Raimundo Carrero e o politicamente correto
Falar sobre Raimundo
Carrero é uma tarefa desnecessária: nós todos o conhecemos bem, ele é dos
nossos. Mas é claro que se pode conversar sobre ele, para mais nos conhecermos
uns aos outros. Como não posso deixar de ser a professora de literatura para
jovens que sempre fui, me arvoro do direito de dar uma aula de literatura para
começar a organizar as ideias. Acho que preciso começar falando do Regionalismo
e suas “faces” na literatura brasileira, para iniciar pensando o que Carrero não é.
Na verdade, o Regionalismo
brasileiro nasceu romântico, fruto da necessidade de busca da identidade
nacional, um longo e árduo percurso histórico ainda em curso, é claro. O
processo colonial e todas as suas injunções criaram dificuldades inomináveis
para o projeto de independência política e, consequentemente, cultural do país.
Durante 300 anos, o Brasil não passou de um apêndice de Portugal, que, aqui,
detinha poder absoluto.
Em 1822, uma série de
episódios culminou com a Independência. No âmbito da cultura, coube ao
Romantismo a tarefa de construir a correspondente independência cultural e,
portanto, a consciência e o orgulho da nacionalidade. Nessa altura, o Brasil
ainda tinha o "álibi" do processo colonial, ou seja, tudo o que havia
de errado, aqui, devia-se à instalação, entre nós, desse pacto injusto e
desfavorável: escravidão, atraso, dependência... Descortinava-se, então, no
horizonte, um futuro grandioso – estávamos livres da “mala sem alça” que nos
condenava ao negativismo e à vergonha de ser colônia.
Nesse contexto, o
Romantismo descreveu o Brasil de modo idealizado. Florestas virgens, praias de
areias brancas, mares verdes como esmeraldas líquidas, fauna ímpar (araras,
jandaias, onças...), clima bom, céu de anil... Nesse verdadeiro paraíso
terreal, colocou-se um habitante forte, orgulhoso, perfeito, bonito, bom,
heroico. É nesse berço que nasce o nosso Regionalismo, filho do escritor
cearense José de Alencar.
Nosso primeiro escritor de
âmbito nacional, Alencar planejou sua obra, no sentido de construir um painel
histórico-cultural do país. Ambientou livros nos séculos XVI, XVII, XVIII e no
seu próprio tempo (primeira metade do século XIX), pois pretendeu descrever o
país de cabo a rabo. Percorreu sua História, descreveu suas geografias,
inventou o índio como herói necessário (o elemento que estava aqui antes de o
português chegar; portanto, o mais genuíno brasileiro) e visitou as suas
"sociologias". Foi no projeto dessa brasilidade que nasceu o seu
Regionalismo, o qual mencionou tanto o sertão nordestino como os pampas
gaúchos, dentro, é claro, desse mesmo diapasão idealizante – paisagem e homem
são igualmente perfeitos.
Nos caminhos abertos por
ele, o carioca Alfredo Taunay, descrevendo o Centro-oeste, e o cearense
Franklin Távora, o Nordeste, proporcionaram ao país uma visão de si mesmo,
necessária à construção do conceito de pátria que nascia.
Esse Regionalismo romântico
não deixa de ser uma espécie de escapismo no tempo e no espaço; tem a ver com
um desejo de compensação e fuga da realidade, típico do Romantismo, somado a
uma necessidade de representação desse novo espaço social e político que se
desenhava no Brasil – o país livre. Constrói-se pela supervalorização do
pitoresco, da "cor local" (como diz a crítica). Ou seja: o Romantismo
agrega à região valores, cores, sentimentos e qualidades que, na verdade, não
lhe pertenciam, mas à cultura que nascia e precisava deles para crescer.
Paralela à hipertrofia imagística e estilística, uma complacência com os
aspectos negativos das respectivas regiões aparece, e somente é mostrado o seu
lado positivo.
O tiro pela culatra desse
Regionalismo é que ele beira a xenofobia.
No final do século XIX, o Regionalismo muda de roupa:
despe-se do saudosismo, do escapismo e da idealização românticos para ganhar os
contornos deterministas e cientificistas do período – o herói ganha estatura
trágica, pois luta contra um ambiente inóspito e adverso que o vence,
necessariamente. É o caso de outro cearense, Domingos Olímpio.
Mais tarde, já na década de 30 do século XX, o Regionalismo reaparece, no
formato modernista; escrito numa linguagem e numa forma francamente
antitradicionalistas, ele mantém a linha de determinação ambiental do século
anterior e acrescenta à “receita” uma visão de esquerda, a princípio, que
depois deságua em denúncia das questões sociais e políticas regionais,
potencializadas pelo clima, quadro típico do Nordeste brasileiro. Observe-se
que o Regionalismo, aqui,
denuncia a estrutura agrária latifundiária, uma persistência colonial que
resiste à modernização do país prometida pela Revolução de 30. A narração do
confronto entre opressores e oprimidos ou entre adversários políticos esclarece
o desenho dessa combinação explosiva de injustiça climática e política para o
resto do país, que tinha curiosidade sobre essas especificidades (coronelismo,
seca, retirada, messianismo, cangaço, latifúndio, patriarcalismo...).
Os paraibanos José Américo de Almeida e José Lins
do Rego, a cearense Rachel de Queiroz, o alagoano Graciliano Ramos e o baiano
Jorge Amado descrevem, a partir de várias perspectivas, um tempo de mudança, quando
o país tirou o poder da mão dos proprietários de terra e o colocou na dos
comerciantes, revirando a região e mesmo o país de ponta-cabeça. Esses
escritores analisam, explicam, levantam causas, hipóteses, efeitos dessas
transformações e o fazem por meio de um retrato realista e mesmo até
naturalista da região. Com aspereza, saudade ou maciez, fotografam um mundo em
mudança enquanto apresentam ao Brasil a região que deu o estopim da Revolução
de 30.
Nesse momento, acham-se já delineados todos os
“ingredientes” daquilo que se entende por Regionalismo, que tira sua substância não só da paisagem (clima,
topografia, flora, fauna, elementos que afetam a vida humana na região...), mas
também das riquezas culturais ou maneiras peculiares da sociedade humana
estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra
(linguagem – modos de expressão nativos e populares, ritmos e sotaques
diferentes; reações dos indivíduos; tradições; cultura; civilização; etnia;
formas de cozinhar, vestir, morar; lendas; mitos; tipos; imagem;
simbologia...).
A
partir da publicação do colosso “Grande sertão: veredas”, do mineiro João
Guimarães Rosa, desenha-se um novo Regionalismo na
nossa literatura – o Regionalismo universalista,
se é que se pode juntar as duas “palavras”. Tornado uma metonímia do mundo, o
sertão de Minas Gerais, nessa obra, mantém suas especificidades,
milimetricamente descritas no livro, mas ganha também contornos filosóficos,
quando se torna o “mundo” ou o planeta onde se passa a vida dos homens. O
narrador desse livro luta com as palavras escritas e faladas, e tudo o mais que
se possa imaginar de experimentalismos e invencionices linguísticos, para
contar sua história que pretende ser, espelhando a Bíblia, “a” história ou as
histórias de todos os homens, na sua errática e difícil trajetória material.
Também aqui se “encaixa” o paraibano Ariano Suassuna, cuja obra está contida
nesse espaço tanto regional como humanístico.
É depois de Guimarães Rosa e Ariano Suassuna que
está a obra do pernambucano Raimundo Carrero – nesse “locus” que não é mineiro
nem pernambucano, nem paraibano. Mas tudo isso e mais coisas além.
Entretanto, não se pode dizer que Carrero é um
escritor regionalista, como ainda se pode afirmar sobre Guimarães Rosa e Ariano
Suassuna. Ele localiza suas histórias em lugar nenhum − com o homem
dentro, sem livre arbítrio, carregado por um destino implacável, totalmente
diferente do de Guimarães Rosa, cujo personagem Riobaldo, por exemplo, escreve
(ou fala) e se escreve ou reescreve e reconstrói sua história ao longo do
livro. Esse personagem é autor de sua narrativa e de sua vida; fez conscientemente
suas escolhas, experimentou, pensou, refez caminhos e, na narração de sua vida,
entende, explica, pensa, opina, analisa, analisa-se... Ariano também: na sua
obra, no fim, Deus justifica, ordena e explica tudo, perdoa tudo; a ontologia
esperançosa dos seres humanos é sua redenção... Em Ariano, tudo tem um sentido
espiritual: os seres humanos encontram sua verdadeira natureza depois da morte.
Carrero não tem o olhar otimista de Guimarães Rosa,
nem a aflita mas esperançosa visão de Ariano Suassuna: ele nos descortina o
pior do ser humano – incesto, traição, estupros, assassinatos, tortura, loucura,
exercício espúrio do poder, inversão de valores – em comportamentos
incompreensíveis e inexplicáveis. Todos esses temas estão presentes em
Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, é verdade. Ou em qualquer grande escritor.
Mas, em Carrero, não há sentido, nem perdão, nem redenção, nem esperança, nem
explicação. Só, como diz João Guimarães Rosa, “o escuro, escuros”: Carrero não
nos dá o alento de uma explicação, de um sentido; seus curtos romances terminam
sem fim, seus personagens não se entendem, nem se explicam. São mamulengos de
seus instintos animalescos e de forças inconscientes e ininteligíveis. São presas
dramáticas do destino. Sua “acomodação” num enredo sem referências de tempo e
lugar, numa ambiência fantasmagórica parecida com a das tragédias gregas
antigas, obriga-os a agirem sem entender suas próprias ações. E isso tudo nos
carrega para “trás” dos poucos acontecimentos, onde estão localizadas as forças
animalescas e brutais, próprias daquela natureza que todos sabemos que temos,
mas que decidimos esconder no curso de nosso processo civilizatório.
Como num jogo de cartas em que nada se pode prevenir,
alguns dos seus personagens são empurrados para experienciar o Mal que existe
em si mesmos e para materializar as mais sórdidas e estapafúrdias ações, as
quais nunca surpreendem os outros, pois de cada um ou de todos se esperam apenas
brutalidades e violências.
Inicialmente localizado por Ariano Suassuna no
Movimento Armorial (que reconfigura o popular regional imbricando-o com o
erudito, numa ludicidade que se fortalece no casamento entre forma e conteúdo),
Carrero, na verdade, nem se compromete com a região Nordeste e o popular, nem
com a tradição temática erudita, muito menos com a exuberância linguística e
descritiva de Suassuna. Ao contrário: sua
linguagem lacônica e claudicante, cheia de pontos finais, nos obriga a parar o
tempo todo e a respirar curto, como depois de correr, o que expande o paroxismo
do conteúdo.
Embora sua ambiência, sua temática e sua linguagem sejam essas, Raimundo
Carrero não está só − é herdeiro de uma linha que quebra o beletrismo de nossa
tradição literária; Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Rachel de Queiroz, José
Américo de Almeida, Graciliano Ramos ou mesmo João Cabral de Melo Neto são
companhias mencionáveis, em virtude do fato de suas obras quebrarem o conceito
de “lírico”, “belo” e “lógico”, à proporção que inauguram, a seu modo, novos
conceitos de belo. Como eles, Carrero quebra expectativas e conceitos,
tematizando as profundezas humanas num tempo que quer apagá-las.
Vem daí a verdadeira
utilidade de seus textos nesses tempos politicamente corretos e simplificadores,
tão contrários à literatura e suas funções mais escondidas, porém não menos
importantes...
Esse “fogo amigo” do
politicamente correto não é o primeiro inimigo da literatura: a religião talvez
a tenha perseguido de início; depois foi a vez dos totalitarismos todos – de
direita e de esquerda, infelizmente – que impuseram ou tentaram impor a ela
censuras, fogueiras, exílio e toda sorte de mordaça... Mesmo nas democracias,
houve impedimentos ao exercício pleno de todas as suas potencialidades. Mas
nelas pelo menos se podia arengar e, paulatinamente, avançar na direção da
ampliação da liberdade de expressão. E permanecer vivo. Que o diga Flaubert. No
fundo, uma democracia precisa tolerar dissidências, sob pena de não poder ser
considerada como tal.
Nascido da mais improvável
brecha da democracia, o politicamente correto é uma espécie de cartilha (ora
visível, ora invisível) que direciona como se deve falar ou escrever o que se
quer falar ou escrever. Por incrível que possa parecer, esse comportamento
existe – circula pelo WhatsApp, por exemplo, um “Manual para o uso não sexista
da linguagem”. Difícil de ser questionado e relativizado, o politicamente
correto carrega as melhores intenções. Mas é daquelas questões que terminam
batendo no inferno pelo caminho das fórmulas dogmáticas e simplistas.
O problema que o
politicamente correto tenta resolver é bem preocupante: há um empobrecimento
dos sujeitos que se projeta no empobrecimento da linguagem. Jornalistas,
professores, alunos, técnicos que projetam políticas educacionais... pretendem
simplificar o aprendizado de língua no afã de democratizar a Educação. Nesse
contexto, a sugestão, a conotação, a polissemia e a ironia, por exemplo – em
última estância, uma espécie de tecnologia de ponta da comunicação – passaram a
ser ferramentas mal conhecidas ou desconhecidas e, sem elas e sem o exercício
de abertura dos sentidos que elas possibilitavam, a comunicação travou. E se
fechou à alteridade, às nuances, às discordâncias, à complexidade, nossa mais
primeira e tão esquecida característica. Tudo isso junto impede a reflexão. Por
conseguinte, a razão invisível da simplificação mais inaceitável foi tomando
corpo e realizando a afirmação infantilizada de uma verdade escrita em
cartilhas que não traduz a heterogeneidade e a complexidade de nossa ontologia;
e, portanto, de nossos pensares e sentires e falares e saberes...
A aceitação cega desse
comportamento escamoteia uma colonização difícil de invisível. E nos divide em
“bonzinhos que falam certo” e “mauzinhos que falam errado e por isso devem
calar”. E nos subdivide em dois times de estátuas que se olham e se odeiam.
Bataille e Freud já alertaram para o perigo disso: há uma diferença
significativa entre ter feras visíveis, estudáveis, estudadas, pensadas,
faladas, espetacularizadas na literatura (ou num zoológico ou num circo como
metáforas) e soltá-las entre pessoas: é a diferença entre a convivência
minimamente possível e a barbárie.
Aquilo sobre o qual não se
fala não desaparece – fica ali “nos crespos do homem”, conforme diz João
Guimarães Rosa, e pode nos assaltar de repente. A literatura, portanto, seria
uma prevenção contra esse “invivível”; ela elabora o conteúdo desses crespos ao
passo que impede que ele se materialize em perseguições e assassinatos e
violências de verdade; ela permite a ressignificação desses crespos de modo a
tornar a nossa vida social possível, mesmo que não perfeita, o que de resto ela
nunca será.
Carrero não é politicamente
correto. Ele fala de assuntos ofensivos, é verdade. Entretanto exercita a nossa capacidade de
ouvir o que gostaríamos de silenciar; instiga-nos a mensurar o tamanho de nosso
apreço à liberdade de expressão e desafia as nossas negociações tão difíceis
nos terrenos da comunicação; convida-nos a enfrentar a vida (e seus inerentes
medos, dificuldades, dores, tristezas, perdas, alegrias...) e a nossa ontologia
e sua natureza sem nome de tão complexa e profunda. É desses escritores cuja
leitura nos faz recuperar esse conteúdo sufocado (não perdido, nem apagado)
pelo processo de civilização. E o melhor: nas palavras, podemos ressignificá-lo
sem correr riscos, nem derramar sangue.
Quem pensa que a arte deve
se tornar politicamente correta não pensa: ameaça sufocar tudo com a fumaça de
nossos crespos, por falta de cano de escape. E nos empurra no abismo de
realizarmos a barbárie, não nas palavras, mas no real. Uns contra ou outros...
Como deve ter acontecido com nossos ancestrais pré-históricos, quando ainda
estava por nascer isto que chamamos de “humanos”.
Francamente não sei como terminar
este texto com tantas ideias. Talvez com uma frase do crítico literário
português Jacinto Prado Coelho, que disse não ser a literatura uma ferramenta
para ensinar. E sequencia: “é a reflexão sobre a literatura que nos ensina”.
Portanto, agradeço a Raimundo Carrero, que me ajudou, com seus textos e seus
temas, a pensar nos motivos conscientes e inconscientes que me levam a olhar o
politicamente correto com um pé atrás, a defender sempre a irrestrita liberdade
de expressão e a justificar a literatura como um bem irrenunciável que nos
auxiliou a chegar até aqui – neste tempo em que, apesar das náuseas referidas, começamos a falar e
a pensar em tolerar a diferença e aceitar a diversidade. Tudo isso são
palavras, ainda ameaçadas com armas e, mais recentemente com leis, é bom
lembrar...
Enfim: cada palavra dessas
é uma flor. Incompleta e feia, é verdade. Mas
é uma flor.
1 Comments:
Parabéns, muito bom. Palmas. Paulo Gustavo
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