Carta a tia Beta
Tia Beta:
Esta carta é, antes de tudo, para agradecer. Secundariamente, é uma conversa com você, longa, pela qual já cansei de esperar e que enchi de planejar e – coisas da vida – vai se adiando a meu contragosto.
Nem sei se, pessoalmente, ficaria tudo organizado, pois precisaria falar e ouvir tanto que – aposto – ficaria tudo pela metade, embebidas que estaríamos uma da outra, e nos perderíamos do fio da lógica que, realmente, não é meu forte.
Aí resolvi escrever para organizar melhor: coisas antigas e boas que você me deu, sem nem saber. É que penso todo dia nas mulheres que, direta ou indiretamente, construíram a trança de gente que, aos quarenta, descubro que sou.
Minhas avós, minha mãe, minhas tias – cada uma de vocês reside em mim de uma forma e me ajudam, às vezes; outras, me desajudam... Mas reconheço-as todas, habitantes de mim, e começo, agora, a saber o que cada uma me deu.
A minha avó Olímpia me ensinou pelo avesso: navio desancorado e sem porto, essa avó me fez uma árvore. No dia em que comprei minha casa, ninguém sabe o que senti – mistura de alívio e inteireza.
Na minha sala, repousa seu relógio mudo que herdei. Dizem que a cada quarto de hora e a cada meia hora ele tocava e batia, satisfeito, até que vovó, um dia, irritada, quebrou a sua voz. Não faz mal. O tic-tac mostra, ainda, a hora exata.
Esse relógio marcou tanta hora extremada na vida de minha avó... Só não marcou o tempo de felicidade que ela não soube construir.
Só depois de muito tempo descobri por que caminhava sem rumo entre paredes vazias durante as mudanças, abraçada à caixa da louça inglesa de minha avó, que eu temia se quebrasse: é como se, sem saber, eu conhecesse, em mim, naquele momento, o desnorteamento da avó. A louça jaz, quieta, agora, no petisqueiro de D. Alice, mãe de minha sogra, que me deu o móvel, na certeza de que eu cuidaria bem dele.
Vovó Limpa era a cara de suas colchas de retalho: tecido partido cuja inteireza ela tentava recompor, sem conseguir.
A outra avó era capaz de fazer uma colcha inteira com um fio – disciplinada e metodicamente. Horas a fio...
Duas irmãs, tão próximas e tão diferentes! Uma: maremoto; outra: calmaria. Minha mãe não conseguiu tarar essa balança de dois pratos.
Longe de uma, vizinha da outra, fui, com elas, de início me fazendo...
Com minha mãe, aprendi tão bem o silêncio que foi trabalho desaprender e, agora, aos poucos, sinto que sou eu mesma, construída no fio das palavras que sou capaz de externar.
Foi difícil, mas foi possível, isso que vale!
Minha mãe...
Foi minha avó Rita que me ajudou a não ir de todo no caminho de minha mãe, quando disse: “Fadoca era tão boa que não prestava”. Tirando os noves fora das duas, aprendi que ninguém pode amar contra si mesmo.
E lá vem de longe uma frase sua: “Sou mansa, mas sei o que quero”, e nisso um fio a mais...
Tia Gena também foi tábua que me salvou. Com a maior naturalidade do mundo, fazia que cuspia o chocolate que lhe cabia e não o repartia com ninguém. Era dela e pronto! Várias vezes pude contar com ela, minha bastante mãe procuradora, depois que minha própria mãe se foi. Não é todo mundo que pode ter duas mães tão diferentes e tão ricas. Com uma aprendi a suportar; com a outra, a buscar caminhos quando não agüentava mais. Com uma aprendi a calar; com a outra, orientada, estou aprendendo a falar... E la nave va...
E tudo o que sofri tão forte durante certo tempo parece tão leve agora... Até meu pai, meu tornado intermitente, repousa manso e compreendido dentro de mim...
Minhas tias paternas são tesouros outros que tive o privilégio de herdar. Tia Midô me ensinou a falar do outro sem julgá-lo; tia Mana, a me permitir a ira contra os vendilhões; tia Mema, a ver que, dentro do meu destino, havia escolhas que eu tinha feito e que era preciso dar conta das conseqüências que vieram atreladas; e você, de longe, não só me ajuda a manter a calma e o querer, harmonizados, mas também a dar um chá de bússola à minha família, como posso, devagar.
Lá vem a voz da minha avó Rita:
– Cada um deve saber o que pode e o que não pode.
E aprendo, calmamente, o poder e aprendo devagar a dizer o que não posso, até porque não quero, graças a vocês todas e a um jeito atrelado de ser, pérola de que posso dispor, por ter nascido nessa família.
Assim, renasço todo dia, todas vocês me ensinando a reconstruir o que, em certo momento, metade do meu sangue via perdido.
E descubro, aliviada, através de você e de tia Gena, que ser mãe é um pacote, mas de viagem; que o erro não é uma pedra, mas massa para modelar; que acertar não é concessão, mas harmonia comigo mesma.
Escrevo, como já disse, para agradecer por tudo. Por esse sangue que corre nas minhas veias e que agora sei, e por essas camadas de gente as quais formaram o solo fértil que sou.
Flávia.
Esta carta é, antes de tudo, para agradecer. Secundariamente, é uma conversa com você, longa, pela qual já cansei de esperar e que enchi de planejar e – coisas da vida – vai se adiando a meu contragosto.
Nem sei se, pessoalmente, ficaria tudo organizado, pois precisaria falar e ouvir tanto que – aposto – ficaria tudo pela metade, embebidas que estaríamos uma da outra, e nos perderíamos do fio da lógica que, realmente, não é meu forte.
Aí resolvi escrever para organizar melhor: coisas antigas e boas que você me deu, sem nem saber. É que penso todo dia nas mulheres que, direta ou indiretamente, construíram a trança de gente que, aos quarenta, descubro que sou.
Minhas avós, minha mãe, minhas tias – cada uma de vocês reside em mim de uma forma e me ajudam, às vezes; outras, me desajudam... Mas reconheço-as todas, habitantes de mim, e começo, agora, a saber o que cada uma me deu.
A minha avó Olímpia me ensinou pelo avesso: navio desancorado e sem porto, essa avó me fez uma árvore. No dia em que comprei minha casa, ninguém sabe o que senti – mistura de alívio e inteireza.
Na minha sala, repousa seu relógio mudo que herdei. Dizem que a cada quarto de hora e a cada meia hora ele tocava e batia, satisfeito, até que vovó, um dia, irritada, quebrou a sua voz. Não faz mal. O tic-tac mostra, ainda, a hora exata.
Esse relógio marcou tanta hora extremada na vida de minha avó... Só não marcou o tempo de felicidade que ela não soube construir.
Só depois de muito tempo descobri por que caminhava sem rumo entre paredes vazias durante as mudanças, abraçada à caixa da louça inglesa de minha avó, que eu temia se quebrasse: é como se, sem saber, eu conhecesse, em mim, naquele momento, o desnorteamento da avó. A louça jaz, quieta, agora, no petisqueiro de D. Alice, mãe de minha sogra, que me deu o móvel, na certeza de que eu cuidaria bem dele.
Vovó Limpa era a cara de suas colchas de retalho: tecido partido cuja inteireza ela tentava recompor, sem conseguir.
A outra avó era capaz de fazer uma colcha inteira com um fio – disciplinada e metodicamente. Horas a fio...
Duas irmãs, tão próximas e tão diferentes! Uma: maremoto; outra: calmaria. Minha mãe não conseguiu tarar essa balança de dois pratos.
Longe de uma, vizinha da outra, fui, com elas, de início me fazendo...
Com minha mãe, aprendi tão bem o silêncio que foi trabalho desaprender e, agora, aos poucos, sinto que sou eu mesma, construída no fio das palavras que sou capaz de externar.
Foi difícil, mas foi possível, isso que vale!
Minha mãe...
Foi minha avó Rita que me ajudou a não ir de todo no caminho de minha mãe, quando disse: “Fadoca era tão boa que não prestava”. Tirando os noves fora das duas, aprendi que ninguém pode amar contra si mesmo.
E lá vem de longe uma frase sua: “Sou mansa, mas sei o que quero”, e nisso um fio a mais...
Tia Gena também foi tábua que me salvou. Com a maior naturalidade do mundo, fazia que cuspia o chocolate que lhe cabia e não o repartia com ninguém. Era dela e pronto! Várias vezes pude contar com ela, minha bastante mãe procuradora, depois que minha própria mãe se foi. Não é todo mundo que pode ter duas mães tão diferentes e tão ricas. Com uma aprendi a suportar; com a outra, a buscar caminhos quando não agüentava mais. Com uma aprendi a calar; com a outra, orientada, estou aprendendo a falar... E la nave va...
E tudo o que sofri tão forte durante certo tempo parece tão leve agora... Até meu pai, meu tornado intermitente, repousa manso e compreendido dentro de mim...
Minhas tias paternas são tesouros outros que tive o privilégio de herdar. Tia Midô me ensinou a falar do outro sem julgá-lo; tia Mana, a me permitir a ira contra os vendilhões; tia Mema, a ver que, dentro do meu destino, havia escolhas que eu tinha feito e que era preciso dar conta das conseqüências que vieram atreladas; e você, de longe, não só me ajuda a manter a calma e o querer, harmonizados, mas também a dar um chá de bússola à minha família, como posso, devagar.
Lá vem a voz da minha avó Rita:
– Cada um deve saber o que pode e o que não pode.
E aprendo, calmamente, o poder e aprendo devagar a dizer o que não posso, até porque não quero, graças a vocês todas e a um jeito atrelado de ser, pérola de que posso dispor, por ter nascido nessa família.
Assim, renasço todo dia, todas vocês me ensinando a reconstruir o que, em certo momento, metade do meu sangue via perdido.
E descubro, aliviada, através de você e de tia Gena, que ser mãe é um pacote, mas de viagem; que o erro não é uma pedra, mas massa para modelar; que acertar não é concessão, mas harmonia comigo mesma.
Escrevo, como já disse, para agradecer por tudo. Por esse sangue que corre nas minhas veias e que agora sei, e por essas camadas de gente as quais formaram o solo fértil que sou.
Flávia.
6 Comments:
(c'os óis mareados...)
Felicidade em fazer parte desta TRANÇA de gente toda. De puxar o fio ancestral no teu palavrear e poder ver o meu DNA desenhado nele aqui e acolá. Essa força de se ser semente dessa gente tão gente, que não espera a seca pra murchar, tampouco a primavera pra florir. De gente que é nas quatro estações e nos ensina e desensina a sê-lo. Orgulho. Vastidão de coração. Merecência de um vinho pra brindar. Reverência. Celebração....
beijocas portugas.
Lindas memórias e palavras.
Servem como desabafos e agradecimentos, pois só assim é que continuamos a viver.
E viva, pois voce é grande e merecedora de tudo isso.
Parabéns.
Salpica de Canela
Minha Pim
Fiz um passeio pela João Suassuna, pela Maria Rita e pela nossa infância/adolescência. E como foi bom...
Obrigada pela viagem.
a cara da minha porfessora!!!!!
"ficaria tudo pela metade, embebidas que estaríamos uma da outra, e nos perderíamos do fio da lógica que, realmente, não é meu forte."
hehehe
é muito talento!
ler é bom demais...
seus textos sao muito sensíveis. estava agorinha lendo um para a minah mãe... é incrível como a gente se apaixona!
é tudo emoçao!!!!
aiai
Flávia..
Queria que soubesse que ninguém me toca tanto quanto você!
Seus textos e aulas me fazem refletir sobre tudo!
É impressionante como em todas as situações em que me vejo, páro pra pensar o que você acharia ou faria!
Suas palavras são como músicas que me fazem recordar bons momentos e também como ensinamentos que vão me servir pro resto da vida!
Tenho certeza que nunca vou esquecê-la!
Nunca deixarás de ser minha professora, bem como nunca deixarei de ser tua aluna!Pois suas aulas me servirão por toda vida!
Muito obrigada por tudo!!
bjo...da sua eterna aluna Itana!
Flavia,
Como é bom poder encontrar algo com o qual a gente se identifique "naqueles momentos em que nos tornamos insuportáveis até para nós mesmos". O sentimento de culpa vem nos consumir, a falta de decisão nos esmagar e a necessidade de virar a página se faz tão necessária e a gente se cobra ao máximo todas essas atitudes. No trecho onde está "que o sofrimento não é pedra e sim massa para se modelar", é, pode levar o tempo que não queiramos, porém o importante é que nós aceitemos esse desafio. Foi muito gratificante me deparar com essas palavras. Obrigada por essa oportunidade!
Postar um comentário
<< Home