Segunda resposta
Tive acesso, ontem, pelo Whatsapp, a
uma argumentação de Flávio Brayner. Intitulado “No escuro e sem corrimão”, o
texto de sua autoria era datado de 15/08/2017 e me chegou com uma espécie de
epígrafe, que dizia: “Ele disse tudo!!!”. Como acho que nunca a gente consegue
dizer tudo, queria acrescentar algumas ideias à discussão que o texto inaugura.
Na verdade, ele é uma réplica a uma
entrevista anterior de Sílvio Meira ao Jornal do Commercio, em que o empreendedor,
à medida que se apresenta, defende ideias para a educação brasileira. Ouvi com
cuidado tudo o que foi dito na entrevista e me impressionei com dois fatos: não
consegui ouvir as entrevistadoras Luíza Freitas e Margarida Azevedo, e as
ideias do entrevistado já estão sendo postas em prática.
A partir desses fatos, comecei a
pensar e a registrar ideias. A primeira que me veio foi a de como estamos todos
seduzidos pela sereia da simplificação e da uniformização. O empreendedor
começa a sua fala dizendo que “o único fundamento” da educação seria que as
pessoas devem aprender na escola as bases para continuar aprendendo. Em
seguida, começa a listar tais bases: língua portuguesa, lógica e matemática
abstrata binária e executável (“não aprender a programar é mortal”, ele diz) e
línguas estrangeiras (ele aponta inglês e mandarim, para se fazerem negócios). Depois, começa a explicar o que já
se está fazendo aqui em Pernambuco: a partir de ‘games’, os quais têm ligação direta
com o aprendizado de física, música, biologia e ‘design’, pretende-se ensinar
os alunos a executarem uma profissão que contribua com a economia. Citando
experiências de países como Finlândia, Coreia do Sul, Inglaterra e Alemanha, defende
que todos devemos estudar programação de computadores e assuntos técnicos,
porque “o mundo é uma sequência infinita de boletos”, e existimos para pagá-los.
Depois resume: a escola deve ensinar “a mesma coisa, o tempo todo, para todo
mundo”. Inclusive elogia países cujos governos pagam os estudos de ciência,
tecnologia e engenharia e não os de filosofia, história, educação e psicologia.
Em outras palavras: daríamos ao governo (ou seria ao Estado?) o extremo poder
de definir o que seria prioritário em educação, dentro da lógica apenas
produtiva e competitiva.
Rubem Braga tem uma crônica linda – a
que já me referi uma vez em meus escritos – chamada “Recado ao Senhor 903”, na
qual ele pede desculpas ao morador de seu prédio que reclamara do barulho de
sua máquina de escrever. Ele não sabe o nome da pessoa, por isso a chama de
Senhor 903 e, daí em diante, vai desfilando uma sequência de números relativos
ao apartamento em que mora, à hora em que se tem de parar de fazer barulho, ao
ônibus que toma, ao número do prédio e da sala em que trabalha... E acrescenta:
“nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser
tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando
dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo...”.
Essa frase última me persegue, porque
um dos dias mais importantes de minha vida foi quando Germana (que não era minha
professora, mas uma tia que tinha estudado Filosofia, apesar de ser funcionária
do INSS), com quem muito conversava e que participou de minha formação
intelectual, me explicou como Platão pensava. Foi como um raio! Tudo ficou
claro para mim! Eu me reconheci naquelas palavras conotativas que falavam de um
mundo possível mais verdadeiro, mais justo, mais igualitário... Desde então,
minha vida tem sido imaginar como o mundo pode ser diferente do que é e
escrever... E, recentemente, algo se colou a essa compreensão: o fato de ter
lido um pequeno e significativo poema de Fernando Birri que dizia que a utopia
serve para isto: para ajudar a caminhar...
Ganhei quase nada com o que escrevo, mas escrevo bastante, com medo da
parábola dos talentos – uma história bíblica que fala que Deus perguntará a cada
um de nós o que fizemos com os talentos que nos deu.
Quando vou me explicar, narro um
episódio antigo que me aconteceu ainda no ginásio, como se chamava o que hoje
identificamos como fundamental 2: uma freira da escola em que estudei queria
que classificássemos orações coordenadas e subordinadas num texto de José de
Alencar, mas eu me desliguei totalmente do objetivo dela e me perdi nas
palavras maviosas do autor. Até hoje sei de cor o texto (que adoro recitar para
os meus alunos), além de ter me tornado uma professora de português e uma
escritora intermitente. O que quero dizer é que a escola não faz de nós o que
somos; ela apenas dá umas ferramentas (algumas quebradas) e nós é que nos
viramos no mundo e na vida afora. Ou não: infelizmente, muitos de nós, por
questões políticas, sociais, familiares, individuais... ficam pelo caminho,
amargando pobrezas e infelicidades de toda sorte ou azar. Não foi o aprendizado
da lógica binária que fez de mim o que sou, foi o caminho que esse texto me
indicou. E que indicou a mim, mas não à grande maioria de minhas amigas de
classe, que se tornaram professoras, funcionárias públicas, atrizes, médicas,
donas de casa, engenheiras... Precisamos de vários caminhos, porque somos
diferentes uns dos outros e, portanto, queremos coisas diferentes e gostamos de
coisas diferentes... E fazemos para nós caminhos diferentes... E o sucesso
é um substantivo masculino (no sentido de que homens são executores mais
eficientes do seu significado, até porque foi deles cobrado muito mais do que
de nós, mulheres) e plural (no de que é preciso ver outros sentidos que
também são válidos para entender a palavra). Ou seja: por motivos espirituais, não econômicos, escrevo sem ganhar
nada. Apesar disso, pago os boletos de minha vida, exercendo uma profissão que
sequer foi citada na explanação do empreendedor...
Eu poderia ter ficado feliz com a
ideia de Sílvio Meira de que se deve ensinar a língua. Mas não sou idiota: sei
que ele não contempla a matéria que leciono – história da literatura. Nem
linguistas consideram isso importante, só eu mesma, a esta altura. Na verdade,
acho que a literatura e a arte não são produzidas para que aprendamos nada. Mas
a discussão sobre elas enriqueceu minha vida e minha percepção, e tenho um
jeito muito exclusivo de ver o mundo, e talvez seja isso que Sílvio Meira e
companhia limitada não queiram: que se formem pessoas capazes de pensar,
criticar, refletir sem objetivo prático, a partir do conhecimento da tradição
do passado, das experiências registradas de muitas pessoas que criaram um acervo
de visões, de saberes, de sentires, de sonhos, de interpretações que são como
uma bússola que nos guia para um futuro “que fala a nossa língua”, como diz Mia
Couto. Em outras palavras: nenhum conhecimento é gerado fora de um contexto cultural e ambiental – o que é bom para um país africano não é bom para o
Brasil; o que é bom para o Japão (país citado por Brayner e que tem índices horripilantes
de suicídio de jovens, em virtude do seu projeto educacional acachapante) não é
bom para o Brasil.
As ciências humanas não podem ser
ensinadas por quem não se identifica com elas e há perguntas que não são respondíveis
pela matemática. Meus alunos, quando estou em horário de atendimento de
dúvidas, por exemplo, me trazem redações para que eu lhes diga como estão seus
textos e questões cujas respostas não sabem; porém, às vezes, perguntam-me
sobre suas vidas – recentemente, um deles, um pouco mais velho, me pediu que eu
dissesse a ele se uma atitude que teve em relação à esposa foi machista. Minha
própria terapia, meu amadurecimento e um pequeno conhecimento de psicologia vindo
da literatura me foram de grande valia para lhe dar minha resposta, baseada
também na história, porque eu conversei com ele sobre os antigos e mais
modernos conceitos de homem. Aliás, a física
parece muito prática, mas o estudo dos buracos negros e das galáxias é tão sem
pé nem cabeça quanto o das artes, da filosofia e da psicologia. E acho que o
exercício da imaginação e do raciocínio abstrato que as ciências humanas permitem
aparelharia para esse e outros estudos...
Por último, quero dizer que ninguém
do passado imaginou o futuro que fizemos, nem acertou as habilidades e as
competências que teríamos de ter para sobreviver hoje; ninguém previu, por
exemplo, o tal do computador de que tanto o Meira falou. Em outras palavras:
estamos reinventando a nós mesmos, para viver nesse mundo virtual, que é o
único que o empreendedor parece ver, como se vivêssemos nele e para ele apenas.
No entanto, vivemos para nossos filhos, alunos, irmãos, amantes, amigos, para
nós mesmos, para sermos felizes... Para buscar sentidos... saídas... E tudo
isso é muito difícil... E precisamos de mais do que matemática binária para
fazer das tripas coração e nos refazermos para um mercado inimaginável há dez anos
e que nos assombra com suas exigências... E precisamos saber as narrativas que
foram escritas com versões e sentidos sobre nosso passado e nosso presente, para
que não reinventemos a roda... nem paremos de progredir... Ao contrário:
precisamos aperfeiçoar todos os caminhos para que escolhamos viver, sem falha
na esperança, essa vida cujo sentido é não dado mas construído. Não na
matemática, mas a partir de um calidoscópio de saberes, nenhum descartável, principalmente no nosso país, cuja diversidade não existe
em nenhum outro e precisa de expressão.
Guimarães Rosa tem uma frase que me
ajuda a terminar este texto difícil: “uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra
é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...”.
Ela nos obriga a prestar atenção ao fato de que as pessoas têm seus tempos e
seus espaços (Joinville não é igual a Taperoá) e não são facilmente cabíveis no
plano único que Sílvio Meira propõe (“a gente pega as melhores práticas, ‘reseta’
o sistema, levanta a barra de nível e exige que todo mundo passe para o próximo
nível”). Ela nos desvela as nossas complexidades. Ela nos ensina a ir em frente,
sem abrir mão de nós mesmos. Ela nos fala de como é difícil seguir de mãos
dadas... Mas difícil não é impossível...
1 Comments:
Que belo texto! Que inveja por não o ter escrito...
É impressionante como "empreendedores" da área da informática são obtusos, vivem o virtual e esquecem que são gente, que há sangue sangue e coração no mundo real! Se no virtual não há, logo não existe.
Um grande abraço, Wanderley Geraldi.
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