quinta-feira, dezembro 03, 2009

A casa (em prosa)

Ontem
Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

(Carlos Drummond de Andrade)

Eu sabia que ler Rubem Braga terminaria por desentalar uma crônica que jazia inarticulada dentro de mim. Mas o caso desta vez era grave, eu nem sabia o assunto... Então, fui seguindo, paciente, pelos textos do meu surrado livro “Duzentas crônicas escolhidas”, deliciando-me com a compaixão, a simplicidade e a graça do autor...

Aí cheguei a um texto chamado “Receita de casa” e descobri meu tema: sem saber, eu queria falar de novo sobre casas e sobre memória.

Na verdade, três casas marcaram a minha vida, antes de me casar.

Sem fazer a lista pela importância, a primeira foi a de minha avó, em Taperoá, no sertão da Paraíba. Mal dividida como costumam ser as casas antigas, era fresca, clara e simples. Ela me ensinou que um lar pode ser nu e ser um lar. As mais calmas lembranças que tenho de minha infância, apesar de minha avó afobada, são dentro dessa casa. O tempo e a vida encarregaram-se de reformar essa casa. E ela perdeu-se... Resta linda na minha memória, principalmente quando me lembro das boiadas que passavam, em direção do matadouro, que Rubem Braga lista como questão irrenunciável, e do cedro perfumado que morava à sua esquerda.

A segunda casa foi a de minha mãe, a primeira em que vivi, até os 11 anos, no bairro da Boa Vista, que testemunhou minha infância também, mas sem as férias, que eu gastava em Taperoá.

A terceira foi o espaço de minha adolescência; foi de lá que saí quando casei, aos 22 anos, para começar minha própria família.

Nenhuma das três tinha porão, que Rubem Braga considera fundamental. De acordo com ele, porão deve ser como um cemitério que, “sob os pés da família, como se fosse no subconsciente”, guarda objetos descartados – grandes, como móveis quebrados, ou pequenos, como leques. Visitado por crianças trelosas e destemidas, pode mostrar que a avó já foi uma moça linda que frequentava bailes, o que restaurará a “dignidade corrompida das pessoas grandes” a seus olhos.

Na sua opinião, é conveniente que crianças sintam medo do porão. Elas não saberão a personalidade desse medo, dirão que é medo de escuro, de aranha, de jacaré embaixo da cama... Mas nosso Rubem diagnostica: é medo do Tempo, “esse bicho que tudo come, esse monstro” que terminará por consumir a infância. Apesar dos retratos (eu acrescento).

Isso não significa que minha família não tenha inconsciente, que todo mundo tem, de acordo com estudiosos do assunto. Só que essas coisas não precisam de porão para serem guardadas, Rubem Braga mesmo sabia melhor do que ninguém o que é uma metáfora.

Uma vez, achei os cadernos escolares de minha mãe quando menina, em algum lugar de que não me lembro, na casa de minha avó; eles estavam lá, ao alcance de minha mão, mesmo sem haver porão. Experimentei cobrir sua letra, como se escrevesse como ela e, às vezes, escrevia com a minha própria e apreciava a diferença, exercício que segui fazendo vida afora.

Na segunda casa, os aquários, eu acho, tornaram minhas metáforas aquáticas, tenho mania de mar, rio, navio, bússola, essas coisas das viagens náuticas que são ótimas para falar de “lifetime”, como diriam os ingleses.

A terceira é que tem gerado, pela descaracterização que sofreu, as reflexões presentes neste texto. O tempo, a vida e sua dinâmica me forçaram a um exercício de desapego. E testemunho a mudança inexorável... A casa, aos poucos, vira um buffet infantil colorido – castelos, pistas, pula-pula, bolas... Será, enfim, um lugar onde as pessoas serão felizes?

Nas casas sem porão, as “coisas” podem ser muito bem guardadas em armários, quartos ou baús. Quando meu tio avô Quincas morreu, pôde-se olhar por dentro de um baú por que muito zelava e que continha, digamos assim, um escondido segredo: aberto, revelou o vestido de noiva de sua esposa que falecera precocemente, há anos... Um vestido de noiva, todo mundo sabe, guarda um monte de sonho; tem uma pitada da mais verdadeira pureza, que é a que o amor renova todo dia; tem nossa força bonita de seguir a vida, achando que vai dar certo, apesar da verificação em contrário, muitas vezes. E, para ter essa história, minha família nem precisou de porão, só de baú, mesmo. Mas não era nele que estava o amor, o gesto de afeto e a lembrança. Era no meu tio-avô e agora em mim, pois nós é que somos guardiões de memórias que permanecem intactas, apesar do tempo que corre.

Na verdade, Rubem Braga, as lembranças ficam guardadas em nós, não em porões, e fazem de nós o que somos. São nosso bem, nosso mal, como diz Caetano Veloso...

Inutilmente, queremos guardá-las em retratos, mas existem incêndios e terremotos... Falamos delas, alguns de nós escrevemos sobre elas...

Nossas lembranças dissipam-se com nossa morte? Ou elas são a prova de que temos um destino outro? Por que fomos feitos com a habilidade de as guardar? Para perdê-las com a morte? Aonde nossas lembranças nos levam e onde elas ficam? Em que esconso e recôndito milagre?

5 Comments:

At 12:12 PM, Blogger Unknown said...

Flávia, querida
que maravilha de relato !
Você me remeteu à minha infância inteiramente. Também morei em mais de uma casa (quatro, na verdade), antes de casar. Também passei um tempo morando com meus avós. E havia um baú secreto que ninguém abria. E eu sempre pedia para saber o que tinha dentro, mas nada. Um belo dia, não sei porque, o baú foi aberto e, lá dentro, entre outras coisas que não lembro, estava o leque que minha avó tinha usado em seu casamento. Era tão lindo que eu nem sabia o que dizer! A partir daí, minha avó passou a contar a história do casamento dela (que durou tres dias de festa) e lembranças da infancia dela. A lembrança que tenho destes momentos é tão forte que, ainda hoje, eu o vejo perfeito em minhas lembranças e relembro as histórias de minha avó.
A abertura do baú representou um evento que marcou a minha vida até hoje. Mas, como você disse: "Aonde nossas lembranças nos levam e onde elas ficam?".
Lembrei do tempo onde não havia ainda a escrita e que as histórias eram repassadas , através das gerações, pelo que os mais velhos contavam e eram repassadas através das gerações.
Creio que devem servir para alguma coisa. Afinal, quem seríamos nós, sem as lembranças de nossas raízes?
Obrigada por este retorno à minha infância, com sua história.
Brilhante, como sempre!
bjs
Rosário

 
At 5:37 PM, Anonymous Anônimo said...

Quanto às casas nas quais morou ou ‘gastou’ as férias, com as lembranças que a acompanharão pela vida afora, me fez recordar das casas que morei nos meus tempos de solteira. Todas elas agora demolidas, mas dos escombros da derrubada, alegrias e pesares conseguiram escapar e povoam alguns das minhas tardes solitárias. Preciso urgente comprar uma cadeira de balanço de palhinha para as embalar nos conformes. Somente Tota e eu — únicos remanescentes daquela família de amores apolíneos e dionisíacos (Inaura todinha) — podemos, cada um no seu canto, ouvir novamente as raras risadas cristalinas da minha mãe, da sua voz de incógnita soprano, cantando canções de lindos, longos e tristes enredos. Da alegria incomparável de viver de meu pai, a nos dar autoconfiança e lições de otimismo. Somente para falar desses dois.
Graça

 
At 11:29 PM, Blogger Daniela Falcone said...

Pois para mim as lembranças são como porões.
Sempre guardo o mais importante em um pedacinho de mim, e, quando eu menos espero, surge em nostalgia.

 
At 10:15 PM, Blogger Canto da Boca said...

Flávia, a memória é algo que me encanta e me mobiliza, inda mais porque acredito que somos um filigrana de lembranças, tranças que são tecidas ao longo de nossa vida; e que grato é estarmos aqui ouvindo, sentindo o(s) cheiro(s), o(s) sabor(es) das suas doces lembranças, generosamente partilhadas conosco. O riso faz-se sereno, o olhar renova-se em brilho, e um mundo novo parece ser tão possível...

Magnífico, Flávia!
Estivemos no debate do livro do Samarone, no Banquete, e só agora estou vindo aqui te sentir.

Um abraço!!

 
At 10:37 PM, Blogger Érica de Melo said...

Flávia,
mais uma vez você consegue me fazer me refletir sobre coisas fundamentais. O poder de com as palavras traduzir ideias , sentimentos, a alma daquilo que é esssencial é algo inerente a grandes artistas. Parabéns

 

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