"Os Sertões", de Euclides da Cunha
Em virtude do programa do vestibular
seriado da UPE, começo minhas aulas do terceiro ano do ensino médio tendo que
conversar com meus alunos sobre o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que
abre o Pré-modernismo, aqui no Brasil. Embora eu fique imaginando como deve ser
estranho para os meus alunos ouvir falar de questões tão distantes de sua atual
realidade mental, confesso que gosto de provocá-los e de pensar que participo
um pouquinho da apresentação de fatos que ajudam a compreender os problemas do
país e vislumbrar saídas. Mais do que tudo, acho que tenho que explicar com
calma a eles que a guerra de Canudos não é, de jeito nenhum, uma realidade
distante de nós. Na verdade, não dá para pensar o país sem lançar mão desse
livro colossal – está tudo lá, ou estamos ainda lá.
“Os Sertões” chegou às livrarias em
dezembro de 1902, cinco anos depois do fim do conflito que o gerou. Publicado
pela editora carioca Laemmert, alcançou êxito imediato de público e de crítica.
Já teve mais de 50 edições em português e foi traduzido em mais de 10 idiomas.
Resultou da cobertura jornalística do conflito de Canudos, feita por Euclides
para o jornal “O Estado de São Paulo”. O autor testemunhou os últimos meses da
guerra (entre setembro e outubro de 1897), tendo participado da quarta e última
expedição que dizimou Canudos sumariamente. Graças a ele, temos ideia hoje da
real fisionomia dessa guerra: uma campanha de extermínio inaceitável, mesmo naquele
violento final do século XIX, no violento país que acabava de sair do violento
período da escravidão.
O problema talvez tenha aí seu ponto de
partida: a abolição incompleta que foi arquitetada aqui no Brasil. Ou seja: os
escravos restaram sem inserção, pois não houve reforma agrária, nem ampliação
do acesso à educação no país; ficaram à margem da economia e, consequentemente,
da sociedade. Nesse contexto, retirantes de seca, escravos fugidos, sem-terras,
ex-escravos desempregados, isto é, excluídos de toda sorte começaram a se
aboletar numa espécie de fazenda abandonada no sertão da Bahia e, liderados por
Antônio Vicente Mendes Maciel, terminaram por fundar uma cidade marginal
chamada Belo Monte, às margens do rio Vaza-Barris. Esse, digamos, acampamento
começou a ameaçar a ordem política vigente na época, e algumas escaramuças
surgiram; a primeira, em virtude de uma serraria não ter entregado aos sertanejos
a madeira já paga com que eles pretendiam fazer uma igreja nova. A guerra toda
durou quase um ano (de novembro de 1896 a outubro de 1897) e trucidou 5 mil
soldados e entre 10 e 25 mil sertanejos, não há como saber ao certo.
Esta semana alguns episódios me fizeram
lembrar o livro: um recado numa faixa que os habitantes da Rocinha mandaram para
o STF (“Se prender Lula, o morro vai descer”); a solução para o problema da
violência, proposta por um dos candidatos a presidente nas próximas eleições (metralhar
as favelas); e a possibilidade de uma intervenção militar no Rio de Janeiro.
Para entender a relação entre os episódios,
é preciso explicar devagar o que foi Canudos: uma guerra civil entre o que
Euclides chamou de dois “Brasis” – um litorâneo e outro interiorano. De acordo
com ele, o primeiro se ombreava com os países da Europa e tinha acesso à
cidadania possível tanto lá como cá; o segundo era constituído de excluídos,
como se diz hoje, ou de “brasileiros mais estrangeiros no Brasil do que os
imigrantes da Europa”, como ele disse, já que não dispunha do conceito e da
palavra atuais. Euclides tinha estudado engenharia na universidade determinista
de seu tempo e, pago por um jornal carioca, serviu de correspondente da guerra.
Saiu do Rio de Janeiro crente que ia ver uma realidade. Mas viu outra. Do morro
da Favela, de onde testemunhou a luta na planície à sua frente, enviou para o
jornal os primeiros textos acerca do fato. Depois da destruição do arraial, lutou
cinco anos com as palavras e as ideias de seu tempo (lembro que já li alguém
dizer que elas constituíram uma verdadeira camisa de varas para Euclides) e
terminou por escrever uma das obras fundamentais da nossa inteligência – um
texto com que um brasileiro descobriu o Brasil e registrou-o, ultrapassando o
jeito de pensar europeu: feito muitos cariocas, Euclides interpretava o
episódio como uma revolta monarquista que queria atrasar o Brasil; mas, ao
chegar lá, o que viu foi um problema político e social e uma população que desmentia
tudo o que aprendera. Em outras palavras: embora aquela população pertencesse a
uma “raça inferior”, na verdade, resistia heroicamente às investidas do
exército e sobrevivia sem o Estado e sem a Igreja, num ambiente inóspito.
Repousa aí exatamente a questão central do arraial e da região que o continha: essas
instituições, que deveriam garantir uma assistência mínima àquela população, estavam
concentradas na região sudeste e, na verdade, tinham-na abandonado à sua
própria sorte. Ou melhor: tinham não só esquecido aquela população mas também
estavam ali fortemente armadas atirando contra ela. A indignação de Euclides ao
longo de seu texto traduz muita coisa, mas, principalmente, a violência contra
o diferente e mais fraco.
O que temos hoje a ver com isso?
Simplesmente, tudo.
Ao longo do século XX, a população do campo
veio para as grandes cidades do litoral e se instalou nas favelas, uma verdadeira
remontagem do arraial de Canudos sob nossos olhos coniventes. A ligação é tão
forte, que a palavra “cortiço”, usada no final do século XIX, foi trocada por
“favela”, aquela que vinha da pena de Euclides quando identificava o lugar de
onde observou o conflito naquele distante e próximo 1897. Sem possibilidades de
inserção e excluída dos serviços básicos do estado, essa população – agora
urbana – constitui ainda um segundo país e precisa de ferramentas de cidadania,
como escolas e profissionalização, bancos, projetos políticos inclusivos de
saúde e de proteção ou segurança, como nós outros brasileiros. Entretanto continuamos
cometendo contra ela o mesmo erro lá do final do século XIX: armados até os
dentes – o que inclui o coração –, fazemos invasões e intervenções
preconceituosas e brutais que tentam calar sua voz que, como pode, exige ser
ouvida.
Cada assalto que se encena nas nossas
atuais cidades nada mais é do que a atualização desse conflito entre dois
“Brasis” que não acertam a caminhar juntos: a polícia e, às vezes, o próprio
exército continuam a fazer o papel de atirar em uns a mando dos outros, tudo
temperado com preconceito, ignorância e interesses escusos em manter o status quo estapafúrdio de conservar um
país inteiro para usufruto de apenas 10% de sua população.
É difícil viver num país tão cheio de
contradições. Mais difícil ainda quando, ao pensar nelas, colocamos sexo, cor e
classe nas ideias. Mais difícil ainda quando resolvemos usar armas e não
palavras nos enfrentamentos...
Mia Couto talvez me ajude a terminar este
texto aflito de hoje: no seu livro “A confissão da leoa”, ele trabalha os
efeitos nefastos do processo colonial que vitimou seu país e o nosso e diz,
corajosamente, que costumamos responsabilizar “os de fora” pelos nossos
problemas e não enfrentamos as questões “de dentro”. Encaremos: somos um país
com um povo cortado dentro, temos sequelas daquela divisão colonial que nos
separava entre senhores e escravos. Está mais do que na hora de nos ouvirmos
uns aos outros. Quando há circulação de palavras, o sangue deixa de correr. A
palavra dita, buscada, escrita, sonhada, desejada, ouvida, partilhada... é,
como diz Mia Couto, a única roupa que temos contra a violência com a qual
insistimos em viver e que nos vitima cotidianamente. Basta de repetir erros que
já cometemos no passado, por preguiça de ler e discutir com respeito e profundidade.
E de achar que manchetes simplórias dão conta de nossas complexidades. Somos
seres com passado, inescapavelmente, e precisamos ir na direção de um futuro
que fale a língua da tolerância, um idioma que só pode ser inventado quando o
exercício da palavra tomar o lugar das armas.
15 Comments:
O texto na sua forma de construção nos convida a uma leitura insurgente, até porque joga bem com as palavra. Nesse jogo, insere alusões ao presente de forma lúcida sem ser panfletária. O conteúdo é sem comentário. O diálogo com a obra e o momento atual é uma pérola no deleite a leitura. E reforça ainda o gigante e visionário que é o autor. Outro aspecto que percebo nitidamente é que as pitadas da história ganham força na sua forma de escrever.Euclides da Cunha, um visionário do seu tempo com um olhar além do óbvio. Fábio André.
Muito bom. A desigualdade é talvez o pior mal que aflige o Brasil.Parabéns. Vou encaminhar seu texto pros meus filhos. Beijos.Paulo Gustavo.
Pimpolha, que texto lindo!!! Didático, profundo, tocante... "está tudo lá, ou estamos ainda lá" - essa frase maravilhosa atravessou a argumentação, recriada em vários pontos... Que bom ter você dizendo isso por nós.Lívia
Muito bom! Lula Couto
Flávia... posso ser sua aluna? Vontade de ouvir e de falar sobre esses " brasis" além do mais de encontrar aquilo que Adélia Prado chama de nossa possibilidade de existência e humanidade... ela diz: ufa... ainda bem que existe a beleza (não boniteza) da palavra mesmo que dura e cruel, trazida pela literatura, para garantir a nossa existência! Andreia (do grupo Palavras Cruzadas)
Excelente! Trícia Cysneiros (do grupo Palavras Cruzadas).
Eu também quero ser sua aluna. Isolda (do grupo Palavras Cruzadas)
Excelente texto, professora. Palmas. João Adolfo (do grupo Palavras Cruzadas)
Além de uma delícia de leitura, seu texto é um banho de análise da realidade atual, obrigada. Repassando... Isolda (do grupo Palavras cruzadas)
Concordo com Isolda. Carlos Santos
Bom dia, Flavia.
André Resende me enviou seu texto sobre Canudos. Aliás, sobre o Brasil atual. Sobre o Brasil de sempre.
Parabéns.
Os Suassuna estão ao meu redor. João na Fundação. Rita em Porto de Galinhas. Ariano no DP. E você.
Você é autora de algum livro ?
Receba meus cumprimentos.
Luiz Otavio
Uma competente retrospecção do Brasil de hoje e do Brasil do passado e a constatação de que somos ainda dois Brasis. O que fazer? Ou esperar? Não se pode mudar abruptamente todo o passado e sua história, mas podemos, a partir de agora, 2018, começar a mudança. Ivan Lins, em uma de suas músicas, diz: "depende de nós..." Parabéns por esse texto belo, comovente e atual. Palmas. Márcio de Mello
Que delícia de texto, Flávia!
Sensacional a análise crítica. Parabéns, Flavinha. Suas palavras sonorizam o silêncio do medo e da intolerância que vêm se instalando e que têm cheiro e cor, embora com habilidades camaleônicas. Daniel Bandeira
Muito bom, Flavinha!!! Amo esse teu texto, já ouvi várias vezes no podcast do curso também! Você é maravilhosa! <3
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