"Biutiful", de Alejandro González-Iñarritu
O filme “Biutiful”, de Iñarritu, é uma metáfora do humano; é a história
de Uxbal, um homem que carrega todas as injunções de um homem – é bom e mau;
erra e acerta; tem medos e coragens; ama e odeia; acredita e duvida; tem dons e
faltas; sabe e ignora; explora e é explorado; tem culpas e perdões; é doce e
violento; se comove com a injustiça e é um elo da corrente interminável de
explorações do homem pelo homem; manda e desmanda; é amado e odiado; é forte e
vulnerável; foi ceifado pela morte, como todos foram ou serão...
Uxbal é, portanto, uma
metonímia – um homem que simboliza todos os outros no percurso da confusa
existência material. Sua história se passa numa Barcelona estranha, talvez
porque é uma outra e periférica cidade, não a que nos acostumamos a achar
bonita ou digna de cartões postais: prédios decadentes, guindastes,
apartamentos aos pedaços, entulhados de coisas velhas, ruas e calçadas
esburacadas, moradores de rua, camelôs... fazem do cenário uma favela, palavra que resume, mais ou
menos, aquela tragédia social.
Logo nas primeiras
cenas, somos informados de que Uxbal tem câncer e apenas dois meses de vida. E
a narrativa é o retrato de seu desespero para ajeitar tudo antes de partir. Ele
tem dois filhos, uma ex-esposa tão instável que não pode cuidar deles, um irmão
que o trai e em cujos olhos nem consegue olhar e uma profissão que também é
desestruturante: ele conecta duas pontas podres de atividades entre ilícitas e
criminosas – entrega a imigrantes ilegais senegaleses CDs piratas e bolsas
produzidas por imigrantes chineses também ilegais para serem vendidos nas
calçadas, inicialmente, e, em seguida, agencia mão de obra escrava ou quase
escrava (se é que se pode diferenciar os dois conceitos) para a construção
civil. Tudo isso temperado com corrupção policial, uma pitada de tráfico de
drogas e muita, muita injustiça. E muita, muita pobreza.
É claro que, na cegueira
materialista em que vive, Uxbal pensa que juntar dinheiro é o que tem que ser
feito, e suas ações nessa direção terminam por levá-lo ao fundo do pior abismo
em que uma pessoa pode entrar. Sob o olhar atônito do espectador, o filme
desenrola-se, de horror em horror, numa sequência crescente de conflitos,
morte, assassinato, culminando num chacina inominável, perpetrada, direta ou
indiretamente, por ele e que, por sua vez, se desdobra em mais e mais abjetas
consequências.
Acho que, de várias
maneiras, “Biutiful” lembra “Coração das trevas”, de Joseph Conrad, e seu
espelho, o filme “Apocalypse now”, de Francis Ford Coppola.
“Coração das trevas” é
o melhor livro de Conrad. Publicado entre o final do século XIX e o começo do
século XX, é uma narrativa, ambientada na África, que denuncia o engodo do
Neocolonialismo europeu. Marlow, o narrador, mergulha nos meandros da selva do
Congo e nas perversões mais profundas do projeto de exploração colonial,
passando do enaltecimento da cruzada civilizatória inglesa para a verificação
dos objetivos meramente econômicos e de dominação imperialista: exploração de
fraquezas, trabalhos forçados, coerção, opressão, massacre, escravidão, desumanização,
ruptura de laços sociais, preconceito... numa narrativa, ao mesmo tempo,
imperialista e anti-imperialista.
“Apocalypse now”, de
1979, transporta esse enredo para a Guerra do Vietnã e troca os interesses
coloniais pela luta pelo poder mundial. Menos sutil, Coppola descortina a vantagem
do dominador e, portanto, a injustiça e a crueldade daquela invasão, que mudou
para sempre nossas relações com as guerras.
Rio acima, as palavras
de um ou as imagens do outro relatam uma cadeia de horrores, enganos,
fraudes... A lentidão do relato é em si uma crueldade contra os leitores ou
espectadores. Busca-se alguém que se degenerou em qualquer coisa, exceto um
homem. Navegar, portanto, é como viajar no tempo e voltar ao selvagem que o ser
humano já foi; é constatar a fragilidade da civilização...
Em “Biutiful”, as
trevas transferem-se da periferia do mundo para o coração da Europa. Sem o rio,
segue-se a trajetória do protagonista pelas ruas de uma cidade europeia –
qualquer uma – onde ainda estão presentes os fantasmas do processo colonial,
até porque eles estão dentro do homem, que os carrega consigo em todos os
tempos e lugares.
Um lugar no fundo da
selva ou os subterrâneos de uma cidade, na verdade, é a própria natureza humana,
e o percurso que se faz é de corajosa prospecção ontológica; daí certa
identificação espelhar: os narradores se identificam com o abominável ou é
possível entender as trevas, que são apenas sugeridas. A selvageria não pertence
apenas aos selvagens, mas a todos. E reside no interior, no porão.
O espectador de “Biutiful”
entende e até perdoa Uxbal, pois reconhece que talvez fizesse o mesmo se fosse
colocado na mesma situação.
Essa complacência
inclui até o fato de que o personagem não segue as orientações de sua mentora,
ou seja, a contemporaneidade é surda aos apelos do espírito. E segue, bruta, na
gratificação sem limites dos desejos individuais e materiais, nas palavras do
próprio Conrad.
Nas três histórias,
porém, há uma narração invisível, quase – encarar tudo isso, de resto, resulta
em autoconhecimento e só se transforma... entende... perdoa... ultrapassa...
vence... sei lá... o que se conhece...
Aquela
última imagem branca de neve e biutiful,
que dá nome ao filme, é como sair da caverna; das sombras; dos porões imundos; do
coração das trevas, não exteriores, como diz a Bíblia, mas interiores; das
prisões da matéria e, enfim, seguir, com os nossos, em direção à paz e ao riso,
deixando para trás essa cilada labiríntica que é a estadia material.