Crônica terceirizada
Há umas duas semanas, Jota me contou uma história e me pediu para, a
partir dela, escrever uma crônica, já que ele estava ocupadíssimo e não tinha
condições de fazê-lo. Eu achei a situação esquisita, mas escritores servem para
escrever e, realmente, eu vivo me metendo em enrascadas de toda sorte e azar, e
cá estou cumprindo a tarefa.
Jota foi meu aluno em 2007. Aliás, quando ele nasceu, um anjo torto,
desses que vivem na sombra, disse: “ − Vai, Jota, ser aluno das Suassuna”.
Antes, ele tinha sido aluno de Debe (a diretora do Departamento de Digitação e
Marketing deste blog) e, a seguir, foi aluno de nossa outra irmã professora,
Lívia. A essa altura, coitado, sobrevive, aos trancos, a essas experiências.
O caso se deu, quando ele vinha de sua casa, em direção à minha, pois eu
queria conversar sobre a possibilidade de ele trabalhar ao meu lado, corrigindo
redações de alunos.
Ele pegou o ônibus e pôs fones de ouvido; tinha resolvido que, durante o
trajeto, não ia se importar com o que estava em redor, para descansar dessas
coisas difíceis que são nossas relações interpessoais.
No meio da viagem, apesar dos fones, ele percebeu um barulho, ou viu uma
movimentação, não sei ao certo: era um homem que carregava uma caixa de papelão
cheia de morangos e que cantava uma música triste sobre amores partidos. Jota
julgou o cantor ruim, a música péssima e desligou-se de novo, com o auxílio de
seus fones, daquele mundo desconexo que o cercava.
Mas, numa parada qualquer daquela travessia, viu, de relance, de novo, o
homem, que tinha descido do ônibus com seus morangos e, desconsolado, chorava a
cântaros...
Jota chegou a minha casa, desmoronado de dó, e exclamou:
− Ele vendia morangos!
Como pôde, referia-se a uma história que sabemos, juntos – a de um homem
que, correndo de uns leões, caiu numa vala funda, cheia de cobras; agarrado às
raízes da parede, entre perigos tão mortais, descobriu um pé de morangos e
deliciou-se com eles. Quem nos contou essa história, comparou a situação toda
com a vida: é que precisamos aprender a aproveitar prendas boas e pequenas que
aparecem ao longo do percurso sempre difícil de nossa estada material.
− Que faço com isso, Flávia? – ele completou, bem tristinho.
− Faça uma crônica, respondi.
− E ela vai melhorar em que a vida daquele homem?
Com dificuldade, disse a Jota que, se ele fosse um psicólogo, um
psicanalista, um psiquiatra, um artista plástico, um fotógrafo, um jornalista,
um assistente social, um médico, um engenheiro, um padre... sei lá... haveria
para cada profissão um jeito de agir na situação: esse homem podia ser
escutado, assistido, medicado, noticiado, pintado, esculpido, abrigado... Nós,
de letras, que função cumpriríamos? A de relatar, num texto que poucos leem, a
cena, através de nossas emoções.
É certo que trazemos para o cotidiano alienante e alienado das grandes
cidades um tico de beleza, e esse tico, junto com outro tico, vai tocando uma
pessoa. Depois outra. Depois outra... E o mundo, de tico em tico, vai ficando
mais suave e suportável... vai ficando melhorzinho, porque, de raro em raro, a
gente consegue se tocar e tocar os outros com nossa presença, nossa palavra...
Na verdade, não sei por que alguns de nós vêm com o talento de
transformar esse material baleado que é nossa linguagem num texto bonito que,
de tão bonito, não serve para nada, mas serve para a gente levar a vida, mesmo
exausta, tentando ver um sentido nesses fatos perdidos que nos atropelam pela
rua.
As palavras, que são nosso tijolo, nosso cimento, nossa tinta, nosso
mármore... são nosso jeito de ser, estar, ver, agir... E elas são como lupas,
lâmpadas... A gente vê de novo, trinovo, melhor, noutra perspectiva... E, nessa
trança de sentires, olhares, falares, vamos nos sentindo mais próximos – questão
de milímetros, não importa −, mais compreendentes, compreensivos, porque cada
palavra dita, ouvida, escrita, lida aumenta nossa potência contra a Torre de
Babel que nos espreita nas esquinas de nossas labirínticas cidades e que nos
ataca, se baixarmos a guarda.
Estou, portanto, aqui nesta crônica, registrando que um jovem bonito,
que foi meu aluno, condoeu-se de um vendedor de morangos muito triste, num
ônibus qualquer, na cidade do Recife. E que esse episódio tão insólito e
despretensioso, terceirizado, me serviu para pensar na minha própria
utilidade...
Minha utilidade não é muita, é só um tico de utilidade. Mas ela existe.
Pelejei duas semanas com esses tijolos e esse cimento tentando contar essa
história, nem sei direito para quê, mas o texto está ficando pronto...
Vou transformá-lo numa prece em intenção daquele homem, para que ele
consiga atravessar a noite e compreender a aurora; para que ele venda seus
morangos e sobreviva, apesar das quedas e das lágrimas; para que ele mantenha
seu desejo e acerte um novo amor; para que ele encontre assistência nesta
cidade hostil... E, em intenção de Jota, para que ele continue, do seu jeito
transitivo indireto, não faz mal, tentando criar abrigos, pertencimentos,
compreensões, sentidos... morangos, neste labirinto.