domingo, janeiro 31, 2010

A felicidade

O começo do ano e algumas dificuldades trabalhistas me fizeram pensar na palavra “felicidade”.
Nossa sociedade tem criado, na minha opinião, uma espécie de ditadura da felicidade e da competência: todo mundo deve se mostrar feliz e competente para resolver toda sorte de problema. Somada ao carnaval, essa simplificação diz muito de nossa incapacidade de sermos nós mesmos.
“Ter” e “parecer ter” substituem tudo isso e fazem de nós seres superficiais, infantilizados e infelizes, na verdade.
Sem partilhar nossas impotências, nossos medos, nossas incompetências, estamos virando falsos super-homens e supermulheres, que não caem, não tropeçam, não morrem, não adoecem, não envelhecem, não têm histórias reais.
O resultado não é felicidade; é negação da tristeza, da falha, da falta, elementos que fazem de nós, humanos, o que somos – essa soma de fracassos e colossos.
Na verdade, nossa tristeza é também estruturante e tem a ver com o que somos lá dentro de nós mesmos, com o enfrentamento e a aceitação de nossos fracassos e defeitos, que são a marca primeira do que conseguimos, na história nossa de cada dia, fazer com o que somos, com o que sonhamos, com o que acertamos, com o que erramos, com o que queríamos mas não pôde ser realizado – até porque não podemos tudo, nem sabemos tudo.
E às vezes quedamos, inertes, durante um tempo necessário, imobilizados diante da vida, sem clareza do que fazer, dizer, pensar.
Paciência...
Não penso que ser feliz é executar bem um rol de tarefas urgentes.
Já experimentei felicidade em pequenas doses que me salvaram de grandes desesperos: o nascer do dia, um flamboyant florido, uma fonte de água, a lembrança de um filme, de um livro, de um poema, uma criança, o calor do sol...
De fato, há certas dores que são inevitáveis solidões, não há compaixão que as torne menores.
O psicanalista Giannetti tem uma frase boa: “O caminho do paraíso está pavimentado de fórmulas”. Já ouvi conselhos hilários – arranje um cachorro, compre um carro, tome tal remédio, comece a namorar, contrate uma empregada... – como se minha felicidade estivesse fora de mim e não no "diálogo" e no enfrentamento interno entre o que não abro mão, o que desisto e o que acho que vale a pena insistir, o que sonhei...
Porque só eu sei o que sonhei e do esforço que fiz para não me afastar demais do que sonhei, para não me perder.
Bandeira fala de uma tristeza que sinto – a da vida que podia ter sido e que não foi.
A essa somo outra – a da certeza em certas palavras que se dissolveu, no aprendizado de que todas as palavras têm limites, que são humanos e inescapáveis.
No caminho aprendi que “tolerância”, “inserção”, “igualdade”, “liberdade”, “fraternidade”, “amor” e outras palavras bonitas têm o limite de nossos defeitos, de nossa humanidade, de nossas incompetências e habilidades. E que meu instinto de silenciar e suportar não garantia o conserto das situações.
Aliás, há certas situações que não têm conserto, e o que fazemos de nós depois de sua instalação em nossas vidas também faz de nós o que somos.
Levando a vida com uma dessas situações tatuada na alma, aprendi a reconhecer que posso me sentir melhor porque carrego valores próprios, porque sou incansável buscadora de melhoria nos relacionamentos com as pessoas e porque participo, com tudo isso e com a minha profissão, de um projeto de aperfeiçoamento paulatino e histórico do bem-estar coletivo, já que coloco o melhor de mim nas minhas ações.
O melhor de mim pode não ser suficiente e pode não parecer o certo. Mas é o meu melhor. E isso me consola, me basta, me norteia.
Tudo o que eu disse aqui é descombinado com o que a nossa sociedade atual propala: que não há limites nem hora para o prazer; que não há dor, nem tristeza; que não há solidão, nem problema sem solução; que se pode resolver tudo porque todos podemos ser, igual e ilimitadamente, solucionados, turbinados, felizes, empregados, ricos, acompanhados, bonitos... É só comprar... um livro de autoajuda, um tratamento, uma plástica, uma terapia, um “personal estylist, dancer, boyfriend, girlfriend”... Em inglês, fica tudo mais claro, americanalhado (como diz Alberto Cunha Melo) e apropriado.
A depressão que sobra disso tudo “é a doença de uma sociedade que decidiu ser feliz a todo preço”, como disse o escritor francês Bruckner, numa entrevista à Revista Época que li há muito tempo. E não esqueci.
Ser feliz tem o verbo “ser”, não o “ter”. E ser é um processo difícil de negociação interna e externa. Ao longo de um tempo muito longo, tão longo que, às vezes, não podemos avaliar bem, só Ele. Nossos papéis e missões são visíveis e invisíveis. E, às vezes, tudo isso é muito difícil. Mas vale.