sábado, novembro 14, 2009

Aos nossos alunos - 2

Este ano de 2009 foi particularmente difícil para nós, do ensino médio: ventos sopraram em várias direções. Mas, do mesmo jeito que não há ventos favoráveis para quem não sabe aonde vai, para quem sabe, não há ventos desfavoráveis. E, apesar de tudo, estamos aqui todos confraternizando, ao lado desses meninos que cumpriram mais uma estação da vida.

Sou professora de literatura e fico pensando sobre o porquê de ter sido escolhida, entre tantos grandes professores que eles tiveram oportunidade de ter ao longo deste ano. Nossa sociedade tecnificada e que tanto releva a ciência não explica a escolha; nem a simplificção geral, que está na tendência da autoajuda e das receitas que desconsideram nossas complexidades.

Acho que estou aqui exatamente pelo efeito contrário; pela falta que faz ouvir conteúdos neste tempo de muitas palavras constantes, mas vazias. Ou, por ter, em algum momento, através da literatura, alcançado o coração desses meninos, ajudando-os a compreenderem os percursos de suas vidas.

Erico Verissimo, em seu livro “Solo de clarineta”, diz exatamente isto: que, aos catorze anos, teve de segurar uma lâmpada elétrica para que um médico operasse um paciente. Quando ele cresceu e começou a escrever, o que o animou foi a idéia de que continuava a cumprir o papel importante daquele momento – ele evitava a escuridão.

É claro que se pode pensar que nossos fabulosos meios de comunicação circulam, rapidamente, informações úteis, numerosas e pertinentes. Mas o que se vê é de uma superficialidade irresponsável. A uniformização dos padrões de beleza, de desejo, de consumo e de felicidade ameaça a elaboração de nossas subjetividades e nos arrasta a um materialismo inaceitável. Fomos reduzidos a um corpo tabelado, funcional; fomos submetidos a uma competição de desempenhos sexuais e profissionais; somos dirigidos a comprar o que não precisamos e a conceituar isso como felicidade. Tal lógica cria esta nossa sociedade sem partilha, sem escuta, sem escolhas, sem afetos, sem encontros, sem sujeitos... Tal lógica é uma espécie de perda, de tal monta que enchemos os consultórios de médicos e psicólogos, em busca de quem nos ouça ou nos indique saídas. Estamos seguindo um caminho perigoso quando descartamos o que nos humaniza; o resultado está aí: esta cidade, como tantas outras, só tem muros e armas; mesmo as pontes confirmam os desencontros; há meridianos visíveis e invisíveis, cortando-a e nos afastando, e violências sem paralelo.

Não podemos nos conformar com isso, nem com a falta de utopias que nos movam na direção de um mundo melhor. Mas o que aprendi recentemente é que esse mundo melhor é, necessariamente, consequente de um homem melhor.

Minha geração buscou esse mundo melhor na rota da matéria e da uniformização (que chamávamos de “igualdade”) e foi conivente com o que chamo lógica bipolar, que considera errado um jeito de pensar diferente.

A literatura me deu o privilégio de constatar o engano: nenhuma melhora virá pelo materialismo, nem “igualdade” se consegue pela uniformização. Além disso, não temos o direito de esmagar quem pensa diferente de nós.

O desafio é saber lutar por igualdade (quando a ameaça for a injustiça) e por diferença (quando o perigo for a uniformização) e desenvolver a tolerância para vivermos num mundo multipolar.

Sem a literatura, isso não é possível. Ela é uma ferramenta irrenunciável com a qual lidamos com a ambígua condição de singular e plural que cada um de nós constitui. Somos nós mesmos, a par de humanos. E não entenderemos isso se seguirmos esmagando nossas singularidades. Ou se não conseguirmos enxergar o que há de comum entre nós.

Em outras palavras: não viemos por acaso juntos; estamos aqui não para competir, mas para cuidarmos uns dos outros e somos iguais, apesar de nossas diferenças. Por isso precisamos nos indignar se nossas vantajosas diferenças terminarem por gerar pobreza extrema, fome ou guerras. Ou se não conseguirmos repartir as riquezas e os benefícios que nosso progresso certamente produzirá.

Cada um de vocês é, potencialmente, um vetor para um mundo melhor. Tenho muita esperança de que vocês segurem a lâmpada na escuridão, apesar do horror e da náusea, como disse Erico Verissimo, apesar do medo e da dúvida, eu completo.

A escuridão é propícia à injustiça, à tirania, à indiferença, ao materialismo, à uniformização.

Muitas luzes juntas trarão uma energia nova para consertarmos, refazermos, retomarmos, sem nos cansar. Essa teimosia inexplicável, que responde pela sequência milagrosa de gerações aqui presente, depende de quantos de nós seguraremos lâmpadas, ou velas, ou fósforos, não importa.

Essa luz precisa ser nítida o bastante para que enxerguemos a direção; para que possamos trabalhar e recuperar o que se perdeu; para que prossigamos insistindo em executar a mágica complementar que nos destaca e que faz tudo valer a pena.

Conto com cada um de vocês!