O DIREITO À LITERATURA (IV)
Dadas as
características multipolares de nosso século XXI, é claro que seria ótimo que
tivéssemos todos mais contato com o texto literário que não é apenas um
inocente equipamento social – ele confirma valores e, às vezes, os nega; é
caminho de fuga e denúncia; é arma para luta social e, ao mesmo tempo, pode
escamotear a realidade... Feito a vida que ela representa, reelabora,
ressignifica.
Então:
por meio da literatura podemos aprender a viver, com nossas diferenças e
complexidades, dialeticamente. Nossos matizes étnicos, ideológicos, culturais,
de gênero e de classe são riquezas imperdíveis, e precisamos aprender a viver
com eles, não nos servindo deles para justificar injustiças indefensáveis ou
para inventar novas censuras, violências, vinganças e
distâncias.
Recentemente, parece que estamos nos
distanciando desse caminho: vivemos uma tirania simplificadora e polarizadora.
Exigimos comportamentos, interrompemos uns aos outros, obrigamos uma pessoa a
dizer da forma como queremos ouvir, não queremos escutar, só ser escutados...
Na verdade, estamos reduzindo todos os recursos de expressão − a ênfase, a
ironia, as repetições, os tons, os gestos auxiliares da comunicação oral... – a
inadequações comportamentais e linguísticas, chegando, após uma discussão, a
dizer que a pessoa até tinha razão, mas a perdeu em virtude do modo como falou.
A língua com que temos de falar deixou de ser nossa, deixou de refletir o
plural que somos ou que podemos ser...
Antônio Cândido, no seu ensaio de
1988, justifica o direito à literatura com uma cândida argumentação: ele afirma
de início que, em uma sociedade com menos desigualdade social, todos teriam e
gostariam de ter acesso à literatura; que a literatura humaniza e que os
governos deveriam garantir a todos acesso a ela; em seguida, acrescenta que, no
Brasil, o usufruto geral é impedido, em virtude das imensas desigualdades de
renda, e que as classes dominantes não se interessam realmente por literatura,
aproximando-se dela apenas por esnobismo; em contrapartida, depois de narrar um
par de experiências, afirma que as dominadas têm uma “sofreguidão comovente”
por ela.
Quero que se reconheça, nas suas
ideias, o contexto do século XX – a presença das palavras “igualdade” e
“desigualdade” e dos raciocínios bipolares.
Já bem entrados no século XXI, é
evidente que levantaríamos argumentos diferentes: com a Globalização e as
migrações em curso no mundo inteiro, o exercício da tolerância que a literatura
proporciona talvez a justifique e certifique agora.
Ler um romance é passar alguns dias
vendo o mundo na perspectiva do autor; é exercitar se colocar no lugar do outro
− já que o narrador explicita os temperamentos, as personalidades e os pontos
de vista das diversas personagens −; é aprender a reconhecer que o outro é
diferente e, ao mesmo tempo, tão humano quanto nós, pois vive os mesmos
dilemas, sente as mesmas dificuldades e dores, comete os mesmos erros...
Evidentemente, aceito a argumentação
de que documentários, notícias e reportagens também nos ensinam sobre outras
culturas, outros pontos de vista e outras opiniões. Mas Contardo Caligaris me
ajuda a estruturar o que estou tentando dizer: a literatura tem “uma mágica
complementar”, porque, à proporção que ensina a diferença, ela ensina a
semelhança, esse tutano comum que me obriga a ver uma pessoa diferente de mim
como um semelhante humano como eu, apesar de suas
idiossincrasias.
Enfim,
infelizmente, eu não observei nenhuma sofreguidão das classes dominadas em
direção aos bens culturais, quando elas melhoraram seu acesso à renda; como as
dominantes, as dominadas, até por uma questão de demanda reprimida, consumiram,
quando puderam, celulares, carros e viagens aéreas, em detrimento de bens
culturais. E se vê, por todo lado, o triunfo da cultura de massa que não é
inocente, mas amplificadora dessa simplificação, uma vez que reduz seres
humanos a consumidores. De coisas que não servem para dar um sentido
satisfatório para a vida. Nem observo confiança das pessoas com as quais
convivo nas informações que lhe chegam por meio desses maravilhosos meios de
comunicação dos quais dispomos.
Nesse
contexto, reitero a importância da “escuta literária”, ou seja, ler com calma
textos literários (poemas, romances, novelas, contos, crônicas, peças de
teatro) para não esquecer das figuras de linguagem, da paleta de cores,
sabores, cheiros e texturas possíveis que existem na nossa expressão, das
liberdades possíveis... A fim de acertar a derrubar as prisões desnecessárias
dessa ortodoxia polarizada que está nos jogando uns contra os outros, quando
tudo já permite diversidade.
E o
tal direito à literatura, quem o garante? Proponho um mutirão do Estado, da
Universidade, das bibliotecas, da Escola, da família, das organizações não
governamentais, dos meios de comunicação e do próprio cidadão.
O
Estado deve ampliar as políticas de aquisição de livros para bibliotecas
públicas e escolares e apoiar, financeiramente, projetos diversos; juntamente
com as Universidades, deve também repensar as bibliotecas existentes e criar
novas (pelo menos uma em cada município do país), formando entre elas uma rede
de partilha de experiências exitosas em projetos para a formação ou o
amadurecimento de leitores literários; mais especificamente, essa mesma
Universidade, por meio de seus cursos de Letras, Pedagogia, Biblioteconomia,
Artes Cênicas e Visuais, poderia se comprometer com a formação de leitores e
mediadores que atuariam nessas bibliotecas, para que elas fossem mais
acolhedoras e mais ativas no papel do letramento literário; a Escola, além de
suas ações pedagógicas ordinárias, tanto poderia se empenhar em efetivar
projetos escolares, como feiras de conhecimento, com o propósito de incrementar
a leitura literária, quanto poderia organizar grupos de alunos no contraturno
para rodas de leitura e discussão de textos literários ou para visitas nas
bibliotecas e outros espaços sociais, onde vivências de leitura literária
estivessem acontecendo; a família se disporia a ser coadjuvante dessas ações,
não só participando da concepção e da execução dos projetos escolares,
quando fosse possível, mas também viabilizando e incentivando a presença das
crianças e dos adolescentes nos diversos eventos sociais por acontecer, além de
se esforçar para ler e, assim, dar o exemplo às crianças e aos adolescentes sob
sua guarda; a televisão e o rádio, com todo o poder que têm, poderiam
participar de várias formas – montando peças teatrais famosas, como já
aconteceu e, infelizmente, não mais acontece, adaptando obras literárias para
outras linguagens e incrementando programas de entrevistas e documentários com
escritores e roteiristas, para mostrar a todos a importância de um olhar plural
sobre os problemas que nos afetam, elencar possíveis saídas para eles,
aprofundar percepções, a fim de entendermos que soluções não caem do céu, são
construídas de mãos dadas; as Organizações Não Governamentais, como a UBE e a
CULTURA NORDESTINA, por exemplo, poderiam participar executando palestras,
workshops, concursos, maratonas de recitação, cursos de leitura e escrita
criativa e dando apoio logístico a projetos sociais de valorização da leitura
literária. Por fim cada um de nós deve entender a importância da leitura e da
escrita na participação social e deve fazer um esforço para se aparelhar a fim
de construir sua própria cidadania e viabilizar seus direitos (incluso aí o
direito à literatura), os quais, ao fim e ao cabo, são construções subjetivas.
Não dádivas.
Acredito
que essa teia de ações permitirá que possamos escolher nossas leituras
sem sermos dirigidos pelo “Mercado”. E que possamos nos tornar, além de
consumidores, agentes construtores de uma sociedade mais compreensiva e mais
inclusiva.
Mas
nada disso será possível enquanto não se distribuírem melhor nossos bens
materiais e não se democratizarem condições dignas de trabalho e de vida, pois
o usufruto dos bens culturais (inclusa aí a literatura) depende de tempo livre
usado em prol do autodesenvolvimento e, por conseguinte, do desenvolvimento de
todos.
Essas
palavras são lembretes, para que não percamos a direção.
1 Comments:
Professora Flávia Suassuna, primeiramente vou me apresentar... Fui sua aluna quando ainda cursava o 2 ano do ensino médio(2007). E segundo ano, sabe como é, né? Você não dar a devida importância as coisas que realmente merecem. Vítima dessa total inconsciência "aborrescente", esse ano vou prestar meu quarto vestibular para medicina. Nesses anos de cursinho você é conduzido por professores, muito mais amadores que professores, diga-se de passagem, que te mostram números, estatísticas, dicas infalíveis, tudo isso como forma de, enfim, impor que só esse tal curso com esse tal método funciona. Nessa noite, vi seu texto sobre o ENEM no "jconline" e simplesmente senti-me invadida por um vazio que não sei explicar. Você não precisou fazer qualquer alusão a propagandas sobre seu curso, muito menos desmoralizar a prova do Enem com o intuito de agradar terceiros. Só foi preciso mostrar, de forma bastante clara, a dramática realidade da educação brasileira. E, como o próprio Fernandinho comentou no seu texto, com as suas palavras abre-se um clarão neste céu escuro. Dessa forma, acabei invadindo seu blog e deliciando-me, impressionando-me e emocionando-me com os seus textos. Incrível a maestria que você tem de transformar palavras em textos de belezas deslumbrantes Lembrei-me de um momento da sua aula que você chorou na sala ao ler um texto. Eu estava na sala e pensei: "como pode essa professora chorar por um texto que ela já leu inúmeras vezes". A resposta é simples, suas aulas não são as mesmas durante a semana. Apesar de ter que ensinar os mesmos assuntos para todas as turmas, você consegue unir, como ninguém, essa loucura de vestibular com uma aula repleta de lições e grandezas para a vida. Que saudade de aulas, assim, lindas. Acho que foi esse ano, te vi por Fernandinho, sentada. Exaltei-me em ir ao teu encontro, mas contive-me. Estava até com um texto seu que Marcinho tinha nos falado na aula e eu fui atrás para imprimir, o texto falava sobre felicidade. "Na verdade, nossa tristeza é também estruturante e tem a ver com o que somos lá dentro de nós mesmos, com o enfrentamento e a aceitação de nossos fracassos e defeitos, que são a marca primeira do que conseguimos, na história nossa de cada dia, fazer com o que somos, com o que sonhamos, com o que acertamos, com o que erramos, com o que queríamos mas não pôde ser realizado – até porque não podemos tudo, nem sabemos tudo."
Esse texto me foi de grande valia ano passado. E sempre que estava triste relia-o e me confortava de uma forma impressionante. Ao te ver contive-me por não saber o que dizer, apenas queria te abraçar e, se posso me apropriar dessa expressão, dizer-te: "sou tua fã." Somente pelas imensas promessas, por comodismo e meras estatísticas, até sem fundamentos, evitei fazer seu curso, pois era absurdo fazer um curso no qual uma professora te leva a construção do saber, a "viajar" na literatura. NÃO HA TEMPO! Aos olhos dos práticos, "inapropriado para o vestibular". A dica infalível é simples: decorar o esqueleto da redação e você consegue desenvolver qualquer tema. Que tolice! Não é a toa que essa nova proposta causa tanto desespero a esses engessadores-professores. Por fim, professora Flávia, quero parabenizar-te por escrever esses preciosos textos e disponibilizá-los a todos. Tornarei-me, sem dúvidas, uma frequentadora assídua do seu blog, se me permite. E, mais uma vez, parabéns por representar tão bem a educação pífia do nosso país e, portanto, ser uma exceção nesse emaranhado de amadores. Desculpa o desabafo. Manuella Melo.
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