terça-feira, janeiro 31, 2012

É cada começo de ano...

Trabalhei pesado em 2011. E, claro, aguardava ansiosa as férias e aquela esperançazinha de melhora que sempre nos acomete no princípio de cada ano. Mas que, às vezes, falha.
E, como herdei a cultura familiar de rir de tragédias, concordando com o ditado popular o qual diz que "o trágico anda de mãos dadas com o cômico", começo o ano rindo de acidentes.
Ganhei de meu cunhado um "tupperware" com requeijão. Quando me entregou o presente, mangando de uma conhecida idosa de nossa família, ele disse:
− Devolva logo o depósito, que eu preciso muito dele.
A história dessa conhecida está no rol de "absurdos psicológicos" de nossa família. É que, quando meu filho Filipe estava no hospital, entre a vida e a morte, ela mandava bolo lá para casa e depois cobrava a vasilha de volta. Ora, eu estava no hospital, não conseguia dar conta nem do meu dia a dia e, além do mais, a vasilha era de sorvete! Naquela situação, tudo isso passava da conta e, apesar de considerarmos o fato delicado de ela enviar o bolo, sempre fazíamos (e fazemos) piada com o episódio.
Querendo potencializar a piada, assim que cheguei em casa, troquei o requeijão de vasilha e corri para devolvê-la.
Estava tão apressada que não tive paciência para esperar o elevador. “É só um andar, pensei, vou pela escada!”. E lá fui eu, aloprada!
Abri a porta de incêndio e... o sensor da luz da escada não acendeu. “Não faz mal, avaliei, vou tão depressa que ainda aproveitarei a réstia da luz do hall”... Mas a porta de ferro fechou-se. E o escuro mais profundo abateu-se sobre mim.
Eu estava embalada; ainda levada pelo meu otimismo incurável, achei que tinha chegado ao descanso da escada... Mas havia um último e fatídico degrau... Rodopiei... e caí sentada de frente para os batentes que eu tinha acabado de descer, alvoroçada.
Uma dor lancinante me deu vontade de desmaiar. Mas fui forte e chamei meu filho.
Ele ouviu lá loooonge um fio de voz e, apesar de umas dores abdominais que estava sentindo, levantou-me, dizendo:
− Ôxe, mãe, ′tás ralada por causa dessa parede crespenta?
− Muito não, só um pouquinho, respondi, mancando.
E vim me deitar no sofá, depois de pegar gelo no “freezer” para botar nos dois pés, que me doíam demais. Quando a dor aliviou um pouco, voltei à escada, peguei o depósito do chão, heroica e dificilmente, desci o resto da escada e fui entregá-lo à minha irmã.
Eu não queria que ela soubesse que, provavelmente, eu quebrara o pé; ela e toda a sua família iam para o Mato Grosso, de férias, e a viagem poderia perder um pouco da graça se adivinhassem a tragédia. Munida de toda a coragem que pude reunir, toquei sua campainha e, ao mesmo tempo, apertei o botão do elevador, que logo chegou. Ela abriu a porta, na expectativa da piada.
− Seu depósito, disse-lhe, entregando-o.
Notei que ela ficou meio desarmada, mas não puxei conversa. Eu tinha que andar sem mancar até a porta do elevador, e isso exigia de mim toda a teatralidade necessária para a ocasião. Ainda pude, de longe, escutar meu cunhado:
− Foi Flávia? O que ela disse?
− Nada, minha irmã, frustrada, respondeu.
Voltei para casa, tomei um banho e fui para cama dormir. A noite foi um pesadelo de dor, cada vez que me virava, acordava, os pés latejando...
No dia seguinte, quando botei os pés no chão, pensei: “Meu Deus! Preciso de um médico!” Andei, como pude, até o interfone da cozinha e liguei para a minha outra irmã – a famosíssima Deb, diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog.
− Deb, disse-lhe, acho que quebrei os dois pés.
− Menina, te deixei ontem, às 9 da noite, boazinha, na tua casa!
Apesar do espanto, ela acudiu-me depressa. Fomos a uma clínica, lá bateram uma radiografia, e o médico me disse que não havia fratura, que eu comprasse anti-inflamatórios e fizesse repouso. Entregou-me uma bota de velcro. Passamos na farmácia. O remédio prescrito custou R$ 35,00 (o genérico; o outro, de marca, era o dobro).
Como nada de grave tinha acontecido, fomos direto à casa da outra irmã que, por acaso, estava, antes de viajar, limpando os armários da cozinha, os quais tinham sido restaurados pelo marceneiro. E eu e Deb visualizamos a primeira parte do absurdo kafkaniano em que estávamos: nunca tínhamos visto uma quantidade tão grande de “tupperwares” na nossa vida. A segunda parte era que com R$ 35,00 se podia comprar quase a mesma quantidade de depósitos.
Moral da história: escada é um troço perigoso; falar de idosos atrasa; nada está tão ruim que não possa piorar (digo isso porque, no mesmo dia da minha ida ao ortopedista, meu filho operou-se de uma hérnia encarcerada!); meu otimismo precisa de um choque de realidade; irmão é um troço difícil de qualificar...

A meus filhos Diogo (que está se recuperando bem), Filipe (que estava com o pai, para que eu quebrasse o pé mais sossegadamente) e Daniel (que, com uma metáfora recifense, descreveu minha família como uma corda de caranguejos) e a todos os sobrinhos, para que aprendam conosco a conviver e sobreviver, apesar dos impasses, das diferenças e dos sustos.

P.S. Em sua crônica “Rei de alguma coisa”, de 21 de novembro de 2011, meu amigo Samarone (www.estuario.com.br) autocoroou-se “rei do tupperware”, em virtude do fato de sempre pedir, num tupperware, é claro, um pouco mais da comida da qual acabou de se servir. De acordo com ele, isso garante outra refeição e agrada à cozinheira. Por outro motivo – quase morri por um tupperware de R$ 1,99, como se pôde constatar – peço licença a Samarone para ganhar o título de “rainha do tupperware”. Agora, tudo depende da anuência dele; afinal, rei é rei...          

3 Comments:

At 7:26 PM, Blogger tocadaspacas said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 7:29 PM, Blogger tocadaspacas said...

Leio o caso do requeijão e seu depósito e fico somente com a declaração de que ri do trágico, sempre.

Não sou do mesmo jeito. Diante do trágico não sou capaz de riso, mas não posso dizer que me escabele ou que nade em lágrimas. Parece que em mim há como que uma certeza de que o trágico, quando posto, já não é mais trágico do que foi e nem amedronta mais. Fico em um estado de sangue frio de me dar medo e sou capaz de agir para o que der e vier.

Flávia sempre tem uma constatação do trágico com um riso - seguido de compaixão - mas um rio. Acho que se o trágico a surpreender, no seu curso mesmo, ela é bem capaz de dizer, rindo, "Vixe! Vai me pegar, mas eu fujo" - que ela é só pensamento e o corpo que fique às traças.

Genésio Fernandes

 
At 1:00 PM, Blogger Orpheus said...

Flávia,

Existe alguma oficina de literatura em Recife? Algum curso ou leitura em grupo que possa ajudar a "ler de uma maneira mais aprofundada" os clássicos ou mesmo os livros mais modernos?

 

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