domingo, setembro 30, 2018

Desafios do ensino da literatura na escola


“A literatura não se faz para ensinar: 
é a reflexão sobre ela que nos ensina.” 
(Jacinto Prado Coelho)
        
Como todos sabem, sou professora de Literatura no ensino médio privado do Estado de Pernambuco, tarefa que exerci não só na escola formal, mas também na rede paralela de aulas particulares da cidade, na qual pude fazer com mais liberdade o que sempre achei que devia, sem muitos obstáculos formais, e dentro de uma relação mais leve de custo-benefício, confesso.
De início, é preciso explicar o que ensinar literatura significa: estudei muito e compreendo o mundo a partir do seguimento da linha cronológica da História da Literatura Ocidental (e um pouco das artes plásticas) – a literatura brasileira dentro dele, evidentemente − desde a Idade Antiga até os dias atuais. Por meio da narrativa de sentidos históricos, sociais, culturais e simbólicos que é possível extrair dessa sequência de estilos de época, pude proporcionar a mim mesma e a meus alunos a tal reflexão para que o crítico português Jacinto Prado Coelho atenta na sua frase cuja clareza e obviedade tanto me têm ensinado, ultimamente.  
Acontece que vi esse saber sendo tão desvalorizado, paulatinamente, ao longo de minha trajetória profissional, que estou hoje aqui apreciando os resultados desse processo que terminará, ao que parece, por tirar a História da Literatura das salas do ensino médio. É preciso que se esclareça que não é a Literatura que está ameaçada, ao contrário: bienais, feiras literárias, fãs clubes e seguidores de escritores, resenhas no Youtube, adaptações de livros para o cinema, ofertas de graduações e pós-graduações de escrita criativa em diversos estados brasileiros... comprovam que mais do que nunca há canais abertos para a apreciação e a produção do texto literário. O que está em xeque é o ensino da literatura.
A relação da escola com a Literatura é bem ambígua: elas se dão bem, exceto quando a segunda convida a imaginação a pensar novas ordenações fora dos limites habituais. E isso não é raro, diga-se de passagem. Somada a outras questões contextuais nacionais e globais, essa ambiguidade tomou, recentemente, uma proporção tão notável, que se constata um afastamento invisível e sistemático entre a literatura e a escola e seus currículos. Como acho que a população brasileira não tem consciência do que está acontecendo, tenho exaustivamente denunciado e analisado causas e efeitos dessa política (não creio que inconsciente por parte de gestores) de verdadeiro apagamento das contribuições que a Literatura (e todas as ciências humanas) podem trazer para o tecido social brasileiro.
A construção processual e o fortalecimento cotidiano de uma democracia, na minha opinião, se devem, de início, a uma “atmosfera social” de reconhecimento de todos como merecedores de direitos iguais, embora sejam respeitadas as diferenças identitárias. É desnecessário lembrar que não é na aula de ciências que pautas como essas têm espaço. Em outras palavras, o desleixo com as humanas, o enfraquecimento dos movimentos sociais e a simplificação do currículo e, portanto, da escola de nossos jovens desestabilizaram profundamente o país. Não só: desviaram-no da direção de maior inserção que tínhamos encontrado. É claro que reconheço que há um contexto também global que foi ator desse processo. Porém, internamente, muita vitamina foi dada ao diabo. Como começou tudo isso?
 Acho que a primeira causa está na Universidade, que começou a questionar o ensino da História da Literatura, afirmando que os alunos estudavam literatura mas não acessavam o texto literário, ou seja: com certa razão, a Academia chamava atenção para o fato de que se estudava um discurso sobre a literatura e não a literatura. De fato, o texto literário, às vezes, na escola, tinha se transformado num mero pretexto para o estudo da biografia dos autores e da gramática normativa, embora isso se deva, talvez, à falta de conhecimento do como fazer e de reflexão sobre para que fazer e não propriamente a uma proposta de ausência total dessas questões na análise das obras.
O texto literário tem suas especificidades. E uma delas é a rede complexa de informações que tem de ser acessada para a sua compreensão: o contexto em que a obra foi escrita e alguns pontos da biografia de seu autor, por exemplo, são informações cruciais para se entender a obra, até porque um dos objetivos da Literatura é elaborar tanto a realidade circundante quanto a subjetiva. Nesse sentido, o conhecimento do contexto histórico e de alguns pontos da biografia do autor são informações necessárias para o entendimento do texto literário. A questão é de "cubagem".
Na verdade, penso que a escola é coadjuvante importante mas não único para os letramentos, o literário incluído, os quais são uma construção ou uma apropriação subjetiva, antes de tudo; essa instituição dará ao aluno algumas ferramentas ou pontos de partida, é claro. Mas a escolha dos “nossos” livros é uma ação que se empreende fora ou depois da escola, quando poderemos, numa busca desinteressada, achar aquele livro que não conta uma história, mas a que nos ajuda a contar ou a entender a nossa história.
Mais ações sociais e projetos devem ser empreendidas pelos Ministérios da Educação e da Cultura, por Organizações Não Governamentais, entidades privadas e públicas, bibliotecas, clubes de livro e de leitura, famílias... para complementar o papel da escola, que tem limites e não pode sozinha resolver todos os problemas e demandas sociais, nem formar leitores desinteressados em ser formados.
Na verdade, eu mesma penso que ler um texto literário é uma relação muito íntima com o autor, a qual só pode ser intermediada com muito cuidado; recitar um poema ou ler um conto, cuidadosa e cooperativamente, por exemplo, é possível numa sala de aula... Já o romance é um gênero desafiador nesse ambiente ou mesmo numa sociedade que se distancia aos poucos do silêncio, da atenção focada, da lentidão... Feliz ou infelizmente, há um ponto em que o aluno tem de por si só empreender a ação de pegar o livro e fazer o esforço de lê-lo.  
É evidente que percursos anteriores a essa ação a tornarão menos árdua: a contextualização da obra, o levantamento de pontos da biografia relacionados ao texto, a leitura de resenhas de leitores anteriores, a discussão de alguns raros pontos teóricos, como narração, ponto de vista, foco narrativo são pontos de partida irrenunciáveis. Mas ler é uma comunicação intersubjetiva, não dá para fugir disso.
E é bem difícil construir leitores numa sociedade que não valoriza a leitura nem oferta tempo livre e silencioso para ler. E a escola tem pouco o que fazer em relação a isso e até replica essa hiperocupação do aluno e do professor, a qual impede a leitura e a reflexão. 
Outra ambiguidade da relação escola-literatura está na leitura dos livros conhecidos por “clássicos”. É compreensível que a escola tenha um apreço por eles. Mas acho que já chegamos a um consenso sobre o ponto de que essa leitura não deve ser obrigatória. É a diferença entre fazer sexo com amor e ser estuprada, desculpem a comparação... Desse modo, falar dessas obras com amor por meio de sua localização no tempo e levantar uma teia de informações de artes plásticas, História, Geografia, Filosofia e Sociologia que se “linkam” entre si talvez seja o que se pode fazer para começar a apresentá-las para os mais novos. Não me parece que o mercado editorial esteja interessado em fazê-lo.  
A segunda pancada nas humanas foi o processo de formação e subsequente desenvolvimento da sociedade global de massa e seus convites, que foram se tornando, na verdade, uma espécie de bombardeio de dados tremeluzentes, viciantes e desconexos, com um paradoxo embutido: ao passo que intensificam a comunicação global instantânea, os meios de comunicação de massa ameaçam apagar sussurros locais. Essa sereia hipermoderna tem, de forma subrreptícia, feito a realidade social, com seus deveres e preocupações éticas e, portanto, coletivas, parecer sem sentido e, portanto, desnecessária. E a palavra “desejo” ficar perigosamente sinônima da palavra “direito”.
Nesse contexto, é preciso notar como o descuido e a descrença em relação às artes põem em perigo nossa qualidade de vida; é urgente aprender a se proteger contra a tirania da propaganda e, consequentemente, dos bens materiais. E não me parece que uma educação focada nas ciências apenas há de construir democracia, sustentabilidade e distribuição de renda.
Sem o exercício da alteridade que as artes e, principalmente, a Literatura proporcionam, não seremos capazes de nos colocar no lugar do outro, para chegarmos à conclusão inequívoca de que precisamos distribuir melhor nossas riquezas e nossa natureza, porque o outro é alguém que tem humanidade e direitos legítimos.
Uma maneira de retomar o foco é oferecer aos olhos de nossos jovens e mesmo adultos oportunidades de percepção estável da beleza e da ordenação, ou seja, da contemplação da Arte.
A terceira pancada foi a do materialismo, que nos transformou em seres não só incapazes de ver além do social e do econômico, mas também motivados por necessidades e desejos apenas materiais. Por conseguinte, o objeto artístico foi condenado a se tornar uma agenda política das questões contemporâneas e ficou subordinado a slogans, partidos e interesses mascarados. 
A História da Arte não é uma narrativa arbitrária e imperialista; é um acervo em que estão registradas as refrações de nossa consciência, de nossos sonhos, de nossas conquistas; em que estão guardadas as nossas tentativas nem sempre exitosas de entender o diferente, de nos aproximar dele, apesar do medo, de lutar por ele e de falar por ele, quando isso lhe é impossível; em que estão inscritos os nossos erros, defeitos, perdões, esforços, elaborações, ressignificações...
A quarta pancada foi dada pelo que chamo de levantamento de oposições simplistas. Essa tendência é muito perigosa em qualquer sociedade moderna, porque as pessoas passaram, aos poucos, a se perceberem diversas em relação a religião, etnia, acesso à renda, classe, gênero, sexualidade, diversidades identitárias...
Depois da valorização ocasional que tiveram as ciências humanas −  a Literatura (e as artes plásticas) incluídas − pós Segunda Guerra Mundial, quando grandes humanistas surgiram das cinzas, devagar, foi ganhando corpo a ideia de que nossas crianças e jovens tinham que estudar mais as ciências naturais, para não só criar riquezas, mas também nos recuperar de seguidas crises econômicas. Isso até pode ser verdade. Entretanto, entre o foco nas ciências naturais e a desvalorização das humanas, há milhares de pontos que precisam ser examinados, pensados, avaliados... É esse comportamento simplificador – as ciências produzem riqueza e as humanas não − que denuncio aqui.
E mais: professores e técnicos que defendem uma educação só científica, na minha opinião, não ignoram a Arte, querem apagá-la do currículo, como já estão fazendo. Pois a percepção do contraditório da realidade humana que a Literatura (e a Arte, a História, a Geografia, a Sociologia e a Filosofia) permitem é inimiga do absurdo moral necessário para executar desenvolvimento econômico cego à desigualdade.
Recentemente, escrevi textos em que convidei à reflexão, à escuta e ao diálogo, que, reconheço, não são “palavras” fáceis. Na verdade, acho que tenho falado dos mesmos assuntos há alguns meses... Com a ajuda de Guimarães Rosa, Vilém Flusser e Mia Couto, tenho ratificado a importância da reflexão, do pensamento original, da escuta cuidadosa do outro e da expressão oportuna, quando conseguimos acrescentar algo novo. Espero que saiamos melhores desta eleição que se aproxima e consigamos retomar a direção que perdemos. E que tenhamos aprendido que o melhor caminho é plural e, ao mesmo tempo, consensual. Sem a presença da Literatura, esse cimento que tanto nos ajuda a entrelaçar intuições, saberes e sentires, não caminharemos na direção correta.