AMOR
Gosto muito de palavras e tenho uma especial curiosidade sobre elas. Um amigo que sabe disso me provocou, perguntando-me a diferença entre as palavras “amor” e “amizade”. Eu não acertei a responder de imediato; passei um tempo pensando e, em seguida, comecei a ler e a fazer perguntas a mim mesma ou a outras pessoas... Quando começo a fazer isso, as palavras sobre as quais estou pensando começam a revelar os seus ladinhos, como um diamante, e a minha relação com elas muda totalmente... E elas ficam minhas de um jeito bem particular... De início, conforme já disse por aí, procuro-as nos dicionários, mas isso nem sempre traz resultados satisfatórios: neles as palavras estão meio mortas, fora de contexto, não têm a beleza de pertencerem a alguém ou de serem colocadas em lugares inusitados e criativos, certas pessoas têm essa habilidade...
Pois bem, em
português a palavra AMOR tem uns quatro ou cinco significados, de acordo
com o meu Houaiss; confesso que não acertei direito a contá-los: o de
ser um sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem; um
sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro, ou a uma causa; ou
uma inclinação ditada por laços de família; ou mesmo pelo sexo; um apego
profundo a valor, coisa, ou animal; ou uma devoção extrema ou o objeto
mesmo do amor. Se não acertei nem a contar os significados, vê-se que não
apreciei o resultado da pesquisa. Aí fui lá nas raízes antigas de nossa
língua e terminei por achar algumas palavras que me ajudaram a arrumar
melhor as compreensões.
A primeira palavra que achei
foi PHILAUTIA, o amor que sentimos por nós mesmos, isto é, a autoestima.
Esse amor corre o risco de aparecer de forma falsa, traduzida em
arrogância e narcisismo, temperados com gosto pelo dinheiro, pela fama e
pelo poder. Em contraste a essa postura, entretanto, uma saudável
aplicação desse amor resulta em compromisso de cuidar de nós mesmos e,
por conseguinte, dos outros. Parece que todos os outros amores resultam
desse, pois só é capaz de amar aquele que se ama. E aquele que sabe que o
amor é a favor de todos os envolvidos.
A segunda palavra é
STORGE, que é o amor demarcado, como diz João Guimarães Rosa, entre
irmãos ou parentes: nós não os escolhemos... Por algum propósito
invisível, eles vieram ao mundo para dividir conosco muitas espécies de
espaços. Viver esse amor é aprender a dor de tudo repartido. Pior: tudo
importante repartido. Esse amor pode ser bem difícil, pois essa partilha
obrigatória exige reciprocidade, disciplina e grande esforço de
compreensão e de perdão. Em contrapartida, se exitoso, esse amor pode
ser um de nossos últimos abrigos: todos conhecem irmãos que se
tornaram grandes amigos na última parte da vida. Essa forma de amor pode
não ser entre iguais, conforme o caso de pais que amam seus filhos de
tal forma que sacrificam por eles a comodidade de uma vida inteira.
Dizem as más línguas que é por causa desse amor que existem psicólogos e
psiquiatras, mas eu discordo. Na verdade, somos um todo indivisível e,
quando erramos num amor, tendemos a errar nos outros, isto é, se não
acertamos a exercer o amor STORGE, temos grande chance de errar no EROS,
por exemplo, cometendo o mesmo erro. O problema é que não conseguimos
enxergar e seguimos levando a vida de embolada, como dizia a minha
avó...
ÁGAPE é o amor com que Deus nos ama e com que devemos
tentar amar o próximo. Acredito que amamos o distante ou o diferente com
a palavra “tolerância”, que não está muito presente aqui. As
palavras com que se pode temperar este amor chamado ÁGAPE são “aceitação” e
“incondicionalidade”. É um amor que não espera nada em troca e com o
qual podemos amar até nossos inimigos. Ele também traduz o sentimento
desprendido e abstrato de algumas pessoas pela humanidade, pelo planeta,
ou pelo universo. Talvez seja esse o amor que algumas pessoas têm pelos
animais.
A quarta palavra é PHILOS, que é o amor escolhido dos
amigos. Acho que ninguém optaria por viver sem eles, já que somos seres
sociais. Pode ser mais fácil do que o STORGE, se bem que cada amor
apresenta certo grau de dificuldade, pois amar é um desafio, às vezes,
desconcertante. O PHILOS é a forma de amor menos natural, já que nela
não existem laços de sangue, nem de desejo; é também o amor da troca, pois acontece entre iguais. Costumamos mais traduzi-la com o verbo “gostar”.
A
quinta palavra é PRAGMA, que é um amor com que pretendemos alcançar um
bem maior: nele o romance e a atração ficam secundarizados,
evidentemente sem serem anulados, em favor de metas compartilhadas. Esse
tipo de sentimento aparece em casais que se formaram a partir de
matrimônios arranjados, ainda comuns em algumas partes do mundo; ou
inspira outros a manterem o relacionamento por causa dos filhos ou da
concretização do conceito de família funcional ou estruturante,
aprendido por capilaridade social ou familiar; ou é um ponto de chegada
evolutivo de relações que começam por motivos que não são suficientes
para conservá-las por muito tempo. O segredo desse amor é a dose de
sexualidade com que se consegue temperar a relação para não deixá-la
vulnerável ao ataque do vendado Eros, deus mitológico que atira
aleatoriamente e costuma acertar algumas flechas nos mais desavisados
pragmáticos. Algumas de nossas disfunções familiares acontecem em
virtude da quebra desse verdadeiro pacto, a qual tem feito rios de
lágrimas ao longo de nossa história; ou da incapacidade de alguns de
permanecerem no patamar desse amor que se apoia em altruísmo e não em
exigência.
Por fim, alguns textos referem uma diferença entre
as palavras LUDUS e EROS. LUDUS seria o oposto de PRAGMA, embora possa
crescer para outras formas, à medida que o tempo passe e as
circunstâncias mudem; a forma LUDUS de amor é definida como brincadeira,
alegria e falta de compromisso, como no caso de amigos que fazem sexo;
dizem os entendidos que, com o tempo, ela tende a desaparecer ou a se
transformar em PHILIA ou EROS. Por sua vez, o amor EROS não é um amor de
troca, principalmente, uma vez que tem certo apelo ou expectativa de
satisfação pessoal. Ainda que possa incluir sentimentos verdadeiros pelo
outro, EROS é mais um amor próprio do que altruísta. Liga-se à atração
física e ao sexo e é dele que falamos quando dizemos as palavras “amor” e
“paixão”. Apesar de perigosíssimo, nós o perseguimos e, quando o
encontramos, somos totalmente dirigidos e dominados por ele, que nos
tira de tempo e de lógica. É por causa desse amor que cometemos os
crimes passionais e nos metemos nas maiores encrencas; esse tipo de
amor, na maioria das vezes, tem prazo de validade de poucos anos, pois
esgota os amantes, que se sentem, com o tempo, asfixiados e isolados do
convívio social do qual terminam por sentir falta. Alguns de nós só
conseguem viver o amor, se sentirem “esse” amor, e seguem trocando de
parceiros vida afora, sem conseguir estabilidade emocional, sempre
dentro do turbilhão destrutivo de sentimentos que só EROS é capaz de
trazer. Manuel Bandeira tem um poema muito bonito chamado “Arte de amar”,
no qual afirma que, caso se queira sentir a felicidade de amar,
tem-se que esquecer a alma, a qual só encontra satisfação em Deus ou
fora do mundo, além de ser incomunicável. Finaliza asseverando que só os
corpos se entendem. Seu raciocínio leva a crer que, diferentemente do
acima constatado, EROS é um tipo de relacionamento que leva à
compreensão e à paz, as quais, de fato, não são atingíveis quando tão
grandes e exigentes doses de autossatisfação são entremeadas – é claro
que as crescentes demandas de gozo e satisfação exaurem os amantes,
depois de, muitas vezes, os terem levado a ações questionáveis, como
brigar, agredir, matar, mentir, trair, cobrar, abandonar filhos, as
quais, na sua vigência, parecem apenas apimentar a relação, mas, na
verdade, ferem e ameaçam a felicidade possível de muita gente.
Na
minha opinião, transitamos o tempo todo entre esses amores e os
intercambiamos. Às vezes, nossa autoestima está baixa, às vezes alta; de
vez em quando, passamos por crises no STORGE que duram muitos anos, mas
conseguimos reverter; ao longo de um relacionamento amoroso, o amor
EROS ou o PRAGMA dirigem nossas ações; temos períodos em que buscamos
mais ou menos a companhia de nossos amigos; encaramos o sexo de forma
mais ou menos lúdica... Entretanto uma coisa precisamos entender: o
amor, seja ele qual for, não nos traz só felicidade. Drummond, num poema
lindo chamado “Campo de flores”, refere-se às duas mãos do amor − uma
que acaricia, outra que carrega o “grão de angústias”... E, às vezes,
nem acho que é só um grão, é sofrimento grande e difícil... O amor,
embora tanto o queiramos e o liguemos à nossa felicidade, é
difícil, exige tolerância, ação e diálogo, machuca, confronta quereres
e, o pior: cursa imprevisivelmente, porque é um componente da vida que,
diferentemente da navegação, é imprecisa, como bem o disse Fernando
Pessoa (revendo com cuidado essa colocação, percebo que, mesmo a
navegação inclui desastres assombrosos, já estou na dúvida se o poeta
foi tão feliz assim na sua metáfora).
Estou pensando agora que,
no contexto de nossas relações amorosas, feliz ou infelizmente, não sei
ao certo, esgotamos experiências num patamar da nossa existência e, para
continuarmos nos desenvolvendo, precisamos ir adiante... Mas com o
nosso parceiro ou parceira não acontece a mesma coisa... Nessa situação,
que pode incluir separações conjugais, antigamente, precisávamos armar
as maiores hipocrisias sociais, por dependência econômica,
impossibilidade de novos formatos conjugais, questões jurídicas... Hoje
nada disso é impedimento para um número cada vez maior de pessoas:
independentemente da idade – já que usufruímos de uma maior expectativa
de vida –, nos separamos, recasamos ou não, moramos em casas diferentes,
armamos relacionamentos abertos, homoafetivos e mais coisas
além, inventamos “harmonias bonitas e possíveis sem juízo final”, como
diz Caetano Veloso, e continuamos a fazer História que, no fundo, são
cisões comportamentais e cognitivas adaptativas. É claro que entre nós
sempre há e haverá níveis maiores ou menores de adesão ao acervo de
tradições e formatos históricos mais conservadores; entretanto verifico
que nunca vivemos, como espécie, numa sociedade tão plástica e tão
acolhedora de novos arranjos matrimoniais, embora eu não possa deixar de
verificar as violências ainda existentes, em virtude das ambiguidades e
dificuldades inescapáveis à nossa condição humana.
O que não
podemos é desistir da utopia de nos relacionar a dois com afeto. Não sei
direito o que significa essa palavra (de novo o dicionário não ajudou).
Mas desconfio de que posso, inclusive, fixar neste texto um
significado: estou usando-a num sentido próximo de “generosidade” e
“esforço”. A experiência de doação/posse irrestrita e íntima, decorrente
de um processo de desnudamento muito além do corpo, é das mais
comoventes entre nós. Reduzi-la a um embate apenas material é perder de
vista aquilo que há em nós de possibilidade de acolhimento profundo do
outro. Não quero encobrir o vigor inegável com que se dá esse encontro,
que, inclusive, é uma das realizações mais bem acabadas das
incongruências em que nos movemos. Nem idealizar nossas relações tão
cheias de defeitos. Quero contemplar nossas complexidades e nossas fomes
e sedes, que não são apenas de alimento e água: também carecemos de ser
psiquicamente acolhidos, e isso não é possível quando apenas a biologia
é considerada. Esse algo além do corpo, que é nosso tutano primeiro,
implora por gestos e permissões inventados, dialogados e compartilhados
“parmente”, o que termina por gerar em cada dois uma gramática
relacional única e bonita.
A história de que “sexo” e “amor” são
duas palavras separadas, não tem lógica; pode até ser mais simples
pensar assim ou pode ser um jeito de garantir satisfação sexual num
tempo hedonista em que se confunde desejo com direito. Mas não acho que
simplificações estão trazendo felicidade, só liberdade – e uma sem a
outra, pelo menos para mim, não é suficiente. Também não acho que ser
feliz a dois independe, por completo, das narrativas sociais, pois o
amor, o afeto e outras “palavras” que usei aqui são também uma
construção grupal. Enfim, não acredito na felicidade de um casal
alcançada com traição e mentiras: o afeto é um rio de água limpa, e a
generosidade não pode existir entre dois se não estiver presente entre
muitos; conforme já disse, não acredito que uma pessoa seja generosa em
apenas uma das esferas de sua vida, já que não somos seres com gavetas
comportamentais.
Amar a dois é difícil: por ser o amor uma
construção histórica e, portanto, mudar de sentido; por envolver pessoas
cujas funções, papéis e ontologias são também mutantes; por exigir o
melhor de nós; por obrigar a alteridade; por atuarmos num palco ambíguo e
contaminado por nossos defeitos; por estarmos lidando com novos
conceitos de “feminino” e “masculino”, por sentirmos tudo isso como
ameaças a que devemos reagir; por vivermos num tempo em que alimentamos
demais os interesses pessoais... Em contrapartida, em nome do amor,
criamos descendência; riquezas; valores; sentidos; identificações; novos
desejos, trajetos e compreensões... Infelizmente, cada repressão
suplantada revela tantas outras dificuldades... Esse acervo de erros e
acertos está guardado nas nossas palavras: poemas, narrativas,
depoimentos, roteiros de filmes e peças teatrais preservam nossos
êxitos, decepções, lágrimas, expectativas, medos, sonhos...
Então:
partindo do poeta argentino Fernando Birri, finalizo dizendo que a
palavra “afeto” agora é minha utopia: ela está lá no horizonte... Quando
dou dois passos na sua direção, ela se afasta dois passos; quando dou
dez passos, ela se distancia dez passos... Caso me perguntem para que
raios serve tudo isso, eu explicarei: a palavra “afeto”– a que agreguei
os mais delicados gestos e os mais exclusivos desejos – é uma bússola que
me ajuda a seguir...
11 Comments:
Este comentário foi removido pelo autor.
Lindo. Amei. Mateus (seu MM)
Você, nossa! Deixou-me sem fôlego. Obrigada por me julgar capaz de compreender. Mais que isso: de sentir os significados. De degluti-los. De poder pensar em como e quanto tudo isso vem afetando a minha vida. Em como e quanto está intricado no ser e no sentir de cada pessoa. Muito além do corpo. Beijos.
Miriam (da Ideia Fixa)
Querida Flávia, que texto profundo e maravilhoso! Sem perceber, à medida que a leitura avançava, fui me emocionando, aprendendo e apreendendo palavra por palavra. Obrigada por me proporcionar leitura tão edificante. Obrigada por lembrar de mim ao pedir que meu amado Daniel me enviasse o texto. Receba meu aplauso e meu carinho. Na próxima semana o abraço será dado pessoalmente. Beijos no coração. Janice
Li inteiro. Achei excelente., Pimpa. "O afeto é um rio de água limpa". Adorei. Palmas.
Jane
Muito lindo. Beijos. Lula Couto.
Amei esse texto, minha Pim e, diante da minha total incompetência em me expressar em outras línguas, vou usar o nosso português, para exprimir esse sentimento tão grande que nos uniu por uma vida inteira: te amo muuuiiitttttooooo!!!!! E tenho a maior admiração pela pessoa super especial que a vida fez brotar de você. Feliz Natal pra vocês todos, querida!!!! Verônica.
Obrigado pela preciosidade desse texto. Pedro Gabriel.
Amei muito, muito, muito. Ritinha.
Professora, está lindo!! O final ficou sensacional!!! Eu estou emocionado! Quando você me disse "falta alguma coisa aqui no final", não pensei que vinha uma coisa tão linda. Romildo.
Flavinha, Nanda aqui. Li com a senhora esse texto na mesa e decici deixar aqui marcado o quanto eu o adorei. Lindo, lindo, lindo!!! Beijão, professora.
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