"O filho eterno", de Cristóvão Tezza
Cristóvão Tezza, ele mesmo, disse que a chave para entrar no seu labiríntico “O filho eterno” é o uso da terceira pessoa. Mas eu discordo – há outras chaves visíveis e invisíveis para se entender esse texto.
É claro que o uso da
terceira pessoa é uma delas. O pai da narrativa é uma clara e confessada
projeção de Tezza, e a escolha dessa posição narrativa talvez tenha sido uma
tentativa – bem-sucedida, diga-se – de visitar o próprio problema numa outra
perspectiva. Dessa forma, o autor cria uma nova percepção que é, em resumo, o
objetivo da literatura.
Um narrador onisciente
fala do e não pelo pai; repete experiências biográficas do Tezza, projetadas no
personagem, que é semelhante ao autor, mas não idêntico. Aliás, Tezza, numa
entrevista, chegou a dizer: “Eu não sou aquele monstro”.
De fato, o pai de “O
filho eterno” é irascível e pensa/escreve palavras duras e erradas (como se diz
nestes tempos politicamente corretos) quando avalia a situação que a vida lhe
traz – o nascimento de um filho com síndrome de Down, experiência que o próprio
Tezza vive na, digamos assim, vida real.
Esse material, no
entanto, foi muito trabalhado, a partir de ações propriamente ficcionais.
Primeiramente, só o
personagem do menino com síndrome de Down tem nome – Felipe. Todos os outros
são referidos apenas por suas funções ou posições sociais – o pai, a mãe, a
irmã.
Outro comportamento
ficcional é que o escritor recorta, escolhe, pula, apressa, alonga, ou seja,
ele define os elementos importantes para o sentido que quer criar na narrativa,
que tem começo, meio e fim. E um narrador que, a toda hora, tem uma visão
completa do conjunto da obra.
A vida não é assim:
vivemos sessenta anos (não duzentas páginas), mais ou menos, e enfrentamos acontecimentos
sobre os quais, infelizmente, não temos nenhum controle e não podemos decidir
um caminho hoje, já sabendo o que vai acontecer depois, como o faz um autor de
um livro ou mesmo um narrador de uma história. Além disso, um romance é uma
sequência intensa de episódios a que não sobreviveríamos na vida real, que,
graças a Deus, só nos apresenta um ou dois fatos dramáticos, quando muito, que,
diluídos na soma dos dias, tornam-na atravessável para a maioria de nós.
Outro componente
ficcional – talvez o mais forte – é o mecanismo do tempo, que não funciona
cronologicamente: em várias partes do texto, o narrador adverte que “o pai
ainda não sabe”, mas o episódio o marcará fortemente e a toda a família. Ou
seja: o narrador tem a visão do presente, do passado e do futuro, ao mesmo
tempo, poder que não existe na vida real.
Por fim, há um último e
crucial elemento ficcional: o narrador deu um sentido ao narrado e, na vida
real, principalmente na modernidade, esse sentido não existe. E – questão
típica da contemporaneidade – temos que dar, nós mesmos, um sentido às nossas
vidas, depois que houve uma retração do religioso na mentalidade ocidental. É
uma tarefa hercúlea a do homem pós-moderno... Somos responsáveis pela criação
de um sentido próprio e idiossincrático para a nossa travessia existencial.
Em “O filho eterno”, o
narrador cria um sentido que vai desde a falta de identidade, passando pela
busca de si mesmo, até a identificação possível. O pai começa o livro se
referindo ao filho como pacote, coisa, criança horrível, simulacro e a si mesmo
como pai sem filho, escritor sem obra, ou de um poema que é um simulacro de
poesia... e o termina falando numa identificação, não total, mas possível entre
os dois, numa cena linda e emocionante, que dá à obra um acabamento estético
primoroso.
Embora continue achando
o futebol desimportante e convergindo energias incompreensíveis, o narrador,
através dele, consegue unir-se ao filho para assistir a uma partida do time de
ambos – o Atlético Paranaense – e concede ao esporte o status de estímulo poderoso na educação de seu filho. Na sua
opinião, a noção de personalidade, entrelaçada com a do pertencimento; o
aprendizado da frustração e do imprevisível e, portanto, do novo; a
socialização; a noção do tempo e a alfabetização (tudo dentro dos limites das
circunstâncias, é claro) foram permitidos pela energia contagiante do futebol
para o filho. Para ele mesmo, por outro lado, o mesmo foi possível por meio da
literatura – outro ludus – que lhe
permitiu identificar-se como escritor, professor e pai possível que ele pode
ser daquela criança, cuja vida lhe permitiu o percurso, pelas palavras, até seu
próprio sentido como ser.
As últimas palavras do
narrador – “Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar, e isso é
muito bom” – desfaz um pouco o peso do título do livro que, dramaticamente,
aponta o fato de que a falta de autonomia daquele filho iria prendê-lo para
sempre ao lado do pai.
Isso tudo deve ser,
pelas palavras, o exorcismo do pavor que o autor deve sentir de partir,
deixando atrás de si seu filho especial.
A meu filho eterno, também Filipe, cuja história
tento ressignificar toda manhã, e a sua namorada especial, que iluminou minhas
últimas semanas.