segunda-feira, dezembro 01, 2008

Uma história sobre tudo - 2

Não houve rumores. Minha irmã Lívia e seu marido o viram no Fórum de Custódia. Falaram dele naquela confusão da chegada de Caio e Vitória. Imagino que isso levou Débora a pensar durante um tempo que não consigo precisar. Aí, nem sei quando, anunciou:
– Vou adotar Ricardo.
A partir daí, começou a escrever um diário para registrar os passos, as correspondências e os diálogos com a moça do Conselho Tutelar e o juiz. Falaram-se por telefone e, no meio da semana, ela me disse:
– Sábado, vou ao interior conhecer Ricardo.
Não sou mulher de abandonar uma irmã na porta da maternidade. E, no dia marcado, fui com ela ao abrigo. Meu filho Daniel foi conosco de bússola e de bom que é. Fizemos uma confusão tão grande na saída que nos atrasamos. Quando entrei no carro, vi o diário, perguntei o que era aquilo e pensei, depois que Débora disse, “Ele não vai nem se importar...”. E seguimos.
Quando passamos por Escada, ela contou que já tinha corrigido umas provas de vestibular para uma faculdade de lá. Houve uma questão que pedia um adjetivo que substituísse a expressão “que não pode ser habitada”. Vários candidatos escreveram “anecúmena”, e a comissão precisou procurar no dicionário para saber que estava certo. Seguimos. Duas horas depois, chegamos.
O abrigo é uma granja onde vivem cerca de quarenta adolescentes. É dirigido por um padre que tem cara e nome de anjo. Gostei dele porque, quando Débora disse que ia adotar Ricardo, ele a aprovou com olhos tristes e doces. Há uma casa maior, com um alpendre sem cadeiras, de tijolo aparente, e muitos quartos de um lado, um jardim bonito e, lá embaixo, nos disseram que havia animais e uma horta. Ficamos sentados no chão. A dor que esse abrigo provoca não é na arquitetura, é na alma, apesar do anjo.
– Esse abrigo não tem, eu disse.
– O quê? – Débora perguntou.
– É apenas isso, não tem, como Macabéa, de “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, eu respondi.
Aí ele apareceu. De olhos baixos, calmo, meio sem jeito, recebeu as coisas todas que trouxemos, foi guardá-las e voltou para ficar conosco, com o diário na mão. Com seu jeito manso, falou muito e, lá, acolá, lia o texto. Calava. Falava. Lia. Aí exclamou:
– Vou decorar de tanto ler esse papel e não vou conseguir entender o milagre que está acontecendo na minha vida.
É preciso ver a tranqüilidade de Debe. Tão agoniada que é, está cheia de certezas, feliz, não titubeia, e isso tudo deu a ela uma calma que ela normalmente não tem.
– Fico imaginando o que vocês estão pensando... Tenho quinze anos, todo formado... – ele falou.
– Não estou pensando nada, meu filho, sossegue, Débora respondeu imediatamente.
Nenhum de nós sabia direito o que falar, eu só sabia o que chorar. Olhei aquele menino triste com cuidado, vi que o sapato que havíamos trazido ficaria grande, sabia depois de cor cada detalhe, quando as pessoas perguntaram. Débora não sabia nada. É bom dizer que somos o contrário disso – sou distraída, e Debe, ligadíssima. Mas nesse dia trocamos os papéis. Sem combinar nem ensaiar.
Apenas um menino do abrigo ficou conosco durante a visita. Assim que chegou, notei que ele tinha déficit cognitivo. Num rompante, terminou por me perguntar:
– O que é isso? – e apontou meu colar.
– Uma folha, respondi.
– É de comer?
– Não, é de enfeitar...
Aquele abrigo é um lugar difícil de entender. Difícil de aceitar. A beleza sobrante de minha folha prateada virou punhal de gelo dentro do meu coração. Tenho vontade de chorar quando uma coisa parece “um saco meio vazio de torrada esfarelada”, como Macabéa, de novo, eu que sei de cor que nada é mais essencial do que o supérfluo, até porque nos falta mais do que comida. Mas, naquele lugar, minha folha prateada, inútil, como tudo que é belo, era um escândalo.
Quando nos despedimos, meu filho disse a meu sobrinho:
– Tua vida vai mudar, cara.
– Para melhor, pela primeira vez, ele respondeu.
Saímos em silêncio. Eu mesma não sabia o que dizer. De vez em quando, chorava, enquanto obras na estrada e plantações de cana passavam, ao som dos blues de Daniel.
– Que lugar anecúmeno, ele disse, muitas músicas depois.
Nosso silêncio concordou.
De uma forma que não sei, queria pegar aquele menino triste no meu colo e abraçar como fiz com Caio e, principalmente, com Vitória, que, antes, era a que tinha mais marcas. Queria saber dizer a ele uma cascata de palavras suaves para que ele esquecesse sua vida inteira em lugares como aquele. Queria acertar a pegar a sua mão e mostrar a ele que há um mundo diferente depois dos muros. Além de tudo, queria acertar a fazê-lo enxergar que, nesse mundo, há não só coisas, mas também valores. E que minha folha prateada não é apenas prata, é também beleza.