Jogo de trevas
DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA
VI
E o Monstro dos Arrecifes
Beijou carinhosamente o homem e retirou-se. À porta, no entanto, teve um sobressalto e, com medo de alguma coisa no ar, voltou-se, riu a ele e veio beijá-lo ainda outra vez.
A pesados passos, lá longe, vinha-se achegando aos poucos a rainha dos pélagos do mar. Fluida loucura, essa alma cancerosa da doidice andava atrás de vítima a matar, em cumplicidade com outro danado monstro seu marido: o casamento da perfeição – aquele monstro, o dos recifes, e a morte em cópula se apresentam, ansiosos por destruição.
Não merece Alegria
quem não sabe cantar.
E eu prezo-a tanto
e me é tão cara
a Desejada
que não a quero fugida,
de entre as mãos das minhas ânsias.
E esse canto é a chave
com que a quero prender.
E sai a mulher em mansidões de alegria, perdida em sonhos. Inocente diante de seu destino.
De longe os monstros a vêem. Lançam-se em sua direção como verdadeiros abutres.
É que a muita Alegria,
depois que foi encontrada,
é jamais abandonada
pela ânsia em procurá-la.
E é tanta a Alegria
e deusa de tanta beleza
que me parece possível
nunca poder se acabar.
Deusa bela e imortal
a Alegria alumia,
mostra em veredas sombrias
a luz com máscara de sombra.
Há luzes em todo o Universo.
E a moça, distraída pelo sonho e descuidada, é atropelada pelo Monstro dos Arrecifes e pela Morte. E do dia já morto, apenas restaram vidros luminosos, em cacos, pelo chão, em meio dos quais se achava deitada a moça, agora já ferida.
Descobri com a Alegria
a escuridão feiticeira:
a que, apesar de umbrosa,
traz consigo, alumiada,
uma bola de cristal.
Onde andará a Morte,
amiga de todo o Mal,
que nessa bola mostrou-se?
E o Monstro dos Arrecifes, irmanado ao outro também cruel – o da Morte –, ficou acolá, na noite, com mil olhos de vidro espalhados no caminho e mais unhas de tanto brilho quanto. Deixaram lá os seus brilhos e saíram, ainda mais obscuras, pela noite adentro, misturadas, atrás de outro cuja vida, covardemente, já deixara de habitar:
As almas todas maravilhosas
que em sonho certo dia me chegaram,
encontrei-as todas,
em placidez,
sobre um belo corpo de Mulher.
Enviada a mim nem sei por quem
(acho que pela vida ou pela Morte,
para se verem livres de lamentos)
a Mulher tirou-me do escuro
e mostrou-me a luz com mansidão.
E com cativos gestos e carinhos
tirou-me a venda e os pesadelos,
avivou em mim os olhos mortos,
trocou por bom um sonho mau.
É que nele viajei
a um tempo que não era meu,
e do tempo que me pertence
fugi à incoerência.
A Beleza não me estava à porta:
a Alegria fora-se com ela.
E os demônios da Tristeza
matavam-se pouco a pouco.
E tive minha vontade,
fé e liberdade
obscurecidas, perdidamente,
pela dor enorme de ser homem.
Mas outros olhos, agora,
a mim desconhecidamente serenados,
olham comigo novamente.
Mas lá, estirada ao chão, toda a serenidade lhe fora. E também a do poeta, ao descobrir o tanto de covardia que existe na Alegria: essa danada se anula diante de quase tudo.
VI
E o Monstro dos Arrecifes
Beijou carinhosamente o homem e retirou-se. À porta, no entanto, teve um sobressalto e, com medo de alguma coisa no ar, voltou-se, riu a ele e veio beijá-lo ainda outra vez.
A pesados passos, lá longe, vinha-se achegando aos poucos a rainha dos pélagos do mar. Fluida loucura, essa alma cancerosa da doidice andava atrás de vítima a matar, em cumplicidade com outro danado monstro seu marido: o casamento da perfeição – aquele monstro, o dos recifes, e a morte em cópula se apresentam, ansiosos por destruição.
Não merece Alegria
quem não sabe cantar.
E eu prezo-a tanto
e me é tão cara
a Desejada
que não a quero fugida,
de entre as mãos das minhas ânsias.
E esse canto é a chave
com que a quero prender.
E sai a mulher em mansidões de alegria, perdida em sonhos. Inocente diante de seu destino.
De longe os monstros a vêem. Lançam-se em sua direção como verdadeiros abutres.
É que a muita Alegria,
depois que foi encontrada,
é jamais abandonada
pela ânsia em procurá-la.
E é tanta a Alegria
e deusa de tanta beleza
que me parece possível
nunca poder se acabar.
Deusa bela e imortal
a Alegria alumia,
mostra em veredas sombrias
a luz com máscara de sombra.
Há luzes em todo o Universo.
E a moça, distraída pelo sonho e descuidada, é atropelada pelo Monstro dos Arrecifes e pela Morte. E do dia já morto, apenas restaram vidros luminosos, em cacos, pelo chão, em meio dos quais se achava deitada a moça, agora já ferida.
Descobri com a Alegria
a escuridão feiticeira:
a que, apesar de umbrosa,
traz consigo, alumiada,
uma bola de cristal.
Onde andará a Morte,
amiga de todo o Mal,
que nessa bola mostrou-se?
E o Monstro dos Arrecifes, irmanado ao outro também cruel – o da Morte –, ficou acolá, na noite, com mil olhos de vidro espalhados no caminho e mais unhas de tanto brilho quanto. Deixaram lá os seus brilhos e saíram, ainda mais obscuras, pela noite adentro, misturadas, atrás de outro cuja vida, covardemente, já deixara de habitar:
As almas todas maravilhosas
que em sonho certo dia me chegaram,
encontrei-as todas,
em placidez,
sobre um belo corpo de Mulher.
Enviada a mim nem sei por quem
(acho que pela vida ou pela Morte,
para se verem livres de lamentos)
a Mulher tirou-me do escuro
e mostrou-me a luz com mansidão.
E com cativos gestos e carinhos
tirou-me a venda e os pesadelos,
avivou em mim os olhos mortos,
trocou por bom um sonho mau.
É que nele viajei
a um tempo que não era meu,
e do tempo que me pertence
fugi à incoerência.
A Beleza não me estava à porta:
a Alegria fora-se com ela.
E os demônios da Tristeza
matavam-se pouco a pouco.
E tive minha vontade,
fé e liberdade
obscurecidas, perdidamente,
pela dor enorme de ser homem.
Mas outros olhos, agora,
a mim desconhecidamente serenados,
olham comigo novamente.
Mas lá, estirada ao chão, toda a serenidade lhe fora. E também a do poeta, ao descobrir o tanto de covardia que existe na Alegria: essa danada se anula diante de quase tudo.
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