domingo, fevereiro 20, 2022

Meu novo normal - 2

            Quando começa, todo ano traz um minuto de bem-estar, por causa do pingo de esperança que a gente derrama sobre ele. Embora alguns de nós já tenhamos encarado muitos inícios e por isso saibamos de cor que todo ano constitui uma tarefa difícil e sem bula, não custa nada esperar que o novo venha com gosto de chá de rolha e fazer um esforço para não estragar a fé inocente dos mais jovens. Mas o ano de 22 nasceu tão aloprado, que resolvi escrever esta crônica. Talvez desabafando eu consiga respirar...

            Minha família é meio chocha com essas reuniões familiares no natal e réveillon, e eu sempre fico um pouco só desde que meus filhos se casaram... No natal de 2021, um gosto amargo foi logo desinstalado pela família de uma de minhas noras, a qual sentia a mesma espécie de saudade por que eu estava passando: eles me chamaram, e nós passamos não só o natal, mas também o ano novo juntos, ruminando o fato de nossos filhos estarem morando em São Paulo e, portanto, longe de nós. Choramos, rimos, bebemos, nos consolamos e saímos vivos desse sentimento ao mesmo tempo triste e orgulhoso que é a partida dos filhos. Meu ex-aluno e agora amigo inseparável Gael também me consolou nesse natal proparoxítono.  

    Mas, logo depois, ficou tudo triste: o pai de meus filhos foi hospitalizado e, na sequência, faleceu. Eles vieram de São Paulo de madrugada feito dois bichinhos feridos, e eu revi o filme de minha vida, experimentando um luto ambíguo e inexplicável. Nem sei se pude dar a eles o consolo de que precisavam; calados, partiram no dia seguinte ao enterro. 

Uma amiga me relatou que achou bonito, quando eles, no final, se apropriaram do caixão em que estava o corpo e o ergueram com dificuldade à altura necessária, dando ao pai sua penúltima casa. Chorei muito quando ela me contou, pois a cena, sem ela saber, foi uma metonímia perfeita do esforço de afeto e de perdão que sempre foi necessário entre nós, pois nunca fomos uma família feliz. Só alegre, ainda que eu tenha feito das tripas coração.  

       Em seguida entrei no redemoinho da pejotização — cartório, papéis, escaneamentos, xérox, certidões, assinaturas, números, banco, empresa, conta pj, senhas, MEI, CEI, SIMPLES... Não só: canal de Youtube, streamings, logo, vinheta... É estranho me sentir analfabeta, apesar de toda a minha competência linguística. E ter de depressa, meio cega, caminhar nesse novo mundo que surge tentando me excluir... Na última sexta-feira, minha professora de pilates me mandou embora: “Vá pra casa, Flávia, você não tem condições de fazer a aula hoje”. E eu vim para casa, tentando não sucumbir. 

Confesso que tenho muita raiva e muito medo desse novo normal apressado e violento que ainda não é “sustância” entendível e falável para mim. 

            Aí dois episódios me salvaram: um no sábado passado e outro hoje. 

        No sábado, eu recitei poemas ao lado do CLUBE DA BOSSA, formado por Eduardo Farias, Jorge Percílio e Patrícia Luna, no Café Artisano; lançar meu livro novo e ouvir de Pedro Gabriel que o contrário de "morte" não é vida, mas "palavra" me deu uma primeira ressurreição. Esse projeto é uma doidice deliciosa: entre duas músicas, eu recito um poema... E me certifico de que ainda há espaço no mundo para as coisas de que gosto e que fazem sentido para mim. 

            Confesso que, quando acordei hoje na segunda-feira, pensei: “De volta ao inferno da pejotização”! E fui meio vencida ao terceiro banco para tentar abrir uma conta pessoa jurídica. Cheguei... Esperei... Estava mais triste que um passarinho molhado... Aí um rapaz me chamou e me sentei na cadeira na frente dele. Conversa vai, conversa vem... O mundo da pejotização foi se transformando... Ele me contou a sua vida e o milagre que era o fato de estar ali... Quando eu disse que era professora e escritora, ele disse que gostava de poesia, me mostrou um vídeo que viralizara nas redes sociais em que ele recitava um poema para sua mãe, que falecera precocemente... Me falou rapidamente de sua vida nas ruas, da adoção... Disse que gostava de ler... Também me mostrou sua companheira grávida fazendo exercícios na academia... Disse que ela era influencer... Confessou que, se o bebê fosse mulher, receberia o mesmo nome de sua mãe... Eu mostrei fotos de meus filhos e netos... Tinha coragem de dizer “não sei”, ele entendia... Pegava o meu celular, pedia licença e executava as ações necessárias à abertura da conta... Ele me deu o número do telefone particular dele, para que eu compartilhasse poemas...  

            Saí do banco uma nova mulher; o sentido de minha vida tinha reaparecido: as palavras (o oposto da morte) com que sempre arranjo um sentido nessa coisa absurda que é a vida estavam meio escondidas, mas marcavam presença naquele lugar, graças àquele jovem bonito que, delicadamente, conseguiu falar a minha língua, apesar de ela ser tão rara. Ele, sem saber, me ajudou a ver que, apesar dos fatos desfavoráveis que acontecem — epidemias, isolamentos, pejotizações, alfabetos noutras línguas que nos atropelam, governos —, milagres que não estamos enxergando também acontecem... E que, se eu resistir, o novo normal vai começar a entrar nos meus trilhos, como aconteceu naquele intervalo mágico em que duas pessoas tão diferentes, com vidas tão diferentes, dentro de um banco, foram capazes não só de estarem juntas (uma traduzindo para a outra uma nova língua), como de se abraçarem pelas palavras. 

 (A Bernardo, como agradecimento)