quarta-feira, abril 18, 2018

Carta para Antônio Paulo


         Fui assistir a duas palestras suas nos últimos sábados e achei tudo o que você disse pertinente. A primeira fala tinha um título interessante, algo sobre os maios de 68 que ainda vivemos e são herdeiros do original, e a segunda trazia como título “Desmedidas na cidadania: reflexões sobre a agressividade cotidiana”. Principalmente essa segunda me pegou de jeito, pois você expôs ideias que se encontram com temas sobre os quais venho pensando e, confesso, nos quais venho me perdendo, como num labirinto do qual não consigo sair.
Aí entra este texto aflito que escrevo: ele é uma tentativa de ordenar as ideias e mesmo de pedir socorro para que você me ajude, com as leituras mais acadêmicas que você empreendeu, a arrumá-las ainda melhor, se é que minimamente conseguirei fazê-lo.
Estava tudo tão desarrumado, que comecei revendo, com cuidado, um filme chamado em português “Em um mundo melhor” (em dinamarquês, a língua da diretora Simonne Bier, ele se chama “Vingança”). É um filme sobre a dificuldade de se articular uma saída para a violência, com/em que nos movemos, e que se passa dentro de uma oposição, a princípio, simplista: o personagem central Anton é um homem bom que vive cercado de dificuldades, feito a maioria de nós, seres humanos, ao longo do processo de nossa história agônica. Aliás, Nikos Kazantzakis, escritor grego, tem uma frase que nos ajuda a prosseguir a análise: “Não sei como é a alma de um criminoso, mas a alma do homem honesto, do homem bom, é um inferno”.
Nesse contexto, somos apresentados aos conflitos do enredo: Anton é sueco, vive na Dinamarca e vai sistematicamente ao Sudão dar assistência médica num acampamento de refugiados. O filme se tece dentro de uma paratopia, palavra prima de duas outras – “utopia” e “distopia” que, respectivamente, significam o sonho com um mundo futuro melhor e a elaboração de nossos medos de um mundo futuro pior. Posso, então, a partir do título em português, afirmar que as duas últimas palavras também estão presentes no filme, apesar da ausência. A paratopia (“para” de proximidade e “topia” de lugar), por seu turno, se refere àquilo que está fora de lugar ou deslocado; um sujeito paratópico, por exemplo, seria alguém situado numa localização paradoxal: ele está integrado a uma sociedade, mas, ao mesmo tempo, distante dela. O personagem do filme, Anton, encontra-se deslocado de várias formas – se encontra em um lugar que não é o seu, se desloca de um lugar para outro sem se fixar e é alguém que não encontra um lugar. 
Isso tudo significa que estamos usando aqui de novo a arte como tecnologia de ponta para, sem riscos maiores, avançar nas discussões que precisamos travar entre nós.
Críticos politicamente corretos acusaram o filme de ser eurocêntrico e de tratar a violência nos dois lugares, sem considerar as medidas de proporção. Discordo totalmente, porque tenho problemas de cubagem, como já disse minha cunhada, e porque já li “Coração das trevas”, de Joseph Conrad, um dos livros que me ensinaram que as utopias, as distopias e as paratopias são perigosas, mas necessárias. Porque precisamos experimentar nossos medos, nossos preconceitos, nossas semelhanças, nossas diferenças, nosso ódio, nossa violência, ou seja, nossas dificuldades de relacionamento, por meio de nossas ficções (e, em última instância, por meio das palavras de que dispomos) para que tudo isso se dilua devagar. Não acredito que deixar de investir nessa ideia nos leve a um mundo melhor, que é o que de verdade viemos cada um de nós fazer. Nem me parece lógico que as gerações se sucedem para que o mundo fique cada vez pior, isso seria um contrassenso evolutivo, que o sucesso de nossa espécie nega, se avaliarmos o nosso trajeto sem erros de cubagem. É que, quando pensamos, levamos em consideração que a vida é salmoura em nossas feridas e, frequentemente, falamos de nossa dor com hipérboles válidas, é claro, mas que mostram visões distorcidas: não vivemos pior do que na Idade Média, ou mesmo na Moderna, embora nossa história tenha sido tecida de erros horríveis. Mas não só. Era esse um dos “lugares” a que eu queria chegar...  
Há quase vinte anos, aprendi uma coisa bem clara, ou talvez eu já soubesse, não sei... E o que consegui foi um exemplo narrativo para dar a meus alunos, não sei... Também não sei se foi o meu momento... Um dos meus filhos tinha se tornado deficiente, depois de uma longa e rara doença neurológica... Eu estava em Brasília para seu tratamento em um famoso hospital de lá, especializado em problemas locomotores... Fui, num fim de semana, dar um passeio com ele... E tive acesso, numa espécie de pequeno museu, a uma explicação sobre o fato de o zoológico brasiliense se chamar Sílvio Delmar Hollenbach: o nome de um sargento do Exército que, no recinto, tinha sacrificado sua própria vida para salvar a de uma criança que caíra na jaula das ariranhas, no dia 27 de agosto de 1977, dia em que eu completava, exatamente, 20 anos. Aquela informação, naquele momento em que minha vida estava mudando para uma segunda parte, me pegou de jeito... E a guardei para sempre, não acerto mais a pensar sem ela: não somos só violentos e egoístas, também fazemos sacrifícios enormes uns pelos outros. Infelizmente, num raio de ação tão minúsculo e silencioso que tende a ser desconsiderado. Em contrapartida, o Mal é uma notícia espalhafatosa e corre solta, de boca em boca descuidadas... E terminamos por pensar que, maior que tudo, ele vence e se estabelece definitivo. Guimarães Rosa diz isso de uma forma deliciosa: “Deus come escondido, e o Diabo sai por toda parte lambendo o prato...”.
Nesse contexto, refletir sobre violência exige agregar ao raciocínio o seu contrário, sob pena de não se pensar a verdade a respeito de nossa natureza. E vice-versa: nenhum amor é só puro. O que temos que entender é que somos seres complexos que nos movemos dentro das maiores ambiguidades: o personagem do filme sobre o qual estamos pensando, por exemplo, está num desses momentos cruciais – traiu a mulher, está arrependido, momentaneamente separado, precisa do perdão de sua esposa, enfrenta as dificuldades de educar dois filhos, encara violências na África e na Dinamarca, acredita em ações pacifistas... E leva a sua vida tentando coordenar tudo isso com alguma coerência... Na verdade, é numa metonímia dessas que todos nós andamos... A simplificação desse ramerrão confuso é que está turvando tudo e nos impedindo de ir adiante nas nossas discussões e entendimentos.
Como você disse, e ninguém há de negar, constata-se uma crise dos valores do Iluminismo: a Razão redentora, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade são “palavras” que perderam o sentido durante o século XX. Um mundo que guarda uma Dinamarca e um Sudão não tem razão, nem liberdade, nem igualdade, nem fraternidade.
Estamos ainda procurando as palavras com as quais montar novas utopias, que viver sem elas é se matar sem motivos todo dia e viver de angústias, sem as réstias de luz que norteiam e motivam...
Os personagens da narrativa experimentam, no curso do enredo, duas respostas à tensão da violência que os rodeia: reagem com violência e sem violência. E lidam com os efeitos que daí advêm.
Talvez, então, Bier nos peça mesmo é que pensemos na “palavra” consequência. Na Dinamarca e no Sudão, a violência escancara as contradições do processo civilizatório eurocêntrico e seus efeitos proporcionais, desproporcionais, suportáveis ou insuportáveis... Não há, portanto, raças piores ou melhores, nem culturas superiores e inferiores, nem um processo evolutivo linear e ininterrupto, nem um paradigma moral pertinente. Estamos fazendo história como somos: com avanços, retrocessos, dúvidas, medos, erros, acertos, enganos, confusões...
Além disso, a violência não é una: na Dinamarca, por exemplo, há limites em cheque que escancaram as soluções já encontradas – as crianças são violentas umas com as outras, e a direção da escola e a polícia não conseguem dar conta da violência entre elas, já que ela se esgueira, apesar do “pedagogês” e da ação politicamente correta e humanitária da polícia; no Sudão, não há limites – o campo de refugiados é um território sem lei, e a violência dali subverte os modelos culturais conhecidos.
A literatura já se atreveu a cutucar esse vespeiro no “Coração das trevas”, de Joseph Conrad, o qual, por causa do livro, foi acusado pelos africanos de racista: é que, embora tivesse a intenção de criticar o processo colonial, o autor era um homem de seu tempo, que usou o saber de seu tempo para fazê-lo. Ou seja: seu livro foi escrito no meio do furacão das ideias de Darwin. E deu no que deu. É claro que a discussão não anula o livro, ao contrário: ele e seus defeitos já nos ajudaram a ver muita coisa. E a ter mais cuidado. Em contrapartida, se tivermos receios demais, deixaremos de falar sobre o nosso “horror” (como o “Coração das trevas” nomeia) e de seguir em frente...
O clímax do filme é uma cena forte – depois de tentar agir com ética no Sudão, pretendendo, desesperadamente, dar algum sentido àquele acampamento e à sua presença nele, Anton é experimentado para além de seus limites e refuta se identificar com o Mal, como quem entende que um só homem não é capaz de consertar tudo, nem de impedir que as consequências de uma extrema violência se percam na sua própria espiral autofágica.
Esse era o segundo “lugar” a que eu queria chegar...  Anton, cercado de violências variadas, como quem atira uma pedra na água e observa, consciente ou conscientemente, agiu de três formas, num crescendo – fantasiou sobre sua superioridade moral, espetacularizou e, portanto, desconstruiu sua “didática do Bem”, pensou na sua própria responsabilidade, culpa ou conivência... E, então, sem saber o que mais fazer, depois do malogro das ações empreendidas, deixou que a criatura gerada se voltasse contra seu criador. Isto é: deixou (ou não pôde mais impedir, não sei ao certo) que a população vitimada matasse a pauladas o chefe da facção criminosa que a vitimava. A fortíssima cena descortina a ideia desesperada de que cada um de nós tem um raio de ação limitado e tem mesmo é que esperar que os excessos de violência se fodam (com licença da palavra) a si mesmos, embora dentro da nossa parte boa ainda possamos admitir responsabilidades inócuas molhadas de lágrimas... 
Rousseau, Victor Hugo e Charles Dickens ficariam horrorizados com tal raciocínio, mas os parâmetros do século XXI devem de fato ser outros. Talvez a ideia de que cada um de nós é conivente, por omissão, com a violência que nos cerca dilui a responsabilidade de quem de fato a cometeu e adia para nunca o acerto de contas do produtor dela com a lei, conforme, enfim, deve-se agir: a palavra como mediadora de nossos curtos circuitos.
É claro que estou pensando isso no conforto da ficção, tentando sair da arapuca da violência reinventada indefinidamente que constitui nossa convivência... E fazendo uso da palavra, que é o que recentemente tenho pensado e escrito sobre as saídas possíveis para os impasses sem bula que nos atropelam pela vida...  
Recentemente, um amigo, muito constrangido, confessou-me, bem baixinho, que se sente ofendido quando se levanta o raciocínio de que todo homem é, em potencial, um estuprador... Quero terminar este texto dizendo que sinto muito e que acredito de com força que ele não é responsável pela violência que apenas alguns homens cometem contra mulheres; que escrevi este texto porque estou cansada de generalizações simplistas vazias de perdão; que não é justo acusar a maioria das pessoas (que são motivadas pelo Bem, embora nem sempre acertem a fazer tudo certo) de serem responsáveis pela violência (e outras desgraças) que as cerca;  que estou com raiva de ideias que impedem outras novas de chegarem; que meu esforço de afeto e tolerância não reconhece o que tem a ver com o Mal sem limites; que estamos vivendo um tempo em que uma miríade de particularidades clama por validação e em que toda diferença pede permissão... Isso, portanto, pode significar que também podem estar em crise esses “parâmetros sociais abstratos” (do tipo “somos todos responsáveis pela violência da polícia”) os quais, ao fim e ao cabo, estão apenas servindo para nos empurrar uns contra os outros, sem clarificar novas respostas para as nossas perguntas de sempre – Até quando? E agora? O quê? Para quê?

2 Comments:

At 11:11 PM, Anonymous Anônimo said...

Compactuo inteiramente com suas reflexões acerca da violência humana. Responsabilizar indiscriminadamente a sociedade por essa violência é não entender a natureza ambígua do homem; é eximir os poderes públicos pela incompetência em compreender o "crime" e o "castigo" adequado; é ratificar a impunidade; é perturbar a alma dos homens bons.
Abraço,
Everton do Egito.

 
At 11:13 PM, Anonymous Anônimo said...

Flavinha, que texto lindo. Eu vou ler esse texto durante toda a minha vida. Eu te amo. Ruann

 

Postar um comentário

<< Home