sábado, setembro 02, 2006

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

IX

Fico até hoje questionando as minhas convicções religiosas: se, ao entregar meu corpo a um homem que jamais vira em toda a vida, eu cometera um pecado grande demais, ou se ele é perdoável, sendo levadas em conta esta ou aquela razão atenuante. Nas minhas convicções de adolescente, eu sempre considerara o amor a coisa mais bela e a única por que se deveria viver; e o sexo sem ele a coisa mais sórdida e suja do mundo. Havia em minha mente somente essa divisão extremada e o relativismo do que veio a me acontecer deixou-me louca de culpas e doente até de tanto sofrer. Até agora, e eu estou com 70 anos, não posso entender que espécie de loucura foi a que se apossou de mim naquele momento, só sei que dele, além das culpas posteriores que eu mesma impus a mim, só pude desde sempre me lembrar dos prazeres, alegrias e calmas que me trouxe.
Fico sempre a agradecer àquele homem, que nunca mais vi, de estar ainda viva depois de tudo o que me aconteceu: jamais teria suportado a morte de tantas e tão amadas pessoas se, com aquele homem, não houvesse aberto e minha mente nem abrandado as minhas ânsias.
Fui-me embora já de manhãzinha para a minha casa, não mais possuída pelo medo, mas pela culpa. Recebi naquela noite o mais inesperado presente de Natal que jamais recebera: carinhos e delicadezas de um homem que nem ao menos conhecia. E, por outro lado, dei a ele outro ainda mais: o meu corpo virgem, que se lhe abriu inexplicavelmente.