domingo, outubro 20, 2019

O DIREITO À LITERATURA (III)


              O cimento que cola os direitos humanos e a literatura é o reconhecimento de que aquilo que é indispensável para mim é também indispensável para o outro. De cabo a rabo. Ou seja: se Tolstoy é importante para mim, devo colocá-lo numa cesta básica de bens à qual todos teriam, sem exceção, acesso, inclusive os femininos e os etcétera que estão no masculino plural, de acordo com as regras da língua portuguesa. Pois segurança alimentar está, sim, ligada com integridade espiritual. Negar a primeira, neste tempo em que temos condições técnicas e materiais de garantir alimentos a todos, é estapafúrdio. E negar a segunda, neste tempo em que dispomos de meios de comunicação tão eficientes e baratos, é uma mutilação.
            E o que têm os atuais meios de comunicação a ver com nossa integridade espiritual? Tudo: eles poderiam viabilizar a circulação tanto das ideias dos dominantes quanto dos dominados e, portanto, o tal “equilíbrio de ideias” proposto pelo escritor nigeriano Chinua Achebe, já que quase todos têm um celular com que são produtores de conteúdo e com que opinam sobre conteúdos enviados nas redes sociais. Por conseguinte, “direitos espirituais” − como liberdade individual de crença, de escolha, de orientação e de expressão; acesso à arte, à cultura, à informação e ao lazer – seriam expandidos e partilhados... E poderíamos, assim, nos desenvolver mais equitativamente também do ponto de vista psíquico e espiritual, até porque essa circulação plural terminaria por construir mais compreensão e, por conseguinte, mais tolerância. 
Acontece que nada disso está ocorrendo: nesses meios de comunicação, continuamos sectários, intolerantes e violentos. Na contramão de nosso século XXI, tempo que permite a pluralidade, talvez a mais verdadeira identidade dos seres humanos. 
Está em curso, na verdade, uma espécie de hipocrisia: a maioria das pessoas (aí incluídos políticos, empresários e donos de meios de comunicação) concorda com a ideia de que deveríamos dividir melhor todos os nossos bens; não se regozija, nem acha subterfúgios religiosos, como já aconteceu, para brutais desigualdades, mas, efetivamente, não se esforça para que haja mudanças. Talvez porque não saibamos ainda o que fazer para seguir em frente num caminho novo? Enquanto não sabemos, viramos estátuas raivosas, porque brigar é o verbo mais fácil. 
Além do mais, podemos todos falar na internet, mas não com as palavras que escolhemos sozinhos ou num consenso social – somente com as que foram escolhidas ninguém sabe por quem. São sempre frases na voz passiva, sem os agentes da passiva. Dentro de bolhas algorítmicas: as redes sociais reforçam a tendência comum de buscar informações e argumentações que se alinhem às nossas opiniões, comportamento que, provavelmente, cria uma sensação de pertencimento a grupos identitários. Mas dificulta o achamento de estratégias de tolerância.
Inventou-se um vocabulário asséptico com que todos devem falar... No entanto, essa língua é como usar uma roupa alheia com que não nos sentimos bem... Com que nunca nos acostumaremos, porque não fomos feitos para ela e por ela e com ela... Os “proprietários” dessa língua não só interrompem, boicotam e impedem o fluxo idiossincrático da verdadeira expressão (a palavra “idioma” tem o prefixo “idio” que significa “próprio”), mas também cristalizam e mumificam as palavras e as expressões, dificultando a relação particular que cada um de nós tem com uma palavra e não com outra, com uma expressão e não com outra... E empobrecendo as buscas, as metáforas, as nuances, as ironias, as brechas, a imaginação... Perder tudo isso é como perder delicadezas e riquezas e sentidos... Tanto apego ao literal... E nada faz sentido... 
Os recursos de expressão e nossas escolhas vocabulares e sintáticas não são aleatórios, são reflexo de nossa subjetividade. Escolha, liberdade, erro, acerto, conserto, busca, consenso... É tudo isso junto que cria um idioma de verdade e o renova, alargando as apreensões, de acordo com Wittgenstein. Porque se precisamos de novos caminhos, precisamos de novas palavras. Palavras “fatigadas de informar” (como diz Manuel de Barros) e de brigar não inventarão um futuro melhor que é o que no fundo desejamos: “um futuro que fale a nossa língua”, como diz Mia Couto.
O absolutismo linguístico e mesmo ético e ideológico decorrente desse vocabulário detento é de uma pobreza lamentável. Há poucos dias uma aluna veio conversar comigo sobre se deveria haver limites no humor. E acrescentou:
− Uma pessoa que faz humor com negros é racista, e quem ri também...
− Então, no “Auto da Compadecida”, a cena de João Grilo dizendo que Deus é muito queimado revela o racismo de Ariano Suassuna e, quando nós rimos, revelamos nosso racismo enrustido? É isso? – eu perguntei.
− Não, ela respondeu com uma expressão surpresa...  
O direito à literatura está no meio de toda essa discussão. Na literatura, as palavras andam soltas da prisão do dicionário, e aí podemos brincar na rua com elas de esconde-esconde, de Academia, de seguir o mestre, de inventar línguas, de pular, de passar o anel, de cantar, de telefonar sem fio, de rimar, de contar sílabas, de cruzá-las, de caçá-las... E de crescer com elas, nelas, por elas... Como sujeitos e como proprietários de um idioma que é nosso e de muitos e cujo uso nos faz seres exclusivos e sociais ao mesmo tempo.