quarta-feira, junho 06, 2012

"O filho eterno", de Cristóvão Tezza

Cristóvão Tezza, ele mesmo, disse que a chave para entrar no seu labiríntico “O filho eterno” é o uso da terceira pessoa. Mas eu discordo – há outras chaves visíveis e invisíveis para se entender esse texto.
É claro que o uso da terceira pessoa é uma delas. O pai da narrativa é uma clara e confessada projeção de Tezza, e a escolha dessa posição narrativa talvez tenha sido uma tentativa – bem-sucedida, diga-se – de visitar o próprio problema numa outra perspectiva. Dessa forma, o autor cria uma nova percepção que é, em resumo, o objetivo da literatura.
Um narrador onisciente fala do e não pelo pai; repete experiências biográficas do Tezza, projetadas no personagem, que é semelhante ao autor, mas não idêntico. Aliás, Tezza, numa entrevista, chegou a dizer: “Eu não sou aquele monstro”.
De fato, o pai de “O filho eterno” é irascível e pensa/escreve palavras duras e erradas (como se diz nestes tempos politicamente corretos) quando avalia a situação que a vida lhe traz – o nascimento de um filho com síndrome de Down, experiência que o próprio Tezza vive na, digamos assim, vida real.
Esse material, no entanto, foi muito trabalhado, a partir de ações propriamente ficcionais.
Primeiramente, só o personagem do menino com síndrome de Down tem nome – Felipe. Todos os outros são referidos apenas por suas funções ou posições sociais – o pai, a mãe, a irmã.
Outro comportamento ficcional é que o escritor recorta, escolhe, pula, apressa, alonga, ou seja, ele define os elementos importantes para o sentido que quer criar na narrativa, que tem começo, meio e fim. E um narrador que, a toda hora, tem uma visão completa do conjunto da obra.
A vida não é assim: vivemos sessenta anos (não duzentas páginas), mais ou menos, e enfrentamos acontecimentos sobre os quais, infelizmente, não temos nenhum controle e não podemos decidir um caminho hoje, já sabendo o que vai acontecer depois, como o faz um autor de um livro ou mesmo um narrador de uma história. Além disso, um romance é uma sequência intensa de episódios a que não sobreviveríamos na vida real, que, graças a Deus, só nos apresenta um ou dois fatos dramáticos, quando muito, que, diluídos na soma dos dias, tornam-na atravessável para a maioria de nós.
Outro componente ficcional – talvez o mais forte – é o mecanismo do tempo, que não funciona cronologicamente: em várias partes do texto, o narrador adverte que “o pai ainda não sabe”, mas o episódio o marcará fortemente e a toda a família. Ou seja: o narrador tem a visão do presente, do passado e do futuro, ao mesmo tempo, poder que não existe na vida real.
Por fim, há um último e crucial elemento ficcional: o narrador deu um sentido ao narrado e, na vida real, principalmente na modernidade, esse sentido não existe. E – questão típica da contemporaneidade – temos que dar, nós mesmos, um sentido às nossas vidas, depois que houve uma retração do religioso na mentalidade ocidental. É uma tarefa hercúlea a do homem pós-moderno... Somos responsáveis pela criação de um sentido próprio e idiossincrático para a nossa travessia existencial.
Em “O filho eterno”, o narrador cria um sentido que vai desde a falta de identidade, passando pela busca de si mesmo, até a identificação possível. O pai começa o livro se referindo ao filho como pacote, coisa, criança horrível, simulacro e a si mesmo como pai sem filho, escritor sem obra, ou de um poema que é um simulacro de poesia... e o termina falando numa identificação, não total, mas possível entre os dois, numa cena linda e emocionante, que dá à obra um acabamento estético primoroso.
Embora continue achando o futebol desimportante e convergindo energias incompreensíveis, o narrador, através dele, consegue unir-se ao filho para assistir a uma partida do time de ambos – o Atlético Paranaense – e concede ao esporte o status de estímulo poderoso na educação de seu filho. Na sua opinião, a noção de personalidade, entrelaçada com a do pertencimento; o aprendizado da frustração e do imprevisível e, portanto, do novo; a socialização; a noção do tempo e a alfabetização (tudo dentro dos limites das circunstâncias, é claro) foram permitidos pela energia contagiante do futebol para o filho. Para ele mesmo, por outro lado, o mesmo foi possível por meio da literatura – outro ludus – que lhe permitiu identificar-se como escritor, professor e pai possível que ele pode ser daquela criança, cuja vida lhe permitiu o percurso, pelas palavras, até seu próprio sentido como ser.
As últimas palavras do narrador – “Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar, e isso é muito bom” – desfaz um pouco o peso do título do livro que, dramaticamente, aponta o fato de que a falta de autonomia daquele filho iria prendê-lo para sempre ao lado do pai.
Isso tudo deve ser, pelas palavras, o exorcismo do pavor que o autor deve sentir de partir, deixando atrás de si seu filho especial.

A meu filho eterno, também Filipe, cuja história tento ressignificar toda manhã, e a sua namorada especial, que iluminou minhas últimas semanas.