"A carta roubada", Edgar Alan Poe
Prólogo
Esta é a
segunda vez que tenho o privilégio aperreado de falar para o Centro de Estudos
Freudianos e, depois de muito pensar, achei necessário fazer, de início, um
resumo de minha fala anterior, pois acho que ela e a de hoje estão
interligadas. Como sou professora de História da Literatura, é sempre
observando uma sequência cronológica que consigo arrumar minhas ideias.
Recentemente, tive acesso a uma frase do crítico literário português Jacinto
Prado Coelho (“A literatura não se faz para ensinar: é a reflexão sobre ela que
nos ensina.”) que muito me incentivou a continuar estimulando a reflexão sobre
a literatura, apesar do enfraquecimento do valor dessa ação que está em curso.
Lá em 2010, comecei falando de um tempo
meio indeterminado, quando ainda não havia o gênero narrativo (subdividido em
conto, novela e romance) com que estamos trabalhando. Nesse tempo, que engloba
desde a Idade Antiga até a Idade Média, a tradição situava o que era esperado de cada indivíduo do grupo,
desde o nascimento até a morte; os mitos,
inicialmente, e a religião católica,
em seguida, não só produziam sentidos para a vida e para a morte, explicitavam
rituais e explicavam por que as coisas são como são, mas também “sustentavam”
as interdições, necessárias para a manutenção e mesmo a consolidação dos laços
sociais; a família e os antepassados
(e/ou contadores de histórias) detinham um saber que “perpetuava” o sentido de
algumas experiências de que o grupo se apropriava como referência – chefes,
guerreiros, reis e santos tinham suas vidas exaustivamente contadas e
recontadas, e isso tudo orientava escolhas morais, determinava valores,
estabelecia caminhos. É claro que levanto aqui conceitos que parecem imutáveis,
como numa vitrine, mas eles traziam desvios embutidos, tanto que, mesmo muito
lentas, mudanças ocorreram. Para que essa “equação” se completasse, vários
condições são necessárias: o tempo
passava muito devagar, as comunidades eram pequenas e exercitavam
a oralidade, as identidades eram
fortalecidas e legitimadas no dia a dia e os homens se pensavam como partes
integrantes de um todo.
A Idade
Moderna, em seguida, começa a “quebrar” essa lógica – a ampliação do
processo de urbanização, as Grandes Navegações, os descobrimentos e seus
relatos plásticos e escritos, a Imprensa e a Reforma Protestante fraturaram
aquela visão monolítica, e novos paradigmas instauraram-se: o fortalecimento do
Capitalismo comercial e a consolidação dos Estados nacionais faziam par com o
Absolutismo, em que Deus fortalecia o Rei que, por seu turno, tinha o “direito
divino” de governar.
O romance, como gênero, nasce no começo
do século XVII, com o “Dom Quixote”, de Cervantes, em circunstâncias tão
especiais, que, realmente, só começou a se desenvolver no final do século
XVIII, quando o Iluminismo se contrapõe ao Absolutismo, por meio das ideias de progresso e razão e da afirmação do homem como sujeito que observa a realidade. Nascem aqui as “palavras” liberdade, fraternidade e igualdade,
as quais têm apenas uns 200 anos.
Durante toda a Idade Moderna, que é um
período de transição (intervalo em que se hibridam o antes e o depois),
constata-se, assim, uma crise crescente nas relações dos indivíduos – embrionários e em construção – com a tradição, que,
até então, amparava suas escolhas de vida e sua visão de mundo.
Aí começa a Idade Contemporânea, que contém o século XIX e o XX. O historiador
Eric J. Hobsbawm localiza o primeiro entre 1789
(ano da Revolução Francesa) e 1914
(começo da Primeira Guerra Mundial) e, o segundo entre 1914 e 1989 (ano da
Queda do Muro de Berlim).
Ao longo do “grande século” – Hobsbawm
assim se refere ao XIX, por sua lógica medir mais de cem anos –, o sujeito
ocidental, efetivamente, se desliga da tradição (que fala por ele), e se
comprova uma compulsão de falar, escrever, narrar, para elaborar ou
criar (?) uma nova ordem – a
burguesa industrial. E a literatura se constituiu como contraponto necessário,
pois elucidava novos costumes, novas relações sociais, novos comportamentos,
novos valores; criava identificações e apresentava ideias, teorias, discussões,
argumentos, contra-argumentos, exemplos, experiências.
Balsac, Vítor Hugo, Stendhal, Charles
Dickens, Jane Austen, Tolstoy, Dostoievsky, Flaubert, Eça de Queiroz, lá na
Europa, e José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Aluísio Azevedo, aqui no
Brasil, entre outros, construíram uma tradição narrativa em que um narrador
onisciente, linear, cronologicamente ordenado, isento, objetivo e
predominantemente masculino entrou no lugar da “voz da tradição”, digamos
assim, e trouxe o necessário: aconselhamento, sentido, explicação,
orientação...
As guerras mundiais do “pequeno século”,
palavras com que, por contraposição, Hobsbawm se refere ao século XX,
instauraram o malogro da razão e, consequentemente, da ciência e do progresso
material. Por conseguinte, instala-se o antitradicionalismo, ou seja, as novas
gerações desfazem o que foi feito pelas anteriores. Também a quebra da tradição
romanesca aparece como consequência: a fratura da lógica, da perspectiva, da
linearidade narrativa, da cronologia e mesmo do narrador; o aparecimento do
monólogo interior, ou seja, da narração não episódica; a transgressão do código
da língua; a retração do descritivo; a quebra das fronteiras entre realidade e
imaginação; e o narrador que ocupa um lugar de exceção são traços novos que
revelam outra nova ordem, ainda mais complexa, cheia de conflitos e
encruzilhadas.
A literatura parece não fazer parte
desse novo século que substituiu a palavra
– o DNA do século XIX – pela imagem
– o DNA do século XX –, mas os roteiros submersos dos filmes e das propagandas,
e os inúmeros escritores que, apesar das dificuldades, deixaram suas narrativas
desconcertantes e desconcertadas apenas nos mostram que continuamos seres
narrativos e que nossos relatos são influência de nosso tempo, ao passo que o
influenciam, como uma cobra que morde o próprio rabo.
Talvez o declínio da função paterna,
constatado nos consultórios, tenha esmagado o narrador tradicional, mas o fato
é que, sem ele, continuamos a contar histórias. Virginia Woolf, James Joyce,
Durrel, Pasternak, Saramago, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano
Ramos recontam, revelam, tropeçam, perguntam, refazem, inquietam, mas falam do
esgarçamento da hierarquia, da responsabilidade de quem não “sofre” um destino,
da falta de segurança, de certeza, de sentido, da relatividade, do medo do
tempo em que nos coube, inicialmente, viver.
Esse século XX, como todos os outros, trouxe ambiguidades, é verdade –
ele começa a autorizar a diferença e, portanto, torna desnecessário o relato da
narrativa do herói, o qual deixa de ser a referência a ser seguida, o que traz
consigo a dificuldade do novo, o que é ônus.
Mas ele também traz bônus, que, por
meio dessas mesmas narrativas, estão sendo elaborados e ressignificados, como
sempre nos é possível.
Isso tudo para os baby boomers que somos é bem complicado, porque já está em curso um
novo tempo – o século XXI – que nos
impõe ainda mais novos desafios, já que estamos lidando não só com a falência
dos conceitos bipolares do século XX, que não são mais suficientes para nos
localizar na realidade que nos cerca, mas também com atomização, fragmentação,
variedade e multipolaridade, “palavras” que, como todas as outras, devem ter um
lado escuro...
Parte
I (resumo)
Aqui começa a minha palestra de hoje sobre o conto
“A carta roubada”, de Edgar Alan Poe (1809-1848), autor exemplar do contexto
fortemente cientificista do século XIX, principalmente em sua segunda metade,
tempo que também gerou as teorias de Freud (1856-1939), a obra de Machado de
Assis (1839-1908), as ideias de Marx (1818-1883) e de Darwin (1809-1882). Todos
estão no portal daquilo que se conhece hoje por homem psicanalítico.
Poe
escreveu, além de outros gêneros, o que se chama Literatura fantástica e Literatura policial, sua irmã; a Ficção científica é uma última irmã
temporã, pois surgiu um pouco mais tarde, no século XX. Esses três gêneros
nasceram da morte que a Ciência do século XIX provocou no religioso e seus
conseguintes. Não poderia ser outro o ninho das ideias de Marx, que imaginou um
homem sem religião; de Darwin, que ergueu argumentos naturais incontestáveis; e
de Freud, que levantou causas bem humanas para o que antes tinha explicações
sobrenaturais.
Pode-se,
de forma resumida, afirmar que a mentalidade do século XIX pretendia, com Progresso (científico, tecnológico e
material), resolver todos os problemas e responder a todas as perguntas do
Homem. Sendo assim, esses gêneros literários surgem quando quase todos estão certos
de que algumas palavras são inaceitáveis – “insólito”, “inexplicável”,
“milagre”, “mistério”, “incompreensível”, “impensado”, “impensável”,
“inesperado”, enfim: “medo” ...
De acordo com Todorov, Literatura
fantástica é aquela que narra as experiências de alguém que só acredita nas
leis naturais e na lógica. Mas enfrenta situações para as quais não consegue
explicações racionais. Pior: não tem as chaves conceituais para o seu
entendimento. Nesse mesmo fluxo, vêm as personagens Quincas Borba e Simão
Bacamarte, de Machado de Assis, que são científicos e enunciam teorias
dogmáticas como as do século XIX, embora sejam loucos ou fiquem loucos, em
decorrência da inaplicabilidade de suas teorias à realidade humana, exasperante
na sua complexidade.
Esse caldeirão ter nascido no final do
século XIX é uma comprovação das ambiguidades em/com que nos movemos.
O conto em estudo se passa no século
XIX. Auguste Dupin mora em Paris com um amigo, o narrador da história. Certo
dia, entra em sua residência o delegado de polícia parisiense, Senhor G., em
busca de conselhos para solucionar o roubo de uma carta. Conta que ela fora
roubada pelo Ministro D., de dentro dos aposentos reais, e descreve o aspecto
da carta. O delegado confessa que já fizera, na casa do ministro, todas as
revistas e buscas sugeridas pelos manuais policiais, mas mostra-se desolado por
não ter conseguido encontrá-la. Depois da explicação de todos os expedientes
utilizados na busca, Dupin diz-lhe que não o pode ajudar.
Um mês depois, o delegado volta, ainda
tão deprimido por não ter desvendado o crime, que exclama que pagaria 50 mil
francos a quem o ajudasse a solucionar o caso. Dupin, surpreendendo a todos,
pede que ele preencha o cheque e lhe entrega a carta.
O amigo pergunta como ele a conseguira,
e Dupin narra a sua busca: como o delegado subestimara o Ministro, por ser
um poeta, e levara em conta a estatística de seus anos de polícia – em que todos os
criminosos, nos casos de objetos escondidos, ocultaram-nos de maneira rebuscada
–, não considerou que o Ministro, também um matemático, poderia
agir com simplicidade. Então, foi visitar o Ministro, uma vez que o conhecia de
outros tempos. Enquanto conversavam, observou um porta-cartas pendurado no meio
da lareira, com um documento que reconheceu ser a carta procurada, embora ela
estivesse disfarçada.
Ao sair do apartamento, Dupin esqueceu
propositalmente sua tabaqueira, com a intenção de voltar no dia seguinte. Fez
em casa uma cópia exata da carta e voltou fingindo que viera buscar o objeto
esquecido. Havia combinado com um amigo para simular, a determinada hora,
um tiroteio na rua. Quando o Ministro chegou à janela para observar o que se
passava, Dupin trocou a carta e, na cópia, ainda colocou uma frase com que se
vingava por uma peça que o Ministro lhe pregara em Viena.
Em outras
palavras, o conto é policial (confesso que também li, no livro de Poe
“Histórias extraordinárias” de que disponho, “O gato preto”, um exemplo
perfeito da linha fantástica do autor); ambos os textos lidam não só com o esperado, mas também com o inesperado. Ou seja: a literatura, nos dois textos, está sendo
usada em uma de suas funções cruciais – a de ser um espaço onde se fala (de forma clara
ou metafórica) aquilo que não deve ser falado.
Parte II
(diálogos)
Certas palavras (Carlos Drummond de Andrade)
Certas palavras
não podem ser ditas
em qualquer
lugar e hora qualquer.
Estritamente
reservadas
para
companheiros de confiança,
devem ser
sacralmente pronunciadas
em tom muito
especial
lá onde a
polícia dos adultos
não adivinha nem
alcança.
Entretanto são
palavras simples:
definem
partes do corpo,
movimentos, atos
do viver que só
os grandes se permitem
e a nós é
defendido por sentença
dos séculos.
E tudo é
proibido. Então, falamos.
Em “A carta roubada” e “O gato preto”, Edgar Alan Poe assusta
e diverte e cura e salva, falando naquilo que não deveria falar no século XIX:
dos fatos inexplicáveis e das perguntas irrespondíveis que, às vezes, nos
atropelam durante a vida. Naquele momento, imagino que o mainstream deveria
funcionar neste sentido: se a Ciência (com maiúscula) explicava tudo ou
explicaria tudo – era só seguir a
linha evolutiva do saber experimental para se chegar, em breve, ao conhecimento
objetivo de tudo –, as narrativas recém-nascidas prestaram um enorme favor,
quando se tornaram o lugar no qual o que
se deve calar foi falado.
A palavra inglesa “mainstream” e a
expressão “politicamente correto” são perigosamente próximas. Por isso é bom
parar e pensar nos seus respectivos lados escuros: o da primeira está no fato
de que, certamente, não se deve falar sempre o que todos falam, além de que ele
carrega palavras como “comodidade”, “demagogia” e “conservadorismo”, todas
muito negativas; o da segunda, nascido no lado escuro da palavra “respeito”,
é uma espécie de cartilha (ora
visível, ora invisível) que direciona como se deve falar ou escrever o que se
quer falar ou escrever. Por incrível que possa parecer, esse comportamento
existe – circula pelo WhatsApp, por exemplo, um “Manual para o uso não sexista
da linguagem”.
Difícil
de ser questionado e relativizado, o
politicamente correto carrega as melhores intenções. Mas é daquelas
questões que terminam levando ao inferno pelo caminho das fórmulas dogmáticas e
simplistas. Pois a solução que tenta dar é reducionista e acaba por gerar um
empobrecimento dos sujeitos que se projeta (ou se constrói) no empobrecimento
da linguagem. Wittgenstein mesmo já mostrou que a linguagem e a apreensão da
realidade são interdependentes: o limite da primeira significa o limite da
segunda.
Nesse
contexto, jornalistas, professores, alunos, técnicos que projetam políticas
educacionais... pretendem simplificar o aprendizado de língua ou a comunicação
no afã de democratizar a Educação e a Informação. Assim, o estudo da gramática
e a sugestão, a conotação, a polissemia e a ironia, por exemplo, em última
instância, uma espécie de tecnologia de ponta da comunicação, passaram a ser
ferramentas mal conhecidas ou desconhecidas e, sem elas e sem o exercício de abertura
dos sentidos que elas possibilitam, a comunicação fica muito ameaçada. E pode
se fechar à alteridade, às nuances, às discordâncias, à complexidade, nossa
mais primeira e tão esquecida característica. Tudo isso junto embaraça a
reflexão e dificulta o avanço de nossas questões.
Por
conseguinte, a “mão invisível” da simplificação mais inaceitável foi tomando
corpo e realizando a afirmação infantilizada de uma verdade escrita em cartilhas que não traduz a
heterogeneidade e a complexidade nem de nossa ontologia, nem de nossas
relações; e, portanto, de nossos pensares e sentires e falares e saberes...
Evidentemente,
pode-se também constatar o lado claro do
politicamente correto no cuidado com o mais fraco, nas ideias e ações
consensuais a que podemos chegar, na busca de mais palavras que, sem dúvida,
abrirão novas percepções, novos saberes e novos estares...
É a
aceitação cega dessa cartilha que
escamoteia uma espécie de “processo colonial” difícil, por ser invisível e
inquestionável. “Alguém” – não se sabe bem quem, um sujeito bem indeterminado –
sabe como se deve falar e quem deve falar e o que se deve falar. E nos divide
em “bonzinhos que falam certo” e “mauzinhos que falam errado e por isso devem
calar”. E nos subdivide em dois times de estátuas que se olham e se odeiam.
Acho que
Freud já tinha alertado para o perigo disso: há uma diferença significativa
entre ter feras visíveis, estudáveis, estudadas, pensadas, faladas,
espetacularizadas na literatura (ou num zoológico ou num circo, como metáforas)
e soltá-las entre pessoas: é a diferença entre a convivência minimamente
possível e a barbárie.
Aquilo
sobre o qual não se fala não desaparece – fica ali “nos crespos do homem”,
conforme diz João Guimarães Rosa, e pode nos assaltar de repente, ainda mais
violentamente.
Portanto,
a literatura (ou a palavra, ou a psicanálise, acho que dá no mesmo) seria uma
prevenção contra esse “invivível”; ela elabora o conteúdo desses crespos, ao
passo que dificulta que ele se materialize em perseguições e assassinatos e
violências de verdade; elas permitem a ressignificação desses crespos, de modo
a tornar a nossa vida social possível, mesmo que não perfeita, o que de resto
ela nunca será.
Poe fala
de assuntos “censurados” no seu tempo, sem dúvida. Ao mesmo tempo, articula com
competência o que (hoje e no século XIX) queremos falar e não podemos ou não
sabemos; instiga-nos a mensurar o tamanho de nosso apreço à liberdade de
expressão e a avaliar as nossas negociações tão difíceis nos terrenos da
comunicação; convida-nos a enfrentar a vida (e seus inerentes medos,
dificuldades, dores, tristezas, perdas, alegrias...) e a nossa ontologia e sua
natureza sem nome de tão complexa e profunda. Usando ficções escritas numa
linguagem metonímica ou desviada (como a carta do texto em
estudo), o autor enriquece nossas percepções, espelha nossa ontologia,
oferece-nos uma possibilidade de olhar para nós mesmos, como quem sai da ilha
para ver a ilha ou da bolha para ver a bolha.
Poe é
desses escritores cuja leitura nos faz recuperar e elaborar esse conteúdo sufocado
(não perdido, nem apagado) pelo mainstream
e suas simplificações. E o melhor:
nas palavras, podemos ressignificá-lo sem correr riscos, nem derramar sangue.
Evidentemente, é bom frisar que os tons de cinza (ou a paleta de cores) com que
nos tatuamos demonstram que, ao fim e ao cabo, barbárie seria a negação dos
direitos humanos, por exemplo, e de outros consensos que partilhamos ao longo
de nosso trajeto. Em outras palavras, a
palavra “consenso” não é igual à palavra “mainstream”.
Quem
pensa que a arte deve se tornar politicamente
correta e que é apenas lugar de fala de minorias enxerga
estreito, ameaçando sufocar tudo com a fumaça de nossos crespos, por falta de
cano de escape, e simplificando tanto que corre o risco de assinar o atestado
de óbito da arte sem saber. Além disso, nos empurra no abismo de realizarmos a
barbárie, não nas palavras, mas no real. Uns contra os outros... Como deve ter
acontecido com nossos ancestrais pré-históricos, quando ainda estava por nascer
isto que chamamos de “humanos”.
Parte III (o conteúdo
da carta)
“Uma
coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e
sangue, de mil-e-tantas misérias...” (João Guimarães Rosa)
Recentemente,
dei uma palestra sobre o livro “Um amor incômodo”, da misteriosa escritora
italiana Elena Ferrante, cujo assunto é o assédio
sexual. Ao final da análise, cheguei
a algumas conclusões: esses nossos
assuntos não poderiam ser tratados por delegados submetidos a procedimentos
e protocolos, nem por jornalistas superficiais, nem deveriam ser expostos na
mídia na linguagem objetiva. Deveriam ser tratados pelas aparelhagens de Saúde.
Tomando emprestadas as palavras de Poe, posso dizer que esses nossos assuntos não são notícia, nem
fatos que estão fora de nós, como seres maravilhosos, feiticeiras, demônios,
fantasmas e gênios... São internos. Tratá-los dentro de oposições simplistas é
um dos comportamentos geradores do discurso de ódio de que também participa o
acusador, sem o saber. Aliás, esse e outros assuntos são como o da carta do nosso texto em análise – só
deveriam ser falados e ouvidos por poucos companheiros
de confiança, os quais entendem as quebras e podem participar do retorno ao
trilho da Lei.
A personagem do livro, Délia, quando
criança, disse que o sócio do pai tinha um caso com a mãe, versão que “colou”
perfeitamente na história da família, a qual se dispersou quando da
adolescência da personagem. Anos depois, no momento da morte da mãe, Délia
volta a sua cidade e, revendo os lugares, foi lembrando/desvelando o real
acontecido: ela mesma tinha sido sistematicamente violentada pelo pai do sócio.
A complexidade das relações entre as pessoas da narrativa aponta para uma
questão fundamental – não há apenas uma
vítima e um algoz, como propala a
tevê às treze horas, nem o caminho a seguir se reduz à condenação do algoz.
Mia Couto
talvez me ajude a terminar esta palestra de hoje: no seu livro “A confissão da
leoa”, ele trabalha os efeitos nefastos do processo colonial que vitimou seu
país e o nosso e diz, corajosamente, que costumamos responsabilizar “os de fora” pelos nossos problemas e não enfrentamos as questões “de dentro”.
Encaremos:
somos um país com um povo cortado dentro, temos sequelas daquela divisão
colonial que nos separava entre senhores e escravos. Está mais do que na hora
de nos ouvirmos uns aos outros. E de sabermos que ouvir não significa sempre
concordar. Não só: é possível falarmos uns pelos outros, pois, apesar de nossas
inúmeras diferenças, temos um tutano humano que nos iguala.
Quando há circulação de palavras, o sangue deixa de correr. A palavra dita, buscada, escrita,
sonhada, desejada, ouvida, partilhada... é, como diz Mia Couto, a única roupa
que temos contra a violência com a qual insistimos em viver e que nos vitima
cotidianamente. Basta de repetir erros que já cometemos no passado, por
preguiça de ler, pensar e discutir com respeito e profundidade.
Em virtude dos últimos acontecimentos, faço
aqui um apelo à reflexão e ao diálogo. O filósofo tcheco Vilém Flusser opõe
dois conceitos: discurso (que seria
uma pessoa falar sem querer ouvir) e diálogo
(ao contrário, uma pessoa que seria capaz de se modificar por meio do que a
outra lhe diz, embora não perca de vista suas próprias opiniões e referências).
Não é com manchetes simplórias que daremos conta de nossas complexidades. Nem
com slogans. Nem com bolhas algorítmicas
de ideias. Nem com criação pelo avesso de simplistas versões contrárias às de
quem pensa diferente de nós. Nem com partidos, talvez, como comecei a pensar
recentemente. A verdade é um diamante cheio de ladinhos e vivemos num tempo que
exige o acolhimento de todos. Não há só um caminho, nem só uma versão.
Precisamos
ir na direção de um futuro que fale a língua da tolerância, da empatia e da
inserção de todos. Esse idioma só poderá ser inventado se o exercício da
palavra tomar o lugar das armas. E o diálogo tomar o lugar do discurso. O nome
disso é utopia, eu sei. Mas ajuda a caminhar.
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