O DIREITO À LITERATURA (I)
Todos
falamos muito sobre literatura, palavra presente nos currículos universitários,
nos catálogos das editoras, nas discussões em escolas, festas, feiras e prêmios,
nos meios de comunicação impressos e eletrônicos... Mas talvez seja mesmo
impossível precisar um conceito único de literatura: circulam entre nós apenas
acepções, historicamente variáveis. Em outras palavras: ao longo de nossa
história, concepções sobre a palavra “literatura” mudaram, porque os contextos
históricos mudaram.
Vindas da Grécia antiga, quando
Aristóteles conceituou a literatura como um modo de representar mimeticamente a
realidade por meio de palavras, passando por Kant (que disse ser ela uma
produção de discursos coerentes sem finalidade externa), pelos românticos (que
a tomaram como sinônimo de exteriorização de sentimentos) ou mesmo pelos
teóricos do século XX que a tomaram como um processo de comunicação com ênfase
na própria mensagem, essas acepções são confundidas e confundem quando se fala
a palavra “literatura”.
De início, é preciso dizer que só é
possível uma definição contextual. A literatura já serviu para manter o “status
quo”, para catequizar, para obter favores de poderosos, para homenagear mestres
do passado... A noção que a maioria das pessoas tem de literatura, hoje, data
dos anos finais do século XVIII, quando, crescentemente, ela foi se tornando
uma profissão, uma espécie de discurso, uma instituição, uma disciplina escolar...
Aí chegamos ao XIX, ao mesmo tempo o século de maior prestígio da literatura e
de ameaça a ela: na sua primeira metade, apareceram escritores chamados de
publicistas, que funcionavam como profetas da nacionalidade, ou como
porta-vozes do modo de pensar burguês, o qual defendia as utopias da liberdade,
da igualdade e da fraternidade, como Vítor Hugo ou Charles Dickens; na sua
segunda metade, na esteira do declínio desses ideais, a literatura chegou a não
só encastelar-se em um discurso metalinguístico, para se desvincular do
utilitarismo da sociedade burguesa, mas também a cultivar um discurso
cifrado e hermético que terminou por afastar a maioria dos leitores.
A crítica e o ensino da literatura
seguiram esse mesmo caminho: perderam prestígio na passagem do século XIX para
o XX – a primeira se enfraqueceu, quando ficou ao lado da censura e da
hierarquia, perdendo espaço quando outras atividades culturais lhe fizeram
concorrência; o segundo se afastou da filologia e da retórica, servindo-se,
consecutivamente, da história, da estilística, da sociologia e da psicanálise,
e foi gravemente ferido pela Linguística e pelo estruturalismo. A partir do
fortalecimento da globalização e dos movimentos sociais amplificados pelos
formidáveis meios de comunicação de que agora dispomos, tanto a crítica quanto
o ensino voltaram-se para estudos de temas considerados politicamente
corretos.
Nesse contexto, a sempre frágil
especificidade da literatura estilhaçou-se, e se chegou a executar um velório o
qual não foi seguido de seu enterro – feiras locais e internacionais, bienais,
entrevistas e discussões com escritores que se tornaram verdadeiros pop stars,
publicações, lançamentos e vendagens milionárias provam que a literatura está
mais viva do que nunca.
Ainda
em introdução à questão central do direito à literatura, pode-se
acrescentar que as funções e mesmo o direito à literatura também são
interligados com o contexto histórico e que a expressão “direito à literatura”
foi, digamos, inaugurada, depois de um ensaio de Antônio Cândido, de 1988,
intitulado com a expressão.
Evidentemente,
embora a noção de que existem direitos seja muito antiga, não se pode falar
especificamente de direitos humanos até o século XVIII; antes, a sociedade
estamental predominante na Europa era centrada na religião e no coletivo – família,
linhagem ou corporações laborais –, e não se concedia individualidade ao ser
humano. Nesse contexto, os pensadores racionalistas do período tornaram laicas
as antigas teorias do direito natural, desvinculando-as de uma ordem divina.
Para eles, cada homem em particular é, por natureza, livre e tem certos
direitos inatos de que não pode ser alienado quando em sociedade. Foi essa
corrente de pensamento que acabou por inspirar a atual ideia de proteção dos
direitos do homem.
Mas,
especificamente, “o” tempo dos Direitos humanos é a década de 40 do século XX,
quando os líderes mundiais tomam consciência das atrocidades cometidas durante
a Segunda Guerra Mundial, o que os levou a criar a Organização das
Nações Unidas (ONU), com a pretensão de manter a paz no mundo. Foi através
da Carta das Nações Unidas, assinada a 20 de Junho de 1945, que os povos
exprimiram a nova agenda de “preservar as gerações futuras do flagelo da
guerra; proclamar a fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e valor
da pessoa humana, na igualdade de direitos entre homens e mulheres, assim como
das nações, grandes e pequenas; em promover o progresso social e instaurar
melhores condições de vida numa maior liberdade". A criação das Nações
Unidas simboliza a necessidade de um mundo de tolerância, de paz, de
solidariedade entre as nações, que faça avançar o progresso social e econômico
de todos os povos.
Nesse
contexto, a literatura tem um papel fundamental, não há dúvida. Mas que literatura?
Se não acertamos a responder essa pergunta, como falar do direito à
literatura?
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