O aniversário de Clarice Lispector
− Dez de dezembro é o aniversário de Clarice Lispector, disse-me André Resende, há cerca de três semanas.
Nós acabáramos de dar
uma palestra juntos, com Lula Couto como mediador. E tínhamos, se bem me
lembro, discordado em tudo. Eu falara das funções da literatura e de como os jovens
não podem perder o contato com as narrativas, digamos assim, míticas de uma
cultura. André Resende, com um jeito tímido e pouco didático, tinha denunciado
a falta de um projeto de formação de leitores nas escolas do Recife e falado
sobre como a literatura é sempre para muito poucos.
Houve um curto
circuito na minha cabeça. Primeiro, porque dez de dezembro é o aniversário de
meu pai; depois, porque me lembrei do século XIX, o tempo de ouro da literatura,
de Victor Hugo, de Tolstói, autor que mais me ensinou até hoje, e de como os
escritores, nesse momento, faziam as vezes de voz muda da consciência de um
povo.
André continuou
falando:
− O
filho de Clarice Lispector, Paulo Gurgel, queria instituir “A hora de Clarice”,
um projeto de atenção à obra dela, todo dia dez de dezembro. Vocês topavam
levar isso adiante comigo, aqui na Livraria Jaqueira?
Eu e Lula topamos. Na
verdade, atenção a escritores é a minha missão, eu não podia “amarelar”, como dizem
meus alunos. Começamos devagar a organizar tudo, com os limites dos nossos
temperamentos. Iara, uma fada lá da livraria, também assumiu conosco o
compromisso.
Combinamos que as
pessoas passariam e-mails para mim dizendo que conto ou crônica gostariam de
ler. Pois havia uma hora inteira de leitura de textos de Clarice Lispector de
manhã e duas horas à tarde, afora outras atividades: na “hora do conto”, evento
de muito sucesso da Livraria Jaqueira, a contadora de histórias infantis iria
narrar histórias de Clarice; os encontros mensais da União Brasileira de
Escritores (UBE) e das “Frentes da Psicanálise” reservariam suas pautas para
Clarice e sua obra.
Ao longo da semana
anterior ao aniversário, principalmente, a lista virou uma sanfona – crescia,
diminuía, as pessoas pediam para eu escolher, eu respondia que cada um
escolheria o texto de sua preferência, elas escolhiam, desistiam, escolhiam
outro texto... e-mail para lá, e-mail para cá...
Certas pessoas amam alguns textos de Clarice
Lispector, queriam ler “aquele” conto, lamentavam quando ele já tinha sido
escolhido, apontavam outro a contragosto. Eu tinha que ter cuidado, pois o caso
de amor das pessoas com Clarice é poderoso; elas se identificam com as
personagens, emocionam-se, conhecem as histórias, dizem que gostam dos lugares
que ela refere, visitam-nos, tiram retratos, falam da praça onde ela morou, da
fonte da praça, da escola onde estudou...
Há uma espécie de
triangulação inexplicável entre a cidade do Recife, seus habitantes e Clarice, a
qual não é de lugar nenhum, mas o canto a que mais pertencia era o Recife, como
bem dizia. A cidade do Brasil que mais vende livro de Clarice é Recife, quem
gosta de livros adora “Felicidade
clandestina”, aliás, o livro inteiro é amado pelos recifenses; as crônicas, por
seu turno, trazem-na ainda mais para perto de nós – ela nos fala de suas
empregadas domésticas, de suas dificuldades financeiras, de seus amigos, de
seus filhos adorados... e do Recife, a cidade de sua infância, esse momento que
imprime em nós o que seremos.
Nós, recifenses,
intuímos isso de uma forma não explícita, sabemos como nossa cidade faz parte
daquilo que Clarice é e, em silêncio, gostamos disso, até nos orgulhamos disso,
de um jeito reservado, como só os pernambucanos fazem. Como Clarice faz. Há uma
rota de entendimento calado entre nós...
Chega o sábado, dez de
dezembro, depois de algumas reuniões e e-mails. De manhã, tivemos um pequeno
atraso, lemos alguns contos... As energias estavam ainda desarrumadas, as
coisas correram apenas bem. Minha lista começou a dar errado.
Aí Clarice começou a
agir. Fez André desistir de sua timidez e resolver ser o mestre de cerimônia
durante a tarde e a lista começou a funcionar, não de forma objetiva, mas ao
sabor dos ventos e do acaso. E tudo se encaixou.
Começamos a chorar
juntos enquanto líamos, a rir juntos, a olhar um para o outro e saber o que
queríamos dizer, o que o outro pensava ou sentia. As palavras de Clarice abriam
caminhos entre nós, nossos corações começaram a bater no compasso do dela e nos
entendemos, nos emocionamos juntos e falamos por ela, com ela, sobre ela e, ao
mesmo tempo, sentíamos que ela falava conosco e nós nos sentíamos traduzidos,
tocados, felizes...
Não deu tempo de todos
lerem, mas ninguém se importou... Estávamos plenos de compreensão do outro, de
nós mesmos... A plateia sentia essa sensação de alguma forma, havia uma coisa
boa no ar...
Chegou a hora da
palestra dos psicanalistas, que trouxeram mais compreensão, mais reflexão... As
perguntas, depois da explanação, foram ótimas, os adolescentes presentes não
ficaram inibidos e enunciaram perguntas, dúvidas, fizeram colocações...
Eu sei que somos uma
babel. Não conseguimos nos entender, não porque falamos línguas diferentes, mas
porque não somos tolerantes o suficiente com o outro e sua idiossincrasia.
Muros, guerras, bombas, cercas, armas e seus conseguintes desastres traduzem
nossas imperfeições, nossos defeitos, nossas impossibilidades, nossas
incapacidades de conviver em harmonia. Eu sei.
Entretanto, no dia do
aniversário de Clarice, lá na Livraria Jaqueira, vencemos essa torre. E
conseguimos entender, perdoar, relevar, improvisar, fluir, falar, ouvir... ser!
É claro que havia a
senha de Clarice, seus textos francos, sofridos, suados, molhados de
lágrimas... humanos, enfim. E, através dela, nos aproximamos, sem medo uns dos
outros.
O mundo é uma noite
numa trincheira... mas, às vezes, num instante, compreendemos que Platão tinha
razão e que, portanto, é possível haver um mundo diferente, habitado por
pessoas melhores, que confraternizam e são felizes na sua trajetória. E que a
arte é um código de acesso a esse mundo para o qual rumamos, inevitavelmente.
Não estamos seguindo
na mesma velocidade, é certo; às vezes, nos perdemos pelo caminho. Mas o
aniversário de Clarice é a prova: venceremos!
A Paulo Gurgel, André
Resende e Clarice Lispector, que, de jeitos diferentes, me proporcionaram um
dia bom!
5 Comments:
Quer dizer que Platão já cantava Imagine no século 3 A.C.?!
Acho que ninguém, nenhum professor ou escola pode lidar com os outros para que gostem de literatura se não for do mesmo jeito que a literatura lida conosco: com profunda intimidade compartilhada, entusiasmo instigante.
Sei e creio, a contragosto,que a literatura não é para todos, mas sei que pode ser para mais gente do que de costume. Parabéns a vocês.
Genésio Fernandes
Flávia,
Conhecer você foi um dos melhores presentes da minha vida. Quando as pessoas perguntam se você é uma boa professora ou se gosto de você, não tenho palavras para explicar nem um terço do que você passa, fala, muda. Isso mesmo, creio que a melhor palavra seja MUDANÇA, você tem um Dom de mudar as pessoas ao seu redor, não são todas, mas são muitas. Ano passado, 2010, eu tinha "projetos de crescimento individual", como todos têm; o problema é que eu pensava que iria realizá-los só aos 40 ou 50 anos, mas você parece que os acelerou de uma maneira... Aprendi a desvalorizar mais as coisas materiais, a ser mais humano, mais solidário, talvez, Flávia, aprendi a viver. Fernandinho, na última vez que falei com ele, disse algumas coisas que me marcaram, disse que este ano foi o melhor da minha vida, que eu tinha mudado muito e era isso o que mais importava; como sempre, agradeci a ele por ter indicado você e corfirmei o que disse. Sabe, Flávia, as pessoas têm que perceber que, se elas não passaram no vestibular, não significa que "perderam o ano", se eu não passasse e no próximo ano aprendesse 50% do que qprendi neste ano, já era uma enorme felicidade. Vou corregar você, como já disse, para toda vida, nunca esquecerei seus olhos brilhando na hora da aula, suas palavras de mãe, desse anjo torto que adentrou na minha vida. Parece, Flávia, que já conheço você faz tempo, tem coisas na vida que surgem e ficam, não consigo pensar na minha vida sem sua marca. Você é minha Profmãe e sempre será, jamais esquecerei você.
De seu eterno Filho,
Gustavo Carvalho.
Flávia, vim dar a ótima notícia de que passei em ADMINISTRAÇÃO na UPE, pelo seriado.. vim aqui para agradecer, mais do que tudo, pela ótima oportunidade que você me deu de aprender literatura e redação... só passei por causa de você. Obrigado flávia. E, sim... estou gostando muito de "Grande sertão: veredas"... Um beijo...
Jáder Cabral.
Flavinha, sou seu aluno do Núcleo de estudos, e fui ano passado à Hora de Clarice, acabei ganhando um marca página que você mesma o fez. Espero que esse evento se estenda a todos os anos... Grande beijo!
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