Desafios do ensino da literatura na escola
“A literatura não se faz para ensinar:
é a
reflexão sobre ela que nos ensina.”
(Jacinto Prado Coelho)
Como todos
sabem, sou professora de Literatura no ensino médio privado do Estado de
Pernambuco, tarefa que exerci não só na escola formal, mas também na rede
paralela de aulas particulares da cidade, na qual pude fazer com mais liberdade
o que sempre achei que devia, sem muitos obstáculos formais, e dentro de uma
relação mais leve de custo-benefício, confesso.
De início,
é preciso explicar o que ensinar literatura significa: estudei muito e
compreendo o mundo a partir do seguimento da linha cronológica da História da Literatura Ocidental (e um pouco das
artes plásticas) – a literatura brasileira dentro dele,
evidentemente − desde a Idade Antiga até os dias atuais. Por meio da narrativa
de sentidos históricos, sociais, culturais e simbólicos que é possível extrair
dessa sequência de estilos de época, pude proporcionar a mim mesma e a meus
alunos a tal reflexão para que o crítico português Jacinto Prado Coelho atenta
na sua frase cuja clareza e obviedade tanto me têm ensinado, ultimamente.
Acontece
que vi esse saber sendo tão desvalorizado, paulatinamente, ao longo de minha
trajetória profissional, que estou hoje aqui apreciando os resultados desse
processo que terminará, ao que parece, por tirar a História da Literatura das
salas do ensino médio. É preciso que se esclareça que não é a Literatura que
está ameaçada, ao contrário: bienais, feiras literárias, fãs clubes e
seguidores de escritores, resenhas no Youtube, adaptações de livros para o
cinema, ofertas de graduações e pós-graduações de escrita criativa em diversos
estados brasileiros... comprovam que mais do que nunca há canais abertos para a
apreciação e a produção do texto literário. O que está em xeque é o ensino da literatura.
A relação
da escola com a Literatura é bem ambígua: elas se dão bem, exceto quando a
segunda convida a imaginação a pensar novas ordenações fora dos limites
habituais. E isso não é raro, diga-se de passagem. Somada a outras questões
contextuais nacionais e globais, essa ambiguidade tomou, recentemente, uma
proporção tão notável, que se constata um afastamento invisível e sistemático
entre a literatura e a escola e seus currículos. Como acho que
a população brasileira não tem consciência do que está acontecendo, tenho
exaustivamente denunciado e analisado causas e efeitos dessa política (não
creio que inconsciente por parte de gestores) de verdadeiro apagamento das
contribuições que a Literatura (e todas as ciências humanas) podem trazer para
o tecido social brasileiro.
A
construção processual e o fortalecimento cotidiano de uma democracia, na minha
opinião, se devem, de início, a uma “atmosfera social” de reconhecimento de
todos como merecedores de direitos iguais, embora sejam respeitadas as
diferenças identitárias. É desnecessário lembrar que não é na aula de ciências
que pautas como essas têm espaço. Em outras palavras, o desleixo com as humanas, o enfraquecimento dos movimentos sociais e a simplificação do
currículo e, portanto, da escola de nossos jovens desestabilizaram
profundamente o país. Não só: desviaram-no da direção de maior inserção que
tínhamos encontrado. É claro que reconheço que há um contexto também global que
foi ator desse processo. Porém, internamente, muita vitamina foi dada ao diabo.
Como começou tudo isso?
Acho que a primeira causa está na Universidade, que começou a questionar o ensino da História da Literatura, afirmando que os
alunos estudavam literatura mas não acessavam o texto literário, ou seja: com
certa razão, a Academia chamava atenção para o fato de que se estudava um
discurso sobre a literatura e não a literatura. De fato, o texto
literário, às vezes, na escola, tinha se transformado num mero pretexto para o
estudo da biografia dos autores e da gramática normativa, embora isso se deva,
talvez, à falta de conhecimento do como
fazer e de reflexão sobre para que
fazer e não propriamente a uma
proposta de ausência total dessas
questões na análise das obras.
O texto
literário tem suas especificidades. E uma delas é a rede complexa de
informações que tem de ser acessada para a sua compreensão: o contexto em que a obra foi escrita e
alguns pontos da biografia de seu
autor, por exemplo, são informações cruciais para se entender a obra, até
porque um dos objetivos da Literatura é elaborar tanto a realidade circundante
quanto a subjetiva. Nesse sentido, o conhecimento do contexto histórico e de
alguns pontos da biografia do autor são informações necessárias para o
entendimento do texto literário. A questão é de "cubagem".
Na
verdade, penso que a escola é coadjuvante importante mas não único para os letramentos, o literário incluído, os quais são uma construção ou uma
apropriação subjetiva, antes de tudo; essa instituição dará ao aluno algumas
ferramentas ou pontos de partida, é claro. Mas a escolha dos “nossos” livros é
uma ação que se empreende fora ou depois da escola, quando poderemos, numa
busca desinteressada, achar aquele
livro que não conta uma história,
mas a que nos ajuda a contar ou a
entender a nossa história.
Mais ações
sociais e projetos devem ser empreendidas pelos Ministérios da Educação e da
Cultura, por Organizações Não Governamentais, entidades privadas e públicas,
bibliotecas, clubes de livro e de leitura, famílias... para complementar o
papel da escola, que tem limites e não pode sozinha resolver todos os problemas
e demandas sociais, nem formar leitores desinteressados em ser formados.
Na
verdade, eu mesma penso que ler um texto literário é uma relação muito íntima
com o autor, a qual só pode ser intermediada com muito cuidado; recitar um poema
ou ler um conto, cuidadosa e cooperativamente, por exemplo, é possível numa
sala de aula... Já o romance é um gênero desafiador nesse ambiente ou mesmo
numa sociedade que se distancia aos poucos do silêncio, da atenção focada, da
lentidão... Feliz ou infelizmente, há um ponto em que o aluno tem de por si só empreender
a ação de pegar o livro e fazer o esforço de lê-lo.
É evidente
que percursos anteriores a essa ação a tornarão menos árdua: a contextualização
da obra, o levantamento de pontos da biografia relacionados ao texto, a leitura
de resenhas de leitores anteriores, a discussão de alguns raros pontos
teóricos, como narração, ponto de vista, foco narrativo são pontos de partida
irrenunciáveis. Mas ler é uma comunicação intersubjetiva, não dá para fugir
disso.
E é bem
difícil construir leitores numa sociedade que não valoriza a leitura nem oferta
tempo livre e silencioso para ler. E a escola tem pouco o que fazer em relação
a isso e até replica essa hiperocupação do aluno e do professor, a qual impede a
leitura e a reflexão.
Outra
ambiguidade da relação escola-literatura está na leitura dos livros conhecidos
por “clássicos”. É compreensível que a escola tenha um apreço por eles. Mas
acho que já chegamos a um consenso sobre o ponto de que essa leitura não deve
ser obrigatória. É a diferença entre fazer sexo com amor e ser estuprada,
desculpem a comparação... Desse modo, falar dessas obras com amor por meio de
sua localização no tempo e levantar uma teia de informações de artes plásticas, História, Geografia, Filosofia e Sociologia que se “linkam” entre si talvez
seja o que se pode fazer para começar a apresentá-las para os mais novos. Não
me parece que o mercado editorial esteja interessado em fazê-lo.
A segunda
pancada nas humanas foi o processo de formação e subsequente desenvolvimento da
sociedade global de massa e seus convites, que foram se tornando, na verdade,
uma espécie de bombardeio de dados tremeluzentes, viciantes e desconexos, com um
paradoxo embutido: ao passo que intensificam a comunicação global
instantânea, os meios de comunicação
de massa ameaçam apagar sussurros locais. Essa sereia hipermoderna tem, de
forma subrreptícia, feito a realidade social, com seus deveres e preocupações
éticas e, portanto, coletivas, parecer sem sentido e, portanto, desnecessária.
E a palavra “desejo” ficar perigosamente sinônima da palavra “direito”.
Nesse
contexto, é preciso notar como o descuido e a descrença em relação às artes
põem em perigo nossa qualidade de vida; é urgente aprender a se proteger contra
a tirania da propaganda e, consequentemente, dos bens materiais. E não me
parece que uma educação focada nas ciências apenas há de construir democracia, sustentabilidade e distribuição de renda.
Sem o
exercício da alteridade que as artes e, principalmente, a Literatura
proporcionam, não seremos capazes de nos colocar no lugar do outro, para
chegarmos à conclusão inequívoca de que precisamos distribuir melhor nossas
riquezas e nossa natureza, porque o outro é alguém que tem humanidade e
direitos legítimos.
Uma
maneira de retomar o foco é oferecer aos olhos de nossos jovens e mesmo adultos
oportunidades de percepção estável da beleza e da ordenação, ou seja, da
contemplação da Arte.
A terceira
pancada foi a do materialismo, que nos transformou em seres não só incapazes de
ver além do social e do econômico, mas também motivados por necessidades e
desejos apenas materiais. Por
conseguinte, o objeto artístico foi condenado a se tornar uma agenda política
das questões contemporâneas e ficou subordinado a slogans, partidos e
interesses mascarados.
A História
da Arte não é uma narrativa arbitrária e imperialista; é um acervo em que estão
registradas as refrações de nossa consciência, de nossos sonhos, de nossas
conquistas; em que estão guardadas as nossas tentativas nem sempre exitosas de
entender o diferente, de nos aproximar dele, apesar do medo, de lutar por ele e
de falar por ele, quando isso lhe é impossível; em que estão inscritos os
nossos erros, defeitos, perdões, esforços, elaborações, ressignificações...
A quarta
pancada foi dada pelo que chamo de levantamento
de oposições simplistas. Essa
tendência é muito perigosa em qualquer sociedade moderna, porque as pessoas
passaram, aos poucos, a se perceberem diversas em relação a religião, etnia,
acesso à renda, classe, gênero, sexualidade, diversidades identitárias...
Depois da
valorização ocasional que tiveram as ciências humanas − a Literatura (e as artes plásticas) incluídas
− pós Segunda Guerra Mundial, quando grandes humanistas surgiram das cinzas,
devagar, foi ganhando corpo a ideia de que nossas crianças e jovens tinham que
estudar mais as ciências naturais, para não só criar riquezas, mas também nos
recuperar de seguidas crises econômicas. Isso até pode ser verdade. Entretanto,
entre o foco nas ciências naturais e a desvalorização das humanas, há milhares
de pontos que precisam ser examinados, pensados, avaliados... É esse
comportamento simplificador – as ciências produzem riqueza e as humanas não −
que denuncio aqui.
E mais:
professores e técnicos que defendem uma educação só científica, na minha
opinião, não ignoram a Arte, querem apagá-la do currículo, como já estão
fazendo. Pois a percepção do contraditório da realidade humana que a Literatura
(e a Arte, a História, a Geografia, a Sociologia e a Filosofia) permitem é
inimiga do absurdo moral necessário para executar desenvolvimento econômico
cego à desigualdade.
Recentemente,
escrevi textos em que convidei à reflexão, à escuta e ao diálogo, que,
reconheço, não são “palavras” fáceis. Na verdade, acho que tenho falado dos
mesmos assuntos há alguns meses... Com a ajuda de Guimarães Rosa, Vilém Flusser
e Mia Couto, tenho ratificado a importância da reflexão, do pensamento
original, da escuta cuidadosa do outro e da expressão oportuna, quando
conseguimos acrescentar algo novo. Espero que saiamos melhores desta eleição
que se aproxima e consigamos retomar a direção que perdemos. E que tenhamos
aprendido que o melhor caminho é plural e, ao mesmo tempo, consensual. Sem a presença
da Literatura, esse cimento que tanto nos ajuda a entrelaçar intuições, saberes
e sentires, não caminharemos na direção correta.
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