terça-feira, agosto 20, 2019

O DIREITO À LITERATURA (I)


Todos falamos muito sobre literatura, palavra presente nos currículos universitários, nos catálogos das editoras, nas discussões em escolas, festas, feiras e prêmios, nos meios de comunicação impressos e eletrônicos... Mas talvez seja mesmo impossível precisar um conceito único de literatura: circulam entre nós apenas acepções, historicamente variáveis. Em outras palavras: ao longo de nossa história, concepções sobre a palavra “literatura” mudaram, porque os contextos históricos mudaram.
            Vindas da Grécia antiga, quando Aristóteles conceituou a literatura como um modo de representar mimeticamente a realidade por meio de palavras, passando por Kant (que disse ser ela uma produção de discursos coerentes sem finalidade externa), pelos românticos (que a tomaram como sinônimo de exteriorização de sentimentos) ou mesmo pelos teóricos do século XX que a tomaram como um processo de comunicação com ênfase na própria mensagem, essas acepções são confundidas e confundem quando se fala a palavra “literatura”.
            De início, é preciso dizer que só é possível uma definição contextual. A literatura já serviu para manter o “status quo”, para catequizar, para obter favores de poderosos, para homenagear mestres do passado... A noção que a maioria das pessoas tem de literatura, hoje, data dos anos finais do século XVIII, quando, crescentemente, ela foi se tornando uma profissão, uma espécie de discurso, uma instituição, uma disciplina escolar... Aí chegamos ao XIX, ao mesmo tempo o século de maior prestígio da literatura e de ameaça a ela: na sua primeira metade, apareceram escritores chamados de publicistas, que funcionavam como profetas da nacionalidade, ou como porta-vozes do modo de pensar burguês, o qual defendia as utopias da liberdade, da igualdade e da fraternidade, como Vítor Hugo ou Charles Dickens; na sua segunda metade, na esteira do declínio desses ideais, a literatura chegou a não só encastelar-se em um discurso metalinguístico, para se desvincular do utilitarismo da sociedade burguesa, mas também a cultivar  um discurso cifrado e hermético que terminou por afastar a maioria dos leitores. 
            A crítica e o ensino da literatura seguiram esse mesmo caminho: perderam prestígio na passagem do século XIX para o XX – a primeira se enfraqueceu, quando ficou ao lado da censura e da hierarquia, perdendo espaço quando outras atividades culturais lhe fizeram concorrência; o segundo se afastou da filologia e da retórica, servindo-se, consecutivamente, da história, da estilística, da sociologia e da psicanálise, e foi gravemente ferido pela Linguística e pelo estruturalismo. A partir do fortalecimento da globalização e dos movimentos sociais amplificados pelos formidáveis meios de comunicação de que agora dispomos, tanto a crítica quanto o ensino voltaram-se para estudos de temas considerados politicamente corretos. 
            Nesse contexto, a sempre frágil especificidade da literatura estilhaçou-se, e se chegou a executar um velório o qual não foi seguido de seu enterro – feiras locais e internacionais, bienais, entrevistas e discussões com escritores que se tornaram verdadeiros pop stars, publicações, lançamentos e vendagens milionárias provam que a literatura está mais viva do que nunca.
Ainda em introdução à questão central do direito à literatura, pode-se acrescentar que as funções e mesmo o direito à literatura também são interligados com o contexto histórico e que a expressão “direito à literatura” foi, digamos, inaugurada, depois de um ensaio de Antônio Cândido, de 1988, intitulado com a expressão. 
Evidentemente, embora a noção de que existem direitos seja muito antiga, não se pode falar especificamente de direitos humanos até o século XVIII; antes, a sociedade estamental predominante na Europa era centrada na religião e no coletivo família, linhagem ou corporações laborais , e não se concedia individualidade ao ser humano. Nesse contexto, os pensadores racionalistas do período tornaram laicas as antigas teorias do direito natural, desvinculando-as de uma ordem divina. Para eles, cada homem em particular é, por natureza, livre e tem certos direitos inatos de que não pode ser alienado quando em sociedade. Foi essa corrente de pensamento que acabou por inspirar a atual ideia de proteção dos direitos do homem.
Mas, especificamente, “o” tempo dos Direitos humanos é a década de 40 do século XX, quando os líderes mundiais tomam consciência das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, o que os levou a criar a Organização das Nações Unidas (ONU), com a pretensão de manter a paz no mundo. Foi através da Carta das Nações Unidas, assinada a 20 de Junho de 1945, que os povos exprimiram a nova agenda de “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra; proclamar a fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre homens e mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; em promover o progresso social e instaurar melhores condições de vida numa maior liberdade". A criação das Nações Unidas simboliza a necessidade de um mundo de tolerância, de paz, de solidariedade entre as nações, que faça avançar o progresso social e econômico de todos os povos.
Nesse contexto, a literatura tem um papel fundamental, não há dúvida. Mas que literatura? Se não acertamos a responder essa pergunta, como falar do direito à literatura?