segunda-feira, agosto 27, 2018

"A carta roubada", Edgar Alan Poe


Prólogo
Esta é a segunda vez que tenho o privilégio aperreado de falar para o Centro de Estudos Freudianos e, depois de muito pensar, achei necessário fazer, de início, um resumo de minha fala anterior, pois acho que ela e a de hoje estão interligadas. Como sou professora de História da Literatura, é sempre observando uma sequência cronológica que consigo arrumar minhas ideias. Recentemente, tive acesso a uma frase do crítico literário português Jacinto Prado Coelho (“A literatura não se faz para ensinar: é a reflexão sobre ela que nos ensina.”) que muito me incentivou a continuar estimulando a reflexão sobre a literatura, apesar do enfraquecimento do valor dessa ação que está em curso.
Lá em 2010, comecei falando de um tempo meio indeterminado, quando ainda não havia o gênero narrativo (subdividido em conto, novela e romance) com que estamos trabalhando. Nesse tempo, que engloba desde a Idade Antiga até a Idade Média, a tradição situava o que era esperado de cada indivíduo do grupo, desde o nascimento até a morte; os mitos, inicialmente, e a religião católica, em seguida, não só produziam sentidos para a vida e para a morte, explicitavam rituais e explicavam por que as coisas são como são, mas também “sustentavam” as interdições, necessárias para a manutenção e mesmo a consolidação dos laços sociais; a família e os antepassados (e/ou contadores de histórias) detinham um saber que “perpetuava” o sentido de algumas experiências de que o grupo se apropriava como referência – chefes, guerreiros, reis e santos tinham suas vidas exaustivamente contadas e recontadas, e isso tudo orientava escolhas morais, determinava valores, estabelecia caminhos. É claro que levanto aqui conceitos que parecem imutáveis, como numa vitrine, mas eles traziam desvios embutidos, tanto que, mesmo muito lentas, mudanças ocorreram. Para que essa “equação” se completasse, vários condições são necessárias: o tempo passava muito devagar, as comunidades eram pequenas e exercitavam a oralidade, as identidades eram fortalecidas e legitimadas no dia a dia e os homens se pensavam como partes integrantes de um todo.
         A Idade Moderna, em seguida, começa a “quebrar” essa lógica – a ampliação do processo de urbanização, as Grandes Navegações, os descobrimentos e seus relatos plásticos e escritos, a Imprensa e a Reforma Protestante fraturaram aquela visão monolítica, e novos paradigmas instauraram-se: o fortalecimento do Capitalismo comercial e a consolidação dos Estados nacionais faziam par com o Absolutismo, em que Deus fortalecia o Rei que, por seu turno, tinha o “direito divino” de governar.
         O romance, como gênero, nasce no começo do século XVII, com o “Dom Quixote”, de Cervantes, em circunstâncias tão especiais, que, realmente, só começou a se desenvolver no final do século XVIII, quando o Iluminismo se contrapõe ao Absolutismo, por meio das ideias de progresso e razão e da afirmação do homem como sujeito que observa a realidade. Nascem aqui as “palavras” liberdade, fraternidade e igualdade, as quais têm apenas uns 200 anos.
         Durante toda a Idade Moderna, que é um período de transição (intervalo em que se hibridam o antes e o depois), constata-se, assim, uma crise crescente nas relações dos indivíduos – embrionários e em construção – com a tradição, que, até então, amparava suas escolhas de vida e sua visão de mundo.
Aí começa a Idade Contemporânea, que contém o século XIX e o XX. O historiador Eric J. Hobsbawm localiza o primeiro entre 1789 (ano da Revolução Francesa) e 1914 (começo da Primeira Guerra Mundial) e, o segundo entre 1914 e 1989 (ano da Queda do Muro de Berlim).
Ao longo do “grande século” – Hobsbawm assim se refere ao XIX, por sua lógica medir mais de cem anos –, o sujeito ocidental, efetivamente, se desliga da tradição (que fala por ele), e se comprova uma compulsão de falar, escrever, narrar, para elaborar ou criar (?) uma nova ordem – a burguesa industrial. E a literatura se constituiu como contraponto necessário, pois elucidava novos costumes, novas relações sociais, novos comportamentos, novos valores; criava identificações e apresentava ideias, teorias, discussões, argumentos, contra-argumentos, exemplos, experiências.
         Balsac, Vítor Hugo, Stendhal, Charles Dickens, Jane Austen, Tolstoy, Dostoievsky, Flaubert, Eça de Queiroz, lá na Europa, e José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Aluísio Azevedo, aqui no Brasil, entre outros, construíram uma tradição narrativa em que um narrador onisciente, linear, cronologicamente ordenado, isento, objetivo e predominantemente masculino entrou no lugar da “voz da tradição”, digamos assim, e trouxe o necessário: aconselhamento, sentido, explicação, orientação...
         As guerras mundiais do “pequeno século”, palavras com que, por contraposição, Hobsbawm se refere ao século XX, instauraram o malogro da razão e, consequentemente, da ciência e do progresso material. Por conseguinte, instala-se o antitradicionalismo, ou seja, as novas gerações desfazem o que foi feito pelas anteriores. Também a quebra da tradição romanesca aparece como consequência: a fratura da lógica, da perspectiva, da linearidade narrativa, da cronologia e mesmo do narrador; o aparecimento do monólogo interior, ou seja, da narração não episódica; a transgressão do código da língua; a retração do descritivo; a quebra das fronteiras entre realidade e imaginação; e o narrador que ocupa um lugar de exceção são traços novos que revelam outra nova ordem, ainda mais complexa, cheia de conflitos e encruzilhadas.
         A literatura parece não fazer parte desse novo século que substituiu a palavra – o DNA do século XIX – pela imagem – o DNA do século XX –, mas os roteiros submersos dos filmes e das propagandas, e os inúmeros escritores que, apesar das dificuldades, deixaram suas narrativas desconcertantes e desconcertadas apenas nos mostram que continuamos seres narrativos e que nossos relatos são influência de nosso tempo, ao passo que o influenciam, como uma cobra que morde o próprio rabo.
         Talvez o declínio da função paterna, constatado nos consultórios, tenha esmagado o narrador tradicional, mas o fato é que, sem ele, continuamos a contar histórias. Virginia Woolf, James Joyce, Durrel, Pasternak, Saramago, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos recontam, revelam, tropeçam, perguntam, refazem, inquietam, mas falam do esgarçamento da hierarquia, da responsabilidade de quem não “sofre” um destino, da falta de segurança, de certeza, de sentido, da relatividade, do medo do tempo em que nos coube, inicialmente, viver.
         Esse século XX, como todos os outros, trouxe ambiguidades, é verdade – ele começa a autorizar a diferença e, portanto, torna desnecessário o relato da narrativa do herói, o qual deixa de ser a referência a ser seguida, o que traz consigo a dificuldade do novo, o que é ônus. Mas ele também traz bônus, que, por meio dessas mesmas narrativas, estão sendo elaborados e ressignificados, como sempre nos é possível.
Isso tudo para os baby boomers que somos é bem complicado, porque já está em curso um novo tempo – o século XXI – que nos impõe ainda mais novos desafios, já que estamos lidando não só com a falência dos conceitos bipolares do século XX, que não são mais suficientes para nos localizar na realidade que nos cerca, mas também com atomização, fragmentação, variedade e multipolaridade, “palavras” que, como todas as outras, devem ter um lado escuro...

Parte I (resumo)
         Aqui começa a minha palestra de hoje sobre o conto “A carta roubada”, de Edgar Alan Poe (1809-1848), autor exemplar do contexto fortemente cientificista do século XIX, principalmente em sua segunda metade, tempo que também gerou as teorias de Freud (1856-1939), a obra de Machado de Assis (1839-1908), as ideias de Marx (1818-1883) e de Darwin (1809-1882). Todos estão no portal daquilo que se conhece hoje por homem psicanalítico.
         Poe escreveu, além de outros gêneros, o que se chama Literatura fantástica e Literatura policial, sua irmã; a Ficção científica é uma última irmã temporã, pois surgiu um pouco mais tarde, no século XX. Esses três gêneros nasceram da morte que a Ciência do século XIX provocou no religioso e seus conseguintes. Não poderia ser outro o ninho das ideias de Marx, que imaginou um homem sem religião; de Darwin, que ergueu argumentos naturais incontestáveis; e de Freud, que levantou causas bem humanas para o que antes tinha explicações sobrenaturais.
         Pode-se, de forma resumida, afirmar que a mentalidade do século XIX pretendia, com Progresso (científico, tecnológico e material), resolver todos os problemas e responder a todas as perguntas do Homem. Sendo assim, esses gêneros literários surgem quando quase todos estão certos de que algumas palavras são inaceitáveis – “insólito”, “inexplicável”, “milagre”, “mistério”, “incompreensível”, “impensado”, “impensável”, “inesperado”, enfim: “medo” ...
De acordo com Todorov, Literatura fantástica é aquela que narra as experiências de alguém que só acredita nas leis naturais e na lógica. Mas enfrenta situações para as quais não consegue explicações racionais. Pior: não tem as chaves conceituais para o seu entendimento. Nesse mesmo fluxo, vêm as personagens Quincas Borba e Simão Bacamarte, de Machado de Assis, que são científicos e enunciam teorias dogmáticas como as do século XIX, embora sejam loucos ou fiquem loucos, em decorrência da inaplicabilidade de suas teorias à realidade humana, exasperante na sua complexidade.
Esse caldeirão ter nascido no final do século XIX é uma comprovação das ambiguidades em/com que nos movemos.          
         O conto em estudo se passa no século XIX. Auguste Dupin mora em Paris com um amigo, o narrador da história. Certo dia, entra em sua residência o delegado de polícia parisiense, Senhor G., em busca de conselhos para solucionar o roubo de uma carta. Conta que ela fora roubada pelo Ministro D., de dentro dos aposentos reais, e descreve o aspecto da carta. O delegado confessa que já fizera, na casa do ministro, todas as revistas e buscas sugeridas pelos manuais policiais, mas mostra-se desolado por não ter conseguido encontrá-la. Depois da explicação de todos os expedientes utilizados na busca, Dupin diz-lhe que não o pode ajudar.
         Um mês depois, o delegado volta, ainda tão deprimido por não ter desvendado o crime, que exclama que pagaria 50 mil francos a quem o ajudasse a solucionar o caso. Dupin, surpreendendo a todos, pede que ele preencha o cheque e lhe entrega a carta.
         O amigo pergunta como ele a conseguira, e Dupin narra a sua busca: como o delegado subestimara o Ministro, por ser um poeta, e levara em conta a estatística de seus anos de polícia em que todos os criminosos, nos casos de objetos escondidos, ocultaram-nos de maneira rebuscada –, não considerou que o Ministro, também um matemático, poderia agir com simplicidade. Então, foi visitar o Ministro, uma vez que o conhecia de outros tempos. Enquanto conversavam, observou um porta-cartas pendurado no meio da lareira, com um documento que reconheceu ser a carta procurada, embora ela estivesse disfarçada. 
         Ao sair do apartamento, Dupin esqueceu propositalmente sua tabaqueira, com a intenção de voltar no dia seguinte. Fez em casa uma cópia exata da carta e voltou fingindo que viera buscar o objeto esquecido. Havia combinado com um amigo para simular, a determinada hora, um tiroteio na rua. Quando o Ministro chegou à janela para observar o que se passava, Dupin trocou a carta e, na cópia, ainda colocou uma frase com que se vingava por uma peça que o Ministro lhe pregara em Viena.
         Em outras palavras, o conto é policial (confesso que também li, no livro de Poe “Histórias extraordinárias” de que disponho, “O gato preto”, um exemplo perfeito da linha fantástica do autor); ambos os textos lidam não só com o esperado, mas também com o inesperado. Ou seja: a literatura, nos dois textos, está sendo usada em uma de suas funções cruciais – a de ser um espaço onde se fala (de forma clara ou metafórica) aquilo que não deve ser falado.

Parte II (diálogos)
Certas palavras (Carlos Drummond de Andrade)
Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem
partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

         Em “A carta roubada” e “O gato preto”, Edgar Alan Poe assusta e diverte e cura e salva, falando naquilo que não deveria falar no século XIX: dos fatos inexplicáveis e das perguntas irrespondíveis que, às vezes, nos atropelam durante a vida. Naquele momento, imagino que o mainstream deveria funcionar neste sentido: se a Ciência (com maiúscula) explicava tudo ou explicaria tudo – era só seguir a linha evolutiva do saber experimental para se chegar, em breve, ao conhecimento objetivo de tudo –, as narrativas recém-nascidas prestaram um enorme favor, quando se tornaram o lugar no qual o que se deve calar foi falado.
A palavra inglesa “mainstream” e a expressão “politicamente correto” são perigosamente próximas. Por isso é bom parar e pensar nos seus respectivos lados escuros: o da primeira está no fato de que, certamente, não se deve falar sempre o que todos falam, além de que ele carrega palavras como “comodidade”, “demagogia” e “conservadorismo”, todas muito negativas; o da segunda, nascido no lado escuro da palavra “respeito”, é uma espécie de cartilha (ora visível, ora invisível) que direciona como se deve falar ou escrever o que se quer falar ou escrever. Por incrível que possa parecer, esse comportamento existe – circula pelo WhatsApp, por exemplo, um “Manual para o uso não sexista da linguagem”.
Difícil de ser questionado e relativizado, o politicamente correto carrega as melhores intenções. Mas é daquelas questões que terminam levando ao inferno pelo caminho das fórmulas dogmáticas e simplistas. Pois a solução que tenta dar é reducionista e acaba por gerar um empobrecimento dos sujeitos que se projeta (ou se constrói) no empobrecimento da linguagem. Wittgenstein mesmo já mostrou que a linguagem e a apreensão da realidade são interdependentes: o limite da primeira significa o limite da segunda.
Nesse contexto, jornalistas, professores, alunos, técnicos que projetam políticas educacionais... pretendem simplificar o aprendizado de língua ou a comunicação no afã de democratizar a Educação e a Informação. Assim, o estudo da gramática e a sugestão, a conotação, a polissemia e a ironia, por exemplo, em última instância, uma espécie de tecnologia de ponta da comunicação, passaram a ser ferramentas mal conhecidas ou desconhecidas e, sem elas e sem o exercício de abertura dos sentidos que elas possibilitam, a comunicação fica muito ameaçada. E pode se fechar à alteridade, às nuances, às discordâncias, à complexidade, nossa mais primeira e tão esquecida característica. Tudo isso junto embaraça a reflexão e dificulta o avanço de nossas questões.
Por conseguinte, a “mão invisível” da simplificação mais inaceitável foi tomando corpo e realizando a afirmação infantilizada de uma verdade escrita em cartilhas que não traduz a heterogeneidade e a complexidade nem de nossa ontologia, nem de nossas relações; e, portanto, de nossos pensares e sentires e falares e saberes...
Evidentemente, pode-se também constatar o lado claro do politicamente correto no cuidado com o mais fraco, nas ideias e ações consensuais a que podemos chegar, na busca de mais palavras que, sem dúvida, abrirão novas percepções, novos saberes e novos estares...
É a aceitação cega dessa cartilha que escamoteia uma espécie de “processo colonial” difícil, por ser invisível e inquestionável. “Alguém” – não se sabe bem quem, um sujeito bem indeterminado – sabe como se deve falar e quem deve falar e o que se deve falar. E nos divide em “bonzinhos que falam certo” e “mauzinhos que falam errado e por isso devem calar”. E nos subdivide em dois times de estátuas que se olham e se odeiam.
Acho que Freud já tinha alertado para o perigo disso: há uma diferença significativa entre ter feras visíveis, estudáveis, estudadas, pensadas, faladas, espetacularizadas na literatura (ou num zoológico ou num circo, como metáforas) e soltá-las entre pessoas: é a diferença entre a convivência minimamente possível e a barbárie.
Aquilo sobre o qual não se fala não desaparece – fica ali “nos crespos do homem”, conforme diz João Guimarães Rosa, e pode nos assaltar de repente, ainda mais violentamente.
Portanto, a literatura (ou a palavra, ou a psicanálise, acho que dá no mesmo) seria uma prevenção contra esse “invivível”; ela elabora o conteúdo desses crespos, ao passo que dificulta que ele se materialize em perseguições e assassinatos e violências de verdade; elas permitem a ressignificação desses crespos, de modo a tornar a nossa vida social possível, mesmo que não perfeita, o que de resto ela nunca será.
Poe fala de assuntos “censurados” no seu tempo, sem dúvida. Ao mesmo tempo, articula com competência o que (hoje e no século XIX) queremos falar e não podemos ou não sabemos; instiga-nos a mensurar o tamanho de nosso apreço à liberdade de expressão e a avaliar as nossas negociações tão difíceis nos terrenos da comunicação; convida-nos a enfrentar a vida (e seus inerentes medos, dificuldades, dores, tristezas, perdas, alegrias...) e a nossa ontologia e sua natureza sem nome de tão complexa e profunda. Usando ficções escritas numa linguagem metonímica ou desviada (como a carta do texto em estudo), o autor enriquece nossas percepções, espelha nossa ontologia, oferece-nos uma possibilidade de olhar para nós mesmos, como quem sai da ilha para ver a ilha ou da bolha para ver a bolha.
Poe é desses escritores cuja leitura nos faz recuperar e elaborar esse conteúdo sufocado (não perdido, nem apagado) pelo mainstream e suas simplificações. E o melhor: nas palavras, podemos ressignificá-lo sem correr riscos, nem derramar sangue. Evidentemente, é bom frisar que os tons de cinza (ou a paleta de cores) com que nos tatuamos demonstram que, ao fim e ao cabo, barbárie seria a negação dos direitos humanos, por exemplo, e de outros consensos que partilhamos ao longo de nosso trajeto. Em outras palavras, a palavra “consenso” não é igual à palavra “mainstream”.
         Quem pensa que a arte deve se tornar politicamente correta e que é apenas lugar de fala de minorias enxerga estreito, ameaçando sufocar tudo com a fumaça de nossos crespos, por falta de cano de escape, e simplificando tanto que corre o risco de assinar o atestado de óbito da arte sem saber. Além disso, nos empurra no abismo de realizarmos a barbárie, não nas palavras, mas no real. Uns contra os outros... Como deve ter acontecido com nossos ancestrais pré-históricos, quando ainda estava por nascer isto que chamamos de “humanos”.

Parte III (o conteúdo da carta)
“Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...” (João Guimarães Rosa)
        
           Recentemente, dei uma palestra sobre o livro “Um amor incômodo”, da misteriosa escritora italiana Elena Ferrante, cujo assunto é o assédio sexual. Ao final da análise, cheguei a algumas conclusões: esses nossos assuntos não poderiam ser tratados por delegados submetidos a procedimentos e protocolos, nem por jornalistas superficiais, nem deveriam ser expostos na mídia na linguagem objetiva. Deveriam ser tratados pelas aparelhagens de Saúde. Tomando emprestadas as palavras de Poe, posso dizer que esses nossos assuntos não são notícia, nem fatos que estão fora de nós, como seres maravilhosos, feiticeiras, demônios, fantasmas e gênios... São internos. Tratá-los dentro de oposições simplistas é um dos comportamentos geradores do discurso de ódio de que também participa o acusador, sem o saber. Aliás, esse e outros assuntos são como o da carta do nosso texto em análise – só deveriam ser falados e ouvidos por poucos companheiros de confiança, os quais entendem as quebras e podem participar do retorno ao trilho da Lei. 
         A personagem do livro, Délia, quando criança, disse que o sócio do pai tinha um caso com a mãe, versão que “colou” perfeitamente na história da família, a qual se dispersou quando da adolescência da personagem. Anos depois, no momento da morte da mãe, Délia volta a sua cidade e, revendo os lugares, foi lembrando/desvelando o real acontecido: ela mesma tinha sido sistematicamente violentada pelo pai do sócio. A complexidade das relações entre as pessoas da narrativa aponta para uma questão fundamental – não há apenas uma vítima e um algoz, como propala a tevê às treze horas, nem o caminho a seguir se reduz à condenação do algoz.
Mia Couto talvez me ajude a terminar esta palestra de hoje: no seu livro “A confissão da leoa”, ele trabalha os efeitos nefastos do processo colonial que vitimou seu país e o nosso e diz, corajosamente, que costumamos responsabilizar “os de fora pelos nossos problemas e não enfrentamos as questões “de dentro”.
Encaremos: somos um país com um povo cortado dentro, temos sequelas daquela divisão colonial que nos separava entre senhores e escravos. Está mais do que na hora de nos ouvirmos uns aos outros. E de sabermos que ouvir não significa sempre concordar. Não só: é possível falarmos uns pelos outros, pois, apesar de nossas inúmeras diferenças, temos um tutano humano que nos iguala.
Quando há circulação de palavras, o sangue deixa de correr. A palavra dita, buscada, escrita, sonhada, desejada, ouvida, partilhada... é, como diz Mia Couto, a única roupa que temos contra a violência com a qual insistimos em viver e que nos vitima cotidianamente. Basta de repetir erros que já cometemos no passado, por preguiça de ler, pensar e discutir com respeito e profundidade.
Em virtude dos últimos acontecimentos, faço aqui um apelo à reflexão e ao diálogo. O filósofo tcheco Vilém Flusser opõe dois conceitos: discurso (que seria uma pessoa falar sem querer ouvir) e diálogo (ao contrário, uma pessoa que seria capaz de se modificar por meio do que a outra lhe diz, embora não perca de vista suas próprias opiniões e referências). Não é com manchetes simplórias que daremos conta de nossas complexidades. Nem com slogans. Nem com bolhas algorítmicas de ideias. Nem com criação pelo avesso de simplistas versões contrárias às de quem pensa diferente de nós. Nem com partidos, talvez, como comecei a pensar recentemente. A verdade é um diamante cheio de ladinhos e vivemos num tempo que exige o acolhimento de todos. Não há só um caminho, nem só uma versão.
Precisamos ir na direção de um futuro que fale a língua da tolerância, da empatia e da inserção de todos. Esse idioma só poderá ser inventado se o exercício da palavra tomar o lugar das armas. E o diálogo tomar o lugar do discurso. O nome disso é utopia, eu sei. Mas ajuda a caminhar.