sábado, setembro 02, 2006

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

XI

Ainda naquele confuso dezembro de 1933, são dois os fatos que, somados aos anteriores, levaram-me ao período de alheamento em que caí: longo e cinzento, são só névoas o que dele me restou.
O primeiro, uma carta de Ivã; e o segundo, o acontecido da noite de Ano-novo.
Deitei-me na noite do dia 29 muito cansada e o sono pegou-me logo que me estirei na cama. Fazia muito tempo que não dormia bem e meu corpo pedia descanso desde muito. Meu sono nesta noite foi pesado e diferente do que sempre fora: o meu é leve e qualquer pequeno barulho pode me despertar. No entanto, naquela noite, eu não sentia possuir nenhum poder sobre mim mesma. E foi isso exatamente – o grande cansaço – que me impediu de saber quem foi ao meu quarto e lá deixou-me uma outra carta de Ivã.
Além da carta, a pessoa que lá foi me afagou o rosto e os cabelos carinhosamente, deitou-me no rosto beijos e depois se retirou. Mas isso não o posso afirmar com certeza se realmente aconteceu ou se não foi fruto talvez de um sonho. A vaga lembrança e difusa de algum carinho alheio, no entanto, eu a tenho. E acho que morrerei sem saber se tudo foi um sonho de amor ou se realmente aconteceu.
Eis a carta que me deixaram, naquela noite:

“Minha querida Branca:
Lembra-te de que existe o sonho e, se morro em breve, deixo, no entanto, o exemplo de que é por ele que devemos lutar mais arduamente – é por ser livre para sonhar que o homem vem ao mundo.
Fui mesmo uma negra sombra que passou voando rápida demais pelo mundo e sem tocá-lo nunca com os pés, mas jamais, em tempo algum, ninguém sentiu a luminosidade da alegria tão de perto quanto eu.
Fique certa de que eu a abarcarei com meus braços e a prenderei eternamente.
Adeus, Ivã”.

E eis o segundo – o acontecido do Ano-novo:
Como havia sido planejado, houve uma grande festa de Ano-novo, naquele ano, na cidadezinha sertaneja, que nunca mais viu outra desde então. Eu a esperava com muita ansiedade e ao novo ano também, esperançosa de que ele trouxesse tranqüilidade e paz. A festa correu animada e linda. Já de manhã (e ainda ela assim se ia), vi de dentro do saguão a figura muito amada de Ivã e corri a abraçá-lo e cumprimentá-lo pelo ano novo que chegara. Na inocência que me levou até ele, ia pensando em como abordá-lo e, sozinha, falar com ele sobre tudo.
Mas não quiseram os deuses que eu soubesse nada sequer dos acontecidos todos: ao chegar bem perto de Ivã, que também corria para mim, ouvi o canto de uma ave e ao mesmo tempo um tiro que o derrubou quase aos meus braços, tão próximo estava de mim. E, quase tão rapidamente quanto tudo, Ivã foi arrebatado de meus braços e levado embora para sempre.