É cada começo de ano...
Trabalhei pesado em 2011. E, claro, aguardava ansiosa as férias e aquela esperançazinha de melhora que sempre nos acomete no princípio de cada
ano. Mas que, às vezes, falha.
P.S. Em sua crônica “Rei de alguma coisa”, de 21 de novembro de 2011, meu amigo Samarone (www.estuario.com.br)
autocoroou-se “rei do tupperware”, em virtude do fato de sempre pedir, num tupperware, é claro, um pouco
mais da comida da qual acabou de se servir. De acordo com ele, isso garante outra refeição e agrada à cozinheira.
Por outro motivo – quase morri por um tupperware de R$ 1,99, como se pôde constatar – peço licença a Samarone para ganhar o
título de “rainha do tupperware”.
Agora, tudo depende da anuência dele; afinal, rei é rei...
E, como herdei a
cultura familiar de rir de tragédias, concordando com o ditado popular o
qual diz que "o trágico anda de mãos dadas com o cômico", começo
o ano rindo de acidentes.
Ganhei de meu cunhado
um "tupperware" com requeijão. Quando me entregou o presente,
mangando de uma conhecida idosa de nossa família, ele disse:
− Devolva logo o
depósito, que eu preciso muito dele.
A história dessa
conhecida está no rol de "absurdos psicológicos" de nossa família. É
que, quando meu filho Filipe estava no hospital, entre a vida e a morte, ela
mandava bolo lá para casa e depois cobrava a vasilha de volta. Ora, eu estava
no hospital, não conseguia dar conta nem do meu dia a dia e, além do mais, a
vasilha era de sorvete! Naquela situação, tudo isso passava da conta e, apesar
de considerarmos o fato delicado de ela enviar o bolo, sempre fazíamos (e
fazemos) piada com o episódio.
Querendo potencializar
a piada, assim que cheguei em casa, troquei o requeijão de vasilha e corri para
devolvê-la.
Estava tão apressada
que não tive paciência para esperar o elevador. “É só um andar, pensei, vou
pela escada!”. E lá fui eu, aloprada!
Abri a porta de
incêndio e... o sensor da luz da escada não acendeu. “Não faz mal, avaliei, vou
tão depressa que ainda aproveitarei a réstia da luz do hall”... Mas a porta de ferro fechou-se. E o escuro mais profundo
abateu-se sobre mim.
Eu estava embalada;
ainda levada pelo meu otimismo incurável, achei que tinha chegado ao descanso
da escada... Mas havia um último e fatídico degrau... Rodopiei... e caí sentada
de frente para os batentes que eu tinha acabado de descer, alvoroçada.
Uma dor lancinante me
deu vontade de desmaiar. Mas fui forte e chamei meu filho.
Ele ouviu lá loooonge
um fio de voz e, apesar de umas dores abdominais que estava sentindo,
levantou-me, dizendo:
− Ôxe, mãe, ′tás ralada
por causa dessa parede crespenta?
− Muito não, só um
pouquinho, respondi, mancando.
E vim me deitar no
sofá, depois de pegar gelo no “freezer” para botar nos dois pés, que me doíam
demais. Quando a dor aliviou um pouco, voltei à escada, peguei o depósito do
chão, heroica e dificilmente, desci o resto da escada e fui entregá-lo à minha
irmã.
Eu não queria que ela
soubesse que, provavelmente, eu quebrara o pé; ela e toda a sua família iam
para o Mato Grosso, de férias, e a viagem poderia perder um pouco da graça se
adivinhassem a tragédia. Munida de toda a coragem que pude reunir, toquei sua
campainha e, ao mesmo tempo, apertei o botão do elevador, que logo chegou. Ela
abriu a porta, na expectativa da piada.
− Seu depósito,
disse-lhe, entregando-o.
Notei que ela ficou
meio desarmada, mas não puxei conversa. Eu tinha que andar sem mancar até a
porta do elevador, e isso exigia de mim toda a teatralidade necessária para a
ocasião. Ainda pude, de longe, escutar meu cunhado:
− Foi Flávia? O que ela
disse?
− Nada, minha irmã, frustrada,
respondeu.
Voltei para casa, tomei
um banho e fui para cama dormir. A noite foi um pesadelo de dor, cada vez que
me virava, acordava, os pés latejando...
No dia seguinte, quando
botei os pés no chão, pensei: “Meu Deus! Preciso de um médico!” Andei, como
pude, até o interfone da cozinha e liguei para a minha outra irmã – a
famosíssima Deb, diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog.
− Deb, disse-lhe, acho
que quebrei os dois pés.
− Menina, te deixei
ontem, às 9 da noite, boazinha, na tua casa!
Apesar do espanto, ela
acudiu-me depressa. Fomos a uma clínica, lá bateram uma radiografia, e o médico
me disse que não havia fratura, que eu comprasse anti-inflamatórios e fizesse
repouso. Entregou-me uma bota de velcro. Passamos na farmácia. O remédio
prescrito custou R$ 35,00 (o genérico; o outro, de marca, era o dobro).
Como nada de grave
tinha acontecido, fomos direto à casa da outra irmã que, por acaso, estava,
antes de viajar, limpando os armários da cozinha, os quais tinham sido
restaurados pelo marceneiro. E eu e Deb visualizamos a primeira parte do
absurdo kafkaniano em que estávamos: nunca tínhamos visto uma quantidade tão
grande de “tupperwares” na nossa vida. A segunda parte era que com R$ 35,00 se
podia comprar quase a mesma quantidade de depósitos.
Moral da história:
escada é um troço perigoso; falar de idosos atrasa; nada está tão ruim que não
possa piorar (digo isso porque, no mesmo dia da minha ida ao ortopedista, meu
filho operou-se de uma hérnia encarcerada!); meu otimismo precisa de um choque
de realidade; irmão é um troço difícil de qualificar...
A meus filhos Diogo (que está se recuperando bem), Filipe (que estava
com o pai, para que eu quebrasse o pé mais sossegadamente) e Daniel (que, com
uma metáfora recifense, descreveu minha família como uma corda de caranguejos)
e a todos os sobrinhos, para que aprendam conosco a conviver e sobreviver,
apesar dos impasses, das diferenças e dos sustos.
3 Comments:
Este comentário foi removido pelo autor.
Leio o caso do requeijão e seu depósito e fico somente com a declaração de que ri do trágico, sempre.
Não sou do mesmo jeito. Diante do trágico não sou capaz de riso, mas não posso dizer que me escabele ou que nade em lágrimas. Parece que em mim há como que uma certeza de que o trágico, quando posto, já não é mais trágico do que foi e nem amedronta mais. Fico em um estado de sangue frio de me dar medo e sou capaz de agir para o que der e vier.
Flávia sempre tem uma constatação do trágico com um riso - seguido de compaixão - mas um rio. Acho que se o trágico a surpreender, no seu curso mesmo, ela é bem capaz de dizer, rindo, "Vixe! Vai me pegar, mas eu fujo" - que ela é só pensamento e o corpo que fique às traças.
Genésio Fernandes
Flávia,
Existe alguma oficina de literatura em Recife? Algum curso ou leitura em grupo que possa ajudar a "ler de uma maneira mais aprofundada" os clássicos ou mesmo os livros mais modernos?
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