O DIREITO À LITERATURA (III)
O cimento que cola os
direitos humanos e a literatura é o reconhecimento de que aquilo que é
indispensável para mim é também indispensável para o outro. De cabo a rabo. Ou
seja: se Tolstoy é importante para mim, devo colocá-lo numa cesta básica de
bens à qual todos teriam, sem exceção, acesso, inclusive os femininos e os
etcétera que estão no masculino plural, de acordo com as regras da língua
portuguesa. Pois segurança alimentar está, sim, ligada com integridade
espiritual. Negar a primeira, neste tempo em que temos condições técnicas e
materiais de garantir alimentos a todos, é estapafúrdio. E negar a segunda,
neste tempo em que dispomos de meios de comunicação tão eficientes e baratos, é
uma mutilação.
E o que têm os atuais meios de
comunicação a ver com nossa integridade espiritual? Tudo: eles poderiam
viabilizar a circulação tanto das ideias dos dominantes quanto dos dominados e,
portanto, o tal “equilíbrio de ideias” proposto pelo escritor nigeriano Chinua
Achebe, já que quase todos têm um celular com que são produtores de conteúdo e
com que opinam sobre conteúdos enviados nas redes sociais. Por conseguinte,
“direitos espirituais” − como liberdade individual de crença, de escolha, de
orientação e de expressão; acesso à arte, à cultura, à informação e ao lazer –
seriam expandidos e partilhados... E poderíamos, assim, nos desenvolver mais
equitativamente também do ponto de vista psíquico e espiritual, até porque essa
circulação plural terminaria por construir mais compreensão e, por conseguinte,
mais tolerância.
Acontece
que nada disso está ocorrendo: nesses meios de comunicação, continuamos
sectários, intolerantes e violentos. Na contramão de nosso século XXI, tempo
que permite a pluralidade, talvez a mais verdadeira identidade dos seres
humanos.
Está
em curso, na verdade, uma espécie de hipocrisia: a maioria das pessoas (aí
incluídos políticos, empresários e donos de meios de comunicação) concorda com
a ideia de que deveríamos dividir melhor todos os nossos bens; não se regozija,
nem acha subterfúgios religiosos, como já aconteceu, para brutais
desigualdades, mas, efetivamente, não se esforça para que haja mudanças. Talvez
porque não saibamos ainda o que fazer para seguir em frente num caminho novo?
Enquanto não sabemos, viramos estátuas raivosas, porque brigar é o verbo mais
fácil.
Além
do mais, podemos todos falar na internet, mas não com as palavras que
escolhemos sozinhos ou num consenso social – somente com as que foram
escolhidas ninguém sabe por quem. São sempre frases na voz passiva, sem os
agentes da passiva. Dentro de bolhas algorítmicas: as redes sociais reforçam a
tendência comum de buscar informações e argumentações que se alinhem às nossas
opiniões, comportamento que, provavelmente, cria uma sensação de pertencimento
a grupos identitários. Mas dificulta o achamento de estratégias de tolerância.
Inventou-se
um vocabulário asséptico com que todos devem falar... No entanto, essa língua é
como usar uma roupa alheia com que não nos sentimos bem... Com que nunca nos
acostumaremos, porque não fomos feitos para ela e por ela e com ela... Os
“proprietários” dessa língua não só interrompem, boicotam e impedem o fluxo
idiossincrático da verdadeira expressão (a palavra “idioma” tem o prefixo
“idio” que significa “próprio”), mas também cristalizam e mumificam as palavras
e as expressões, dificultando a relação particular que cada um de nós tem com
uma palavra e não com outra, com uma expressão e não com outra... E
empobrecendo as buscas, as metáforas, as nuances, as ironias, as brechas, a
imaginação... Perder tudo isso é como perder delicadezas e riquezas e
sentidos... Tanto apego ao literal... E nada faz sentido...
Os
recursos de expressão e nossas escolhas vocabulares e sintáticas não são
aleatórios, são reflexo de nossa subjetividade. Escolha, liberdade, erro,
acerto, conserto, busca, consenso... É tudo isso junto que cria um idioma de
verdade e o renova, alargando as apreensões, de acordo com Wittgenstein. Porque
se precisamos de novos caminhos, precisamos de novas palavras. Palavras
“fatigadas de informar” (como diz Manuel de Barros) e de brigar não inventarão
um futuro melhor que é o que no fundo desejamos: “um futuro que fale a nossa
língua”, como diz Mia Couto.
O
absolutismo linguístico e mesmo ético e ideológico decorrente desse vocabulário
detento é de uma pobreza lamentável. Há poucos dias uma aluna veio conversar
comigo sobre se deveria haver limites no humor. E acrescentou:
−
Uma pessoa que faz humor com negros é racista, e quem ri também...
−
Então, no “Auto da Compadecida”, a cena de João Grilo dizendo que Deus é muito
queimado revela o racismo de Ariano Suassuna e, quando nós rimos, revelamos
nosso racismo enrustido? É isso? – eu perguntei.
−
Não, ela respondeu com uma expressão surpresa...
O
direito à literatura está no meio de toda essa discussão. Na literatura, as
palavras andam soltas da prisão do dicionário, e aí podemos brincar na rua com
elas de esconde-esconde, de Academia, de seguir o mestre, de inventar línguas,
de pular, de passar o anel, de cantar, de telefonar sem fio, de rimar, de contar
sílabas, de cruzá-las, de caçá-las... E de crescer com elas, nelas, por elas...
Como sujeitos e como proprietários de um idioma que é nosso e de muitos e cujo
uso nos faz seres exclusivos e sociais ao mesmo tempo.
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