domingo, abril 08, 2007

Segundo setênio

Naquele tempo, era esse o momento de entrar na escola, e eu comecei a me sentir desconfortável. Havia algo em mim que não se encaixava bem naquele ambiente, de início. Eu tinha a impressão de que todos já sabiam alguma coisa que eu não sabia: por exemplo, eu não tinha entendido que havia dois banheiros e eu não podia entrar em um.
Também fiz a primeira comunhão, sem entender nada; perto da cerimônia, eu não sabia rezar, ralharam comigo; meu vestido era diferente, era uma “cabidela” de minhas primas. Nunca entendi direito por que herdar uma roupa se chama “cabidela” na minha família – fico pensando que se põe um molho de cabidela na galinha guisada do dia anterior para disfarçar. Sou de um tempo em que certa parcimônia era de valor. Minha mãe foi só, com um vestido amarelo, bordado na frente, eu pedi para ela colocar exatamente este, que eu achava bonito. Meu pai chegou no fim, da granja, com meu irmão.
Lembro do nome de minhas professoras: Vitória, Inês, Eliane. Minha prima Verônica me acudiu nesse ambiente hostil e difícil. Ela tem feito isso ao longo de minha vida, desde então.
Eu penso que as pessoas achavam que eu era aérea e ensimesmada: mamãe dava o dinheiro da pipoca de todos os irmãos a Lívia. Não pude assumir a posição de mais velha, essa minha irmã Lívia fez isso, coitada, sem poder também, por não ser a mais velha. Aliás, coitada dela: eu a alfabetizei quando me alfabetizei. Não sei como ela escapou da metodologia apavorante que eu usei, potencializando nela o horror que eu mesma sofria. Ela hoje é professora de didática, a vida tem desses milagres.
A minha professora da quarta série disse que ia escolher um caderno de desenho para ficar para ela e eu quis que fosse o meu; pedi ajuda de minha mãe e de minha vizinha para fazer os mapas e escrever; minha mãe disse a mim que assim não valia, mas, com a ajuda delas, meu caderno foi o escolhido.
Eu sentia o tempo todo uma atmosfera de desaprovação, apesar de meus esforços: minha amizade com a vizinha Cristiana era criticada, minhas primas eram referidas como melhores que eu, comecei a achar que não estudava o suficiente, não sei contar o que acontecia comigo para ser desaprovada; a matemática começou a me moer, eu não conseguia aprender nem a tabuada, nem a conta de dividir com dois algarismos; comecei a engordar. As críticas pareciam aumentar. Eu não sabia o que fazer, elas não vinham com orientações.
Estudei até a quarta série numa escola pública, perto de minha casa. Dureza, mesmo, escola naquele tempo. Fiz um punhado de amigos que me trouxeram certo calor naquela estepe gelada: Clébia, Edir, Regina Coeli e mais outros de que lembro o rosto e não o nome.
Eu tinha outro calvário fora o escolar: todo domingo tinha que ir à igreja em jejum. Era uma missa especial bem pertinho da minha casa, no Juizado de Menores, ou seja, eu assistia àquilo tudo ao lado das crianças infratoras do Recife. Imagino, hoje, a energia do lugar e entendo os desmaios sistemáticos que sofria. O sacristão, coitado, me dava uma xícara de café. Certa vez minha mãe me disse que eu estava proibida de me aperrear assim com tanta ênfase e, graças à sua mediana religiosidade, escapei daquele lugar e nunca mais fui enfaticamente religiosa ou qualquer outra coisa.
Com onze anos, mudamo-nos para uma casa enorme, em Casa Forte. Antes, houve uma reforma que consumiu uma fortuna, isso foi um sofrimento para mim. Na primeira noite em que dormi na casa nova, fiz xixi na cama.
Perdi meus amigos da escola. A sensação de deslocamento me acompanhou. Fui para uma escola só de mulheres. Nos dois últimos anos do ginásio, apresentei sérios problemas de comportamento na escola. Acho que quis chamar atenção, mas não deu certo, só recebi mais desaprovação, dessa vez das professoras e das freiras, da coordenação e da direção.
Eu tinha uma aula horrível de canto orfeônico; um dia, nessa aula, descobri que tinha trazido sem querer a bolsa de minha irmã Lívia; só pensei na agonia dela quando lá na sua escola descobrisse o mesmo e fiquei tão aflita que interrompi a aula, levantando a mão várias vezes, tentando pedir licença, acabei levantando e saindo para destrocar a bolsa. No fim do dia, fui repreendida – a freira disse que eu não era digna de pertencer à minha família, chorei um rio de lágrimas em casa sem entender que família era essa em que eu não podia caber. Neste dia fatídico, aprendíamos a cantar a “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, só podia...
Meu tio e minha tia foram presos, meus três primos viveram um ano inteiro conosco; na minha casa, ficou ainda mais difícil ter atenção, eu me sentia largada.
Comecei a ver que, se me destacasse nos estudos, poderia construir alguma aprovação e aí devo ter ficado difícil de entender: ótima aluna, com péssimo comportamento.
Meu pai e minha mãe se desentenderam; alguma coisa aconteceu, meu pai foi para a casa de minha avó, minha mãe ia lá de tarde, e minha outra avó veio do sertão passar uns dias conosco. Ela dizia que era eu a que dava mais trabalho. Não consigo visualizar o que eu fazia de tão horrível.
A reconciliação do meu pai e da minha mãe me custou uma gripe horrível, uma época de trevas e uma viagem incômoda para Salvador, todos juntos.
Mamãe chorava, às vezes, a tarde inteira; minha casa era um deserto frio e solitário.
Gostei de um menino que nem me olhava, a gordura me acompanhava renitente.
Fiz amigas novas que, às vezes, ainda encontro vida afora: Marília, Cristina Lapa, Orlinda, Márcia Monte, Rejane. Sou, eventualmente, professora, hoje, de seus filhos e gosto dessa teia inquebrantável de vida que, de raspão, me alimenta.
Eu tinha um fascínio pelo universo masculino e até fazia concessões a ele: ao lado do meu irmão, derrubava as casinhas, as panelinhas e as bonecas de minhas irmãs, fazendo-nos de “moscas” gigantes e destruidoras. Mas nunca era de todo bem-vinda a ele. Um dia pude jogar futebol com meu irmão e meus primos, pois faltava um jogador e fiz um gol... contra... E nunca mais pude jogar... De qualquer forma, descobri que fazer gol é bom. Essa história, hoje, serve a meu filho para entender por que não joga futebol que preste – é que ele puxou a mim.
Uma coisa que notei neste setênio: um amigo me pediu para contar o episódio de um seriado da tevê e eu não pude – tinha pensado e criado tanto em cima dele que já não podia separar o episódio em si do que tinha somado a ele com minha própria imaginação. Fiquei intrigada...
Descobri os livros neste tempo. Eles serviram inicialmente para me livrar um pouco de minhas dificuldades no mundo e me fizeram uma aluna de resultados sem eu ter que me esforçar muito. Mais tarde fizeram por mim outras coisas...
Este setênio foi ruim; nele eu me senti mal (desaprovada, feia, desconfortável, incapaz). Fiz muito barulho, corri, pulei. O que aprendi foi que, numa dificuldade, é melhor ficar quieta e calada.

domingo, abril 01, 2007

Minha babel

O ano de 2007 me reservou uma surpresa: depois de dez anos, voltei a trabalhar numa escola. Esse retorno à minha origem me revela devagar um conjunto de sentimentos que estou, aos poucos, classificando para entender.
A primeira sensação é de incompreensão - meus alunos não parecem reconhecer em mim alguém de valor, depois de minha notável quilometragem. Na verdade, sinto-me uma intrusa que atrapalha o que eles gostariam mesmo de fazer, coisa que é imaginável e não é, ao mesmo tempo, que não se pode saber o que o outro quer sem ouvi-lo. E ainda não me dispus, vá ver que o problema está aí. Acho que teremos que negociar um bocado, já que não tenho certeza de que eles querem ouvir o que tenho que falar, mas, ao mesmo tempo, espera-se de mim que o consiga. E la nave va!
Não é de hoje que professores tentam e alunos resistem e, ao fim e ao cabo, proclamamos o êxito desse embate antigo como o homem, que é a seqüência de uma geração depois da outra, a mais nova ouvindo parte dos conselhos e construindo ela mesma sua história de erros e acertos, de erros e acertos, de erros e acertos...
Louvo a vida que corre, inclusive nesse diálogo absurdo de quem fala para quem não quer ouvir, sentindo-me uma ponte que liga o novo e o velho (não como gostaria que fosse, mas como meu tempo possibilita). E me entrego inteira a esse presente de que faço parte, até porque ainda acredito que o faço um pouco do meu jeito.
E gosto de errar e de tentar acertar; gosto de brigar pelo que acredito; gosto de ter dúvidas, raiva, frustração e vontade de recomeçar; gosto de me ver advogada do que sou; gosto de não saber; gosto de perder; gosto de prever ganhos que virão, porque estou viva e uma pessoa de verdade não desiste, já aprendi que difícil é diferente de impossível.
A segunda sensação é de pertencimento: estou trabalhando com amigos que fiz há muito tempo e, magicamente, reconheço-os ainda e sou recebida como tal. Ah! essas coisas fomidáveis e inexplicáveis que são os encontros!
Acho, inclusive, que eles são planejados e fico pensando na criatura esplêndida que traçou alguns desses laços na minha vida.
Fico imaginando o que se passou na vida deles e eles também devem pensar no que a vida reservou para mim, devemos trocar enredos nos próximos meses e eu vou gostar, que histórias são o modo primeiro que tenho de entender as coisas.
Reencontrá-los, ouvi-los repensando a utopia malograda de nossa geração... examinar onde fizeram concessões ou onde mantiveram suas posições... vê-los falando uns dos outros com sede de se compreenderem, se explicarem... escutar as histórias de que não participei... rir e ter vontade de chorar... saber que há ali histórias de dificuldades que passaram ou não, que vão passar ou não...
A terceira sensação vem das pessoas novas e do desafio de estar aberta para elas e seus mistérios inescapáveis.
Louvo o dinamismo de minha vida que me dá agora um começo cheio de gente para amar, conhecer, amar de outro jeito, do mesmo jeito; gente com quem me desentender, até para me entender...
Meu novo emprego é minha babel, lugar para onde me trouxe minha história de volta ou de ida (não sei bem), desafio que vencerei ou que me vencerá (também não sei), encontro, desencontro, aconchego, estranhamento, trajetória... Uma escola é como a máquina da vida...