quarta-feira, setembro 20, 2017

Ariano Suassuna vive!

Depois que acabei de falar sobre a poesia de Ariano Suassuna na Academia Pernambucana de Letras, em agosto passado, aproximou-se de mim uma figura de cara confiável de que gostei de imediato e que me fez a proposta, quase indecente a esta altura do ano, por causa da demanda de atividades de professora de cursos preparatórios para o vestibular em que trabalho, de ir a Limoeiro, dar uma palestra sobre o autor. Eu lhe disse que iria, claro, mas pensei que a história se perderia no meio do caminho e que o convite terminaria dando chabu. Não foi o que aconteceu: algumas semanas depois, Fábio André de Andrade Silva, limoeirense da gema, me liga, se apresenta de novo mais formalmente, com a delicadeza que me parece ser sua mais forte característica e me esclarece que tudo já estava arrumado para a minha ida àquela cidade.
        Nem sei direito como ele conseguiu, nestes tempos brabos, viabilizar minha viagem: acho que ela foi uma junção de ajudas, e o que entendi depois foi que meu novo amigo fez das tripas coração e, assim coraçãomente, como diz João Guimarães Rosa, terminou por concretizá-la. Não sei como foi, só sei que foi assim. Declaro a quem interessar possa que Fábio, inclusive, cuidou para que viesse, num carro da Secretaria de Educação, um motorista em especial que tinha trabalhado com meu primo Sérgio, filho de tio Saulo.  Ambos já partiram, mas foram revisitados, na ocasião do trajeto, nas suas histórias e jeitos de ser.
       Assim que cheguei, visitei o simpático prédio da GRE (acho que a acolhida do pessoal foi que me deu a sensação boa e fresca que senti) e, em seguida, fui entrevistada na Rádio Jornal Limoeiro e na Rádio Cultural FM. Daí fomos ao Galpão das Artes, o primeiro presente que Fábio e seus amigos me deram nesse fim de semana especial que tive o privilégio de ter: um lugar lindo, que abriga um palco, onde estava exposto o figurino de uma peça teatral; uma espécie de museu de brinquedos populares de madeira e outros materiais; e até uma galeria de artes plásticas, com quadros que, perfeitamente, combinavam com o ambiente. Tudo estava tão fiel às ideias defendidas por meu tio Ariano Suassuna, que tive vontade de me ajoelhar ali mesmo, diante daquele altar que o reverenciava de modo tão perfeito, para agradecer a compreensão pertinente e a abertura que o grupo tinha tido para o seu universo conceitual e simbólico. Não o fiz, é verdade, mas o que senti deve ter sido percebido – fiquei tão emocionada que Fábio teve que me ajudar a subir no palco, porque eu quis ver de perto os detalhes das roupas expostas, enquanto ele me contava que tudo aquilo tinha sido confeccionado com material doado numa campanha que arrecadara mantas, fuxicos e colchas de retalhos, tudo usado, mas em bom estado, e tinha, digamos assim, sido reciclado e ressignificado naquele deslumbrante e assombroso guarda-roupa que estava ali exposto.
        Senti, de forma tão forte, a presença do meu tio querido em tudo aquilo, que não tenho palavras para agradecer ao grupo, nem para descrever a diversidade de sentimentos que me povoaram. Não é todo dia que a gente vê sentido na vida: vi naquele lugar e, principalmente, nas pessoas que o formam (que um lugar não é nada sem pessoas) uma extensão das ações e das ideias de Ariano. E ali mesmo o imaginei descansado de sua luta, olhando lá de cima aquilo tudo através dos meus olhos, satisfeito com o resultado que se mostrava devagar.
         Depois do almoço começamos a executar a primeira parte do nosso programa central que consistiu na tal palestra que ministrei. Confesso que fiquei com vergonha da apresentação que tinha preparado, porque todos ali pareciam entender Ariano tanto quanto eu. Depois da palestra, fui compreendendo, aos poucos, o que, de verdade, fui fazer ali: lembrar a eles que “difícil” não significa “impossível” e que há um sentido bonito na luta que eles travam para fazer o que fazem.
         À noite tive o privilégio de ver o ensaio geral do primeiro ato – o grupo costuma encenar um ato de cada vez – da peça “A farsa da boa preguiça”, de Ariano Suassuna, com a direção de Charlon de Oliveira Cabral. Na frente de uma igrejinha linda, com bandeirinhas e tudo, num perfeito cenário interiorano que estava de novo a cara de Ariano, pude testemunhar o trabalho sério, o esforço desprendido e adivinhar os cansativos ensaios e os desânimos e as motivações que tinham levado todos nós até aquele pátio, onde se descortinou de novo para mim o sonho de Ariano de realizar um teatro entre erudito e popular, que pudesse dar emoção e riso a pessoas desprovidas de renda e de acesso à cultura e que, enfim, teriam sua festa na vida difícil que vivem. Não sou crítica de teatro, mas acho que posso destacar o trabalho de corpo; a movimentação dos atores, apesar de não haver o palco, que os limitaria melhor; a prontidão das respostas engraçadíssimas às intervenções da plateia que todo teatro de rua exige; a coragem necessária para um trabalho assim tão distante daquele a que a maioria das pessoas está acostumada... Ri tanto que alguém chegou a perguntar se eu tinha sido paga para tal, a fim de puxar o riso da plateia. Na verdade, eu estava feliz de ver como meu tio está vivo naquelas pessoas...
       Portanto, eu queria agradecer a todas elas: por fazerem de suas vidas um laboratório de ressurreição de Ariano e por permanecerem firmes, apesar das dificuldades, ofertando àquelas pessoas não só lazer, mas também cultura. Lá de cima, ao lado de Compadecida, Ariano deve estar feliz e satisfeito. Ele manda dizer que esses tempos de trevas passarão, e que nós estamos no caminho certo.