Carta para Antônio Paulo
Fui assistir a duas palestras suas nos últimos sábados e
achei tudo o que você disse pertinente. A primeira fala tinha um título
interessante, algo sobre os maios de 68 que ainda vivemos e são herdeiros do
original, e a segunda trazia como título “Desmedidas na cidadania: reflexões
sobre a agressividade cotidiana”. Principalmente essa segunda me pegou de
jeito, pois você expôs ideias que se encontram com temas sobre os quais venho
pensando e, confesso, nos quais venho me perdendo, como num labirinto do qual
não consigo sair.
Aí
entra este texto aflito que escrevo: ele é uma tentativa de ordenar as ideias e
mesmo de pedir socorro para que você me ajude, com as leituras mais acadêmicas
que você empreendeu, a arrumá-las ainda melhor, se é que minimamente
conseguirei fazê-lo.
Estava
tudo tão desarrumado, que comecei revendo, com cuidado, um filme chamado em
português “Em um mundo melhor” (em dinamarquês, a língua da diretora Simonne
Bier, ele se chama “Vingança”). É um filme sobre a dificuldade de se articular uma
saída para a violência, com/em que nos movemos, e que se passa dentro de uma
oposição, a princípio, simplista: o personagem central Anton é um homem bom que
vive cercado de dificuldades, feito a maioria de nós, seres humanos, ao longo do
processo de nossa história agônica. Aliás, Nikos Kazantzakis, escritor grego,
tem uma frase que nos ajuda a prosseguir a análise: “Não sei como é a alma de
um criminoso, mas a alma do homem honesto, do homem bom, é um inferno”.
Nesse
contexto, somos apresentados aos conflitos do enredo: Anton é sueco, vive na
Dinamarca e vai sistematicamente ao Sudão dar assistência médica num
acampamento de refugiados. O filme se tece dentro de uma paratopia, palavra
prima de duas outras – “utopia” e “distopia” que, respectivamente, significam o sonho com um mundo futuro melhor e a elaboração de nossos medos de um mundo futuro pior. Posso, então, a partir do título em português,
afirmar que as duas últimas palavras também estão presentes no filme, apesar da
ausência. A paratopia (“para” de proximidade e “topia” de lugar), por seu
turno, se refere àquilo que está fora de lugar ou deslocado; um sujeito
paratópico, por exemplo, seria alguém situado numa localização paradoxal: ele
está integrado a uma sociedade, mas, ao mesmo tempo, distante dela. O personagem
do filme, Anton, encontra-se deslocado de várias formas – se encontra em um
lugar que não é o seu, se desloca de um lugar para outro sem se fixar e é
alguém que não encontra um lugar.
Isso
tudo significa que estamos usando aqui de novo a arte como tecnologia de ponta
para, sem riscos maiores, avançar nas discussões que precisamos travar entre
nós.
Críticos
politicamente corretos acusaram o filme de ser eurocêntrico e de tratar a
violência nos dois lugares, sem considerar as medidas de proporção. Discordo
totalmente, porque tenho problemas de cubagem, como já disse minha cunhada, e
porque já li “Coração das trevas”, de Joseph Conrad, um dos livros que me
ensinaram que as utopias, as distopias e as paratopias são perigosas, mas
necessárias. Porque precisamos experimentar nossos medos, nossos preconceitos,
nossas semelhanças, nossas diferenças, nosso ódio, nossa violência, ou seja,
nossas dificuldades de relacionamento, por meio de nossas ficções (e, em última
instância, por meio das palavras de que dispomos) para que tudo isso se dilua
devagar. Não acredito que deixar de investir nessa ideia nos leve a um mundo
melhor, que é o que de verdade viemos cada um de nós fazer. Nem me parece
lógico que as gerações se sucedem para que o mundo fique cada vez pior, isso
seria um contrassenso evolutivo, que o sucesso de nossa espécie nega, se
avaliarmos o nosso trajeto sem erros de cubagem. É que, quando pensamos,
levamos em consideração que a vida é salmoura em nossas feridas e,
frequentemente, falamos de nossa dor com hipérboles válidas, é claro, mas que
mostram visões distorcidas: não vivemos pior do que na Idade Média, ou mesmo na
Moderna, embora nossa história tenha sido tecida de erros horríveis. Mas não
só. Era esse um dos “lugares” a que eu queria chegar...
Há
quase vinte anos, aprendi uma coisa bem clara, ou talvez eu já soubesse, não
sei... E o que consegui foi um exemplo narrativo para dar a meus alunos, não
sei... Também não sei se foi o meu momento... Um dos meus filhos tinha se
tornado deficiente, depois de uma longa e rara doença neurológica... Eu estava
em Brasília para seu tratamento em um famoso hospital de lá, especializado em
problemas locomotores... Fui, num fim de semana, dar um passeio com ele... E tive
acesso, numa espécie de pequeno museu, a uma explicação sobre o fato de o zoológico
brasiliense se chamar Sílvio Delmar Hollenbach: o nome de um sargento do
Exército que, no recinto, tinha sacrificado sua própria vida para salvar a de uma
criança que caíra na jaula das ariranhas, no dia 27 de agosto de 1977, dia em
que eu completava, exatamente, 20 anos. Aquela informação, naquele momento em
que minha vida estava mudando para uma segunda parte, me pegou de jeito... E a
guardei para sempre, não acerto mais a pensar sem ela: não somos só violentos e
egoístas, também fazemos sacrifícios enormes uns pelos outros. Infelizmente,
num raio de ação tão minúsculo e silencioso que tende a ser desconsiderado. Em
contrapartida, o Mal é uma notícia espalhafatosa e corre solta, de boca em boca
descuidadas... E terminamos por pensar que, maior que tudo, ele vence e se
estabelece definitivo. Guimarães Rosa diz isso de uma forma deliciosa: “Deus
come escondido, e o Diabo sai por toda parte lambendo o prato...”.
Nesse
contexto, refletir sobre violência exige agregar ao raciocínio o seu contrário,
sob pena de não se pensar a verdade a respeito de nossa natureza. E vice-versa:
nenhum amor é só puro. O que temos que entender é que somos seres complexos que
nos movemos dentro das maiores ambiguidades: o personagem do filme sobre o qual
estamos pensando, por exemplo, está num desses momentos cruciais – traiu a mulher,
está arrependido, momentaneamente separado, precisa do perdão de sua esposa,
enfrenta as dificuldades de educar dois filhos, encara violências na África e
na Dinamarca, acredita em ações pacifistas... E leva a sua vida tentando
coordenar tudo isso com alguma coerência... Na verdade, é numa metonímia dessas
que todos nós andamos... A simplificação desse ramerrão confuso é que está
turvando tudo e nos impedindo de ir adiante nas nossas discussões e
entendimentos.
Como
você disse, e ninguém há de negar, constata-se uma crise dos valores do
Iluminismo: a Razão redentora, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade são
“palavras” que perderam o sentido durante o século XX. Um mundo que guarda uma
Dinamarca e um Sudão não tem razão, nem liberdade, nem igualdade, nem
fraternidade.
Estamos
ainda procurando as palavras com as quais montar novas utopias, que viver sem
elas é se matar sem motivos todo dia e viver de angústias, sem as réstias de
luz que norteiam e motivam...
Os
personagens da narrativa experimentam, no curso do enredo, duas respostas à
tensão da violência que os rodeia: reagem com
violência e sem violência. E lidam
com os efeitos que daí advêm.
Talvez,
então, Bier nos peça mesmo é que pensemos na “palavra” consequência. Na Dinamarca e no Sudão, a violência escancara as
contradições do processo civilizatório eurocêntrico e seus efeitos
proporcionais, desproporcionais, suportáveis ou insuportáveis... Não há,
portanto, raças piores ou melhores, nem culturas superiores e inferiores, nem
um processo evolutivo linear e ininterrupto, nem um paradigma moral pertinente.
Estamos fazendo história como somos: com avanços, retrocessos, dúvidas, medos,
erros, acertos, enganos, confusões...
Além
disso, a violência não é una: na Dinamarca, por exemplo, há limites em cheque
que escancaram as soluções já encontradas – as crianças são violentas umas com
as outras, e a direção da escola e a polícia não conseguem dar conta da
violência entre elas, já que ela se esgueira, apesar do “pedagogês” e da ação
politicamente correta e humanitária da polícia; no Sudão, não há limites – o
campo de refugiados é um território sem lei, e a violência dali subverte os
modelos culturais conhecidos.
A
literatura já se atreveu a cutucar esse vespeiro no “Coração das trevas”, de
Joseph Conrad, o qual, por causa do livro, foi acusado pelos africanos de racista:
é que, embora tivesse a intenção de criticar o processo colonial, o autor era
um homem de seu tempo, que usou o saber de seu tempo para fazê-lo. Ou seja: seu
livro foi escrito no meio do furacão das ideias de Darwin. E deu no que deu. É
claro que a discussão não anula o livro, ao contrário: ele e seus defeitos já
nos ajudaram a ver muita coisa. E a ter mais cuidado. Em contrapartida, se
tivermos receios demais, deixaremos de falar sobre o nosso “horror” (como o
“Coração das trevas” nomeia) e de seguir em frente...
O
clímax do filme é uma cena forte – depois de tentar agir com ética no Sudão,
pretendendo, desesperadamente, dar algum sentido àquele acampamento e à sua
presença nele, Anton é experimentado para além de seus limites e refuta se
identificar com o Mal, como quem entende que um só homem não é capaz de
consertar tudo, nem de impedir que as consequências de uma extrema violência se
percam na sua própria espiral autofágica.
Esse
era o segundo “lugar” a que eu queria chegar...
Anton, cercado de violências variadas, como quem atira uma pedra na água
e observa, consciente ou conscientemente, agiu de três formas, num crescendo –
fantasiou sobre sua superioridade moral, espetacularizou e, portanto,
desconstruiu sua “didática do Bem”, pensou na sua própria responsabilidade,
culpa ou conivência... E, então, sem saber o
que mais fazer, depois do malogro das ações empreendidas, deixou que a
criatura gerada se voltasse contra seu criador. Isto é: deixou (ou não pôde
mais impedir, não sei ao certo) que a população vitimada matasse a pauladas o
chefe da facção criminosa que a vitimava. A fortíssima cena descortina a ideia
desesperada de que cada um de nós tem um raio de ação limitado e tem mesmo é
que esperar que os excessos de violência se fodam (com licença da palavra) a si
mesmos, embora dentro da nossa parte boa ainda possamos admitir
responsabilidades inócuas molhadas de lágrimas...
Rousseau,
Victor Hugo e Charles Dickens ficariam horrorizados com tal raciocínio, mas os
parâmetros do século XXI devem de fato ser outros. Talvez a ideia de que cada
um de nós é conivente, por omissão, com a violência que nos cerca dilui a
responsabilidade de quem de fato a cometeu e adia para nunca o acerto de contas
do produtor dela com a lei, conforme, enfim, deve-se agir: a palavra como
mediadora de nossos curtos circuitos.
É
claro que estou pensando isso no conforto da ficção, tentando sair da arapuca
da violência reinventada indefinidamente que constitui nossa convivência... E
fazendo uso da palavra, que é o que recentemente tenho pensado e escrito sobre
as saídas possíveis para os impasses sem bula que nos atropelam pela vida...
Recentemente, um amigo, muito constrangido, confessou-me,
bem baixinho, que se sente ofendido quando se levanta o raciocínio de que todo
homem é, em potencial, um estuprador... Quero terminar este texto dizendo que
sinto muito e que acredito de com força que ele não é responsável pela
violência que apenas alguns homens cometem contra mulheres; que escrevi este
texto porque estou cansada de generalizações simplistas vazias de perdão; que não
é justo acusar a maioria das pessoas (que são motivadas pelo Bem, embora nem
sempre acertem a fazer tudo certo) de serem responsáveis pela violência (e
outras desgraças) que as cerca; que
estou com raiva de ideias que impedem outras novas de chegarem; que meu esforço
de afeto e tolerância não reconhece o que tem a ver com o Mal sem limites; que
estamos vivendo um tempo em que uma miríade de particularidades clama por
validação e em que toda diferença pede permissão... Isso, portanto, pode
significar que também podem estar em crise esses “parâmetros sociais abstratos”
(do tipo “somos todos responsáveis pela violência da polícia”) os quais, ao fim
e ao cabo, estão apenas servindo para nos empurrar uns contra os outros, sem
clarificar novas respostas para as nossas perguntas de sempre – Até quando? E
agora? O quê? Para quê?
2 Comments:
Compactuo inteiramente com suas reflexões acerca da violência humana. Responsabilizar indiscriminadamente a sociedade por essa violência é não entender a natureza ambígua do homem; é eximir os poderes públicos pela incompetência em compreender o "crime" e o "castigo" adequado; é ratificar a impunidade; é perturbar a alma dos homens bons.
Abraço,
Everton do Egito.
Flavinha, que texto lindo. Eu vou ler esse texto durante toda a minha vida. Eu te amo. Ruann
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