: PROVA ESCRITA
I. TÓPICOS ESPECÍFICOS DE LÍNGUA E LITERATURA
3.4 Prosa romântica brasileira: José de Alencar.

Texto(s)

QUESTÃO 1
Escreva um texto expositivo sobre o projeto literário nacionalista de José de Alencar, incluindo uma análise do papel desse “passado inventado pelos escritores do Romantismo”, na construção de uma identidade cultural brasileira.
Acrescente ao seu texto referências sobre o contexto histórico e uma apreciação sobre a metáfora representada no desfecho do relacionamento amoroso entre a índia tabajara Iracema e o português Martim.

Os textos disponibilizados podem servir de auxílio para a sua reflexão.

Texto(s)

(I)
Identidade e nacionalismo: des-construção
A questão da identidade nacional brasileira é difícil. Se, na Europa, esse tema se construiu sobre tradições populares ancestrais, no Brasil, por falta delas, ele foi, inicialmente, lapidado em cima de um passado inventado pelos escritores do Romantismo, de modo idealizado.
A conjunção harmoniosa de índios, negros e europeus, a sobreposição de valores, a construção do herói modelar, o triunfo do Bem são, na realidade, a repetição ingênua dessa identidade forjada e, portanto, falhada.
SUASSUNA, Flávia. Disponível em http://fsuassuna.blogspot.com Acessado em 21/07/2006.

(II)
Iracema, de José de Alencar: globalização x nação
Já se disse que um bom livro não é aquele que a gente lê; mas o que lê a gente. “Iracema”, de José de Alencar, lê o Brasil e o brasileiro atual de forma lúcida e, mais de cem anos depois, ainda pertinente. É um livro polêmico, como não poderia deixar de ser uma obra de um autor polêmico como Alencar: alguns podem deter-se ainda diante da hipertrofia imagística ou lingüística, mas um leitor maduro percebe sua contribuição valiosa para uma questão que se nos aparece em tempos de globalização: a da identidade cultural.
SUASSUNA, Flávia. Iracema, de José de Alencar: globalização x nação.
Disponível em http://fsuassuna.blogspot.com Acessado em 21/07/2006.

 
At 10:44 PM, Blogger Unknown said...

eu estou precisando de uma ajuda para o meu TCC, e gostaria muito da sua ajuda professora Flávia Suassuna, se possivel me informar seu e-mail para que possamos conversar, o meu e-mail: ricardos.gomes@atento.com.br
aguardo um contato seu por favor

 

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