quinta-feira, outubro 30, 2008

Lendo Machado de Assis - 5

Chá de rolha – 11
“– A Ciência – disse ele a Sua Majestade – é o
meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.”

Do jeito como leio (não só com os olhos, mas com as entranhas), debruçar-me sobre Machado esses meses todos, relendo, pensando, resenhando, acabou por fazer do meu coração um bife e da minha cabeça um bolo. Aí resolvi escrever um último texto sobre Machado com o subtítulo Chá de rolha – 11 para ver se escapo. Para quem ainda não sabe, a seção “Chá de rolha” do meu blog é constituída de textos mais leves, até porque a vida não é só chumbo, tem levezas, de vez em quando.
Dessa vez, reli um texto de Machado chamado “O Alienista”, que conta uma história mais branda, mas muito profunda: a de Simão Bacamarte, um médico de uma cidade pequena chamada Itaguaí o qual, apesar de ter se formado em Portugal e Espanha e de ter sido chamado para exercer seu ofício por lá, resolveu voltar a sua cidade para trabalhar.
Escolheu ser o que se chama hoje de psiquiatra (naquele tempo, alienista, daí o título) e resolveu construir na sua cidade um hospício, numa casa que mandou fazer, com janelas verdes, e que, por isso, ficou conhecida como a Casa Verde. Entendeu-se com a Câmara de Vereadores acerca do imposto que sustentaria os internos e tomou para si o ofício de categorizar as pessoas, dividindo-as entre loucas (que seriam internadas) e sãs. Além disso, ele se dispunha a estudar profundamente a loucura, o que, pensava ele, seria facilitado pelo fato de os loucos estarem separados dos sãos e trancafiados na Casa Verde.
O padre, conversando com ele, disse que a loucura era derivada da Torre de Babel, ao que o médico retrucou:
– Essa explicação é divina. Mas há uma razão científica; essa, hei de descobrir!
Inicialmente, os loucos foram facilmente identificados: havia três loucos por amor; um que pensava ser a estrela-d’alva; um que andava à procura do fim do mundo; um que matou por ciúmes a mulher, com requintes de crueldade; outros que tinham mania de grandeza... Todos passaram, assim, a ser classificados.
Mas o alienista começou a desconfiar de que a loucura não era uma ilha, mas um continente e iniciou a ampliação do conceito. O critério que ele passou a utilizar foi o de levar para a Casa Verde qualquer pessoa que mostrasse o mais ínfimo comportamento diferente. Internou um homem, que herdou uma fortuna e a distribuiu; sua prima, que o defendeu; outro, que admirava muito a sua própria casa; outro, que fez um discurso elogiativo demais sobre sua esposa, dona Evarista; e outro, que era cortês demais.
Aí o pânico espalhou-se pela cidade, cujos habitantes se rebelaram no que o narrador chamou de a Revolta dos Canjicas, em referência ao apelido do líder, o barbeiro Porfírio. Então, outro barbeiro, João Pina, derrubou o primeiro e foi, por sua vez, derrubado por uma força mandada pelo vice-rei. A Casa Verde encheu-se de canjicas, sequazes e até o presidente da Câmara foi trancafiado. Daí em diante, foi uma “coleta desenfreada”, até que quatro quintos da população estava dentro de seus muros.
Então, o alienista mandou um ofício à Câmara, desfazendo tudo, soltou todos e começou a colocar dentro da Casa Verde os que estivessem em equilíbrio perfeito das faculdades mentais: modestos, tolerantes, verídicos, símplices, leais, magnânimos, sagazes, sinceros... O remédio, em doses perfeitamente graduadas, era uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, um anel de brilhante, distinções honoríficas... No fim de cinco meses e meio, a Casa Verde estava vazia: todos curados! Não havia loucos!
Mas Simão Bacamarte começou a pensar... Não ha ninguém perfeito das faculdades mentais? Sim... ele... Trancou-se na Casa Verde e, logo depois, morreu.
Nesse texto divertido, Machado cria em cima de uma das mais queridas de suas idéias: a relativização do cientificismo de sua época, do qual ele riu e nos fez rir.
Que cabeça! Na periferia do mundo, ele fraturou a ciência européia de sua época e sua mania de hierarquizar, classificar, tabelar, explicar, testar, provar... E, nos fazendo rir, falou de nossas complexidades, pluralidades, riquezas, sortilégios...
Assim, dou por finda minha missão machadiana e espero que o bife sare, o bolo acabe e Samarone apareça.

10 Comments:

At 12:08 PM, Anonymous Anônimo said...

GRANDE PROFESSORA FLÁVIA, TE ESCREVO NÃO PRA COMENTAR SOBRE TEU TEXTO (SEM PALVRAS, POR SINAL,MARAVILHOSO...)MAS PARA PEDIR TUA OPNIÃO SOBRE A “CONFRARIA DA QUINTESSÊNCIA”,UM GRUPO DE PESSOAS QUE TEM POR OBJETIVO CULTIVAR A HUMANIDADE QUE HÁ EM CADA MEMBRO E A BUSCA ANTROPOFÁGICA PELO GRANDIOSO QUE HÁ EM TUDO QUE NOS CERCA.CADA QUINTESSENTE SE COLOCARÁ (EM NOSSO BLOG HOMÔNIMO) ATRAVÉS DE TEXTOS ESCRITOS POR ELES MESMOS OU ATRAVÉS DE QUALQUER DAS OUTRAS POSSÍVEIS FORMAS DE EXPRESSÃO HUMANA(GUARDANDO AS DEVIDAS LIMITAÇÕES DESTE BLOG).AGRADEÇO SUA ATENÇÃO,GRANDE PROFESSORA,E AGRADEÇO TAMBÉM POR TER O PRIVILÉGIO DE TER SIDO E AINDA SER CULTIVADO POR VC...QUANDO ESTAVA PERDIDO VC ME AJUDOU ACHAR MINHA “ BÚSSOLA PRATEADA”...ETERNAMENTE LIGADO
AGRADECE
<.D.>
http://ccquintessencia.blogspot.com/

 
At 12:13 PM, Anonymous Anônimo said...

"Sem você, sujeito não-asujeitado
Metamorfoseado
Juro que estaria simplesmente morto
Ou pior: mortificado
Atravancado
Pelo eu - modernidade bem mais encantado"
ENÉSSIMA LEMBRANÇA(FRAGMENTO)
<.D.>

 
At 4:37 PM, Blogger Confraria da Quintessência said...

"Era uma estrela
muito longe,
cujo fascínio
se escondia.

E quando me fiz sol,
só o pude,
porque foste luz
que incendiou
minha face,
meu corpo."

FLÁVIA,SEM A BÚSSOLA PRATEADA ESQUECERIA DA GRANDIOSA CONSTRUÇÃO DE MINHA VIDA,DO DIA EM QUE FUI QUEIMADO,EM QUE ME TORNEI SOL...SENTI QUE ESTAVA ME APAGANDO,DAI USEI COMO LENHA O ARTEFATO ORIENTADOR QUE RECEBI DE VC...
ETERNAMENTE LIGADO
<.D.>

 
At 8:32 PM, Anonymous Anônimo said...

Flávia, você está uma gata. Eu devo ter uns 20 anos a menos, mas ainda daria uns "pegas" em você.

 
At 10:29 PM, Anonymous Anônimo said...

TIA FLAVIA, FOI MASSA A AULA DOS LIVROS.ALÉM DE REVER A SENHORA , ACHEI INTERESSANTE DUAS PESSOAS EXPLICANDO... ;) !!
BJÃO

 
At 5:20 PM, Blogger Confraria da Quintessência said...

AOS DISCOS INTERCALARES:PULSAÇÃO TALÂMICA
(para ser lido ao som de “Good bye Lênin”-Yann Tiersen)

Ungüento da Madre-gota-além-Indico
Micro volume importantíssimo
,Tão comumente limitado pelo fogo,
Elemento formador de nó (SS)

Metonímia de infindos gumes
Cultivadora de solos,não de sementes
Base para matização
Syrinx

Geralmente não entendemos teu potencial
Fazendo-te luvas
Com doces toques esfolamos
Fazendo-te ferro nos blindamos
Fazendo-te espelho,individualmente,nos adoramos
Fazendo-te lagrimas a muitos afogamos
Fazendo-te palavras
Em vítimas ,cinicamente,nos tornamos

Pano tão mal utilizado
Podia ser rede larga,receptiva,aconchegante
Beira mar,brisa no fim do dia
Conversa com amigos em uma livraria
Mas retalhada vira uma boa venda
Seda chamativa e hipnótica
Baratinha,baratinha...

A cada virada,Satrupa
Um divino rosto a te devassar
É a evidência do
[nunca contentar-se de contente]
Afetuosa busca ou
Desejo “inconsciente” de violar?

Limite tênue
Busca que necessita ser bem elaborada
Pedra ancestral,mercúrio dos filósofos
Tua grandeza é que tem que ser procurada

Simplesmente te usamos e mal!!!
Lambuzados com tuas cinzas nos esfregamos
Muitas vezes só bufamos
Pois gemer é [arte de cama]
Conseqüência de gozo,musica visceral,contemplação
Cansei de “ais” retóricos,seqüência de roteiro
De transformar meu narcísico umbigo em Afrodite
Direção para o mundo inteiro
Sentir apenas a eloqüência de minha dor

Quero então é teu mais alto grito
Tua verdadeira forma
Contato agregador
Força maior que a de Hiroshima,bomba-h
Obus decifrador
Tirar,permitidamente,minha sede com teu sorriso
Te quero,agora sim
E sem pudor!!!!

texto incompleto,eu acho...

<.D.>

 
At 3:11 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu ia comentar o ultimo artigo machadiano, mas depois que li os comentários abaixo, e as declarações de afeto radicais, achei melhor comenta-las.
- Flávia, cuidado com o juizado de menores (risos....)

 
At 8:43 PM, Anonymous Anônimo said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 1:38 AM, Blogger Samarone Lima said...

Flávia, vi você na TV. Como sempre, muito bem na fita.
Olhe, voltei de Porto Alegre (54a Feira do Livro de Porto Alegre) com um livro cheio de ponderações e alegações sobre o Machado de Assis.
Esta semana tentarei ir à sua mansão literária, no meio da aula, para entregar o presente e chamá-la para um cafezinho.
Beijos,
Samarone

 
At 10:53 PM, Anonymous Anônimo said...

O ano está acabando e encontro-me numa dúvida cruel:
- Passar e não mais estar presente nas aulas de Flávia ou não passar e envolver-me mais um ano em suas reflexões!

O seu texto "Despedida", no Revimax, diz tudo.

=*

 

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