domingo, outubro 15, 2017

AMOR

Gosto muito de palavras e tenho uma especial curiosidade sobre elas. Um amigo que sabe disso me provocou, perguntando-me a diferença entre as palavras “amor” e “amizade”. Eu não acertei a responder de imediato; passei um tempo pensando e, em seguida, comecei a ler e a fazer perguntas a mim mesma ou a outras pessoas... Quando começo a fazer isso, as palavras sobre as quais estou pensando começam a revelar os seus ladinhos, como um diamante, e a minha relação com elas muda totalmente... E elas ficam minhas de um jeito bem particular... De início, conforme já disse por aí, procuro-as nos dicionários, mas isso nem sempre traz resultados satisfatórios: neles as palavras estão meio mortas, fora de contexto, não têm a beleza de pertencerem a alguém ou de serem colocadas em lugares inusitados e criativos, certas pessoas têm essa habilidade...
Pois bem, em português a palavra AMOR tem uns quatro ou cinco significados, de acordo com o meu Houaiss; confesso que não acertei direito a contá-los: o de ser um sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem; um sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro, ou a uma causa; ou uma inclinação ditada por laços de família; ou mesmo pelo sexo; um apego profundo a valor, coisa, ou animal; ou uma devoção extrema ou o objeto mesmo do amor. Se não acertei nem a contar os significados, vê-se que não apreciei o resultado da pesquisa. Aí fui lá nas raízes antigas de nossa língua e terminei por achar algumas palavras que me ajudaram a arrumar melhor as compreensões.
A primeira palavra que achei foi PHILAUTIA, o amor que sentimos por nós mesmos, isto é, a autoestima. Esse amor corre o risco de aparecer de forma falsa, traduzida em arrogância e narcisismo, temperados com gosto pelo dinheiro, pela fama e pelo poder. Em contraste a essa postura, entretanto, uma saudável aplicação desse amor resulta em compromisso de cuidar de nós mesmos e, por conseguinte, dos outros. Parece que todos os outros amores resultam desse, pois só é capaz de amar aquele que se ama. E aquele que sabe que o amor é a favor de todos os envolvidos.
A segunda palavra é STORGE, que é o amor demarcado, como diz João Guimarães Rosa, entre irmãos ou parentes: nós não os escolhemos... Por algum propósito invisível, eles vieram ao mundo para dividir conosco muitas espécies de espaços. Viver esse amor é aprender a dor de tudo repartido. Pior: tudo importante repartido. Esse amor pode ser bem difícil, pois essa partilha obrigatória exige reciprocidade, disciplina e grande esforço de compreensão e de perdão. Em contrapartida, se exitoso, esse amor pode ser um de nossos últimos abrigos: todos conhecem irmãos que se tornaram grandes amigos na última parte da vida. Essa forma de amor pode não ser entre iguais, conforme o caso de pais que amam seus filhos de tal forma que sacrificam por eles a comodidade de uma vida inteira. Dizem as más línguas que é por causa desse amor que existem psicólogos e psiquiatras, mas eu discordo. Na verdade, somos um todo indivisível e, quando erramos num amor, tendemos a errar nos outros, isto é, se não acertamos a exercer o amor STORGE, temos grande chance de errar no EROS, por exemplo, cometendo o mesmo erro. O problema é que não conseguimos enxergar e seguimos levando a vida de embolada, como dizia a minha avó...
ÁGAPE é o amor com que Deus nos ama e com que devemos tentar amar o próximo. Acredito que amamos o distante ou o diferente com a palavra “tolerância”, que não está muito presente aqui. As palavras com que se pode temperar este amor chamado ÁGAPE são “aceitação” e “incondicionalidade”. É um amor que não espera nada em troca e com o qual podemos amar até nossos inimigos. Ele também traduz o sentimento desprendido e abstrato de algumas pessoas pela humanidade, pelo planeta, ou pelo universo. Talvez seja esse o amor que algumas pessoas têm pelos animais.
A quarta palavra é PHILOS, que é o amor escolhido dos amigos. Acho que ninguém optaria por viver sem eles, já que somos seres sociais. Pode ser mais fácil do que o STORGE, se bem que cada amor apresenta certo grau de dificuldade, pois amar é um desafio, às vezes, desconcertante. O PHILOS é a forma de amor menos natural, já que nela não existem laços de sangue, nem de desejo; é também o amor da troca, pois acontece entre iguais. Costumamos mais traduzi-la com o verbo “gostar”.
A quinta palavra é PRAGMA, que é um amor com que pretendemos alcançar um bem maior: nele o romance e a atração ficam secundarizados, evidentemente sem serem anulados, em favor de metas compartilhadas. Esse tipo de sentimento aparece em casais que se formaram a partir de matrimônios arranjados, ainda comuns em algumas partes do mundo; ou inspira outros a manterem o relacionamento por causa dos filhos ou da concretização do conceito de família funcional ou estruturante, aprendido por capilaridade social ou familiar; ou é um ponto de chegada evolutivo de relações que começam por motivos que não são suficientes para conservá-las por muito tempo. O segredo desse amor é a dose de sexualidade com que se consegue temperar a relação para não deixá-la vulnerável ao ataque do vendado Eros, deus mitológico que atira aleatoriamente e costuma acertar algumas flechas nos mais desavisados pragmáticos. Algumas de nossas disfunções familiares acontecem em virtude da quebra desse verdadeiro pacto, a qual tem feito rios de lágrimas ao longo de nossa história; ou da incapacidade de alguns de permanecerem no patamar desse amor que se apoia em altruísmo e não em exigência.
Por fim, alguns textos referem uma diferença entre as palavras LUDUS e EROS. LUDUS seria o oposto de PRAGMA, embora possa crescer para outras formas, à medida que o tempo passe e as circunstâncias mudem; a forma LUDUS de amor é definida como brincadeira, alegria e falta de compromisso, como no caso de amigos que fazem sexo; dizem os entendidos que, com o tempo, ela tende a desaparecer ou a se transformar em PHILIA ou EROS. Por sua vez, o amor EROS não é um amor de troca, principalmente, uma vez que tem certo apelo ou expectativa de satisfação pessoal. Ainda que possa incluir sentimentos verdadeiros pelo outro, EROS é mais um amor próprio do que altruísta. Liga-se à atração física e ao sexo e é dele que falamos quando dizemos as palavras “amor” e “paixão”. Apesar de perigosíssimo, nós o perseguimos e, quando o encontramos, somos totalmente dirigidos e dominados por ele, que nos tira de tempo e de lógica. É por causa desse amor que cometemos os crimes passionais e nos metemos nas maiores encrencas; esse tipo de amor, na maioria das vezes, tem prazo de validade de poucos anos, pois esgota os amantes, que se sentem, com o tempo, asfixiados e isolados do convívio social do qual terminam por sentir falta. Alguns de nós só conseguem viver o amor, se sentirem “esse” amor, e seguem trocando de parceiros vida afora, sem conseguir estabilidade emocional, sempre dentro do turbilhão destrutivo de sentimentos que só EROS é capaz de trazer. Manuel Bandeira tem um poema muito bonito chamado “Arte de amar”, no qual afirma que, caso se queira sentir a felicidade de amar, tem-se que esquecer a alma, a qual só encontra satisfação em Deus ou fora do mundo, além de ser incomunicável. Finaliza asseverando que só os corpos se entendem. Seu raciocínio leva a crer que, diferentemente do acima constatado, EROS é um tipo de relacionamento que leva à compreensão e à paz, as quais, de fato, não são atingíveis quando tão grandes e exigentes doses de autossatisfação são entremeadas – é claro que as crescentes demandas de gozo e satisfação exaurem os amantes, depois de, muitas vezes, os terem levado a ações questionáveis, como brigar, agredir, matar, mentir, trair, cobrar, abandonar filhos, as quais, na sua vigência, parecem apenas apimentar a relação, mas, na verdade, ferem e ameaçam a felicidade possível de muita gente.
Na minha opinião, transitamos o tempo todo entre esses amores e os intercambiamos. Às vezes, nossa autoestima está baixa, às vezes alta; de vez em quando, passamos por crises no STORGE que duram muitos anos, mas conseguimos reverter; ao longo de um relacionamento amoroso, o amor EROS ou o PRAGMA dirigem nossas ações; temos períodos em que buscamos mais ou menos a companhia de nossos amigos; encaramos o sexo de forma mais ou menos lúdica... Entretanto uma coisa precisamos entender: o amor, seja ele qual for, não nos traz só felicidade. Drummond, num poema lindo chamado “Campo de flores”, refere-se às duas mãos do amor − uma que acaricia, outra que carrega o “grão de angústias”... E, às vezes, nem acho que é só um grão, é sofrimento grande e difícil... O amor, embora tanto o queiramos e o liguemos à nossa felicidade, é difícil, exige tolerância, ação e diálogo, machuca, confronta quereres e, o pior: cursa imprevisivelmente, porque é um componente da vida que, diferentemente da navegação, é imprecisa, como bem o disse Fernando Pessoa (revendo com cuidado essa colocação, percebo que, mesmo a navegação inclui desastres assombrosos, já estou na dúvida se o poeta foi tão feliz assim na sua metáfora).
Estou pensando agora que, no contexto de nossas relações amorosas, feliz ou infelizmente, não sei ao certo, esgotamos experiências num patamar da nossa existência e, para continuarmos nos desenvolvendo, precisamos ir adiante... Mas com o nosso parceiro ou parceira não acontece a mesma coisa... Nessa situação, que pode incluir separações conjugais, antigamente, precisávamos armar as maiores hipocrisias sociais, por dependência econômica, impossibilidade de novos formatos conjugais, questões jurídicas... Hoje nada disso é impedimento para um número cada vez maior de pessoas: independentemente da idade – já que usufruímos de uma maior expectativa de vida –, nos separamos, recasamos ou não, moramos em casas diferentes, armamos relacionamentos abertos, homoafetivos e mais coisas além, inventamos “harmonias bonitas e possíveis sem juízo final”, como diz Caetano Veloso, e continuamos a fazer História que, no fundo, são cisões comportamentais e cognitivas adaptativas. É claro que entre nós sempre há e haverá níveis maiores ou menores de adesão ao acervo de tradições e formatos históricos mais conservadores; entretanto verifico que nunca vivemos, como espécie, numa sociedade tão plástica e tão acolhedora de novos arranjos matrimoniais, embora eu não possa deixar de verificar as violências ainda existentes, em virtude das ambiguidades e dificuldades inescapáveis à nossa condição humana.
O que não podemos é desistir da utopia de nos relacionar a dois com afeto. Não sei direito o que significa essa palavra (de novo o dicionário não ajudou). Mas desconfio de que posso, inclusive, fixar neste texto um significado: estou usando-a num sentido próximo de “generosidade” e “esforço”. A experiência de doação/posse irrestrita e íntima, decorrente de um processo de desnudamento muito além do corpo, é das mais comoventes entre nós. Reduzi-la a um embate apenas material é perder de vista aquilo que há em nós de possibilidade de acolhimento profundo do outro. Não quero encobrir o vigor inegável com que se dá esse encontro, que, inclusive, é uma das realizações mais bem acabadas das incongruências em que nos movemos. Nem idealizar nossas relações tão cheias de defeitos. Quero contemplar nossas complexidades e nossas fomes e sedes, que não são apenas de alimento e água: também carecemos de ser psiquicamente acolhidos, e isso não é possível quando apenas a biologia é considerada. Esse algo além do corpo, que é nosso tutano primeiro, implora por gestos e permissões inventados, dialogados e compartilhados “parmente”, o que termina por gerar em cada dois uma gramática relacional única e bonita.
A história de que “sexo” e “amor” são duas palavras separadas, não tem lógica; pode até ser mais simples pensar assim ou pode ser um jeito de garantir satisfação sexual num tempo hedonista em que se confunde desejo com direito. Mas não acho que simplificações estão trazendo felicidade, só liberdade – e uma sem a outra, pelo menos para mim, não é suficiente. Também não acho que ser feliz a dois independe, por completo, das narrativas sociais, pois o amor, o afeto e outras “palavras” que usei aqui são também uma construção grupal. Enfim, não acredito na felicidade de um casal alcançada com traição e mentiras: o afeto é um rio de água limpa, e a generosidade não pode existir entre dois se não estiver presente entre muitos; conforme já disse, não acredito que uma pessoa seja generosa em apenas uma das esferas de sua vida, já que não somos seres com gavetas comportamentais.
Amar a dois é difícil: por ser o amor uma construção histórica e, portanto, mudar de sentido; por envolver pessoas cujas funções, papéis e ontologias são também mutantes; por exigir o melhor de nós; por obrigar a alteridade; por atuarmos num palco ambíguo e contaminado por nossos defeitos; por estarmos lidando com novos conceitos de “feminino” e “masculino”, por sentirmos tudo isso como ameaças a que devemos reagir; por vivermos num tempo em que alimentamos demais os interesses pessoais... Em contrapartida, em nome do amor, criamos descendência; riquezas; valores; sentidos; identificações; novos desejos, trajetos e compreensões... Infelizmente, cada repressão suplantada revela tantas outras dificuldades... Esse acervo de erros e acertos está guardado nas nossas palavras: poemas, narrativas, depoimentos, roteiros de filmes e peças teatrais preservam nossos êxitos, decepções, lágrimas, expectativas, medos, sonhos...
Então: partindo do poeta argentino Fernando Birri, finalizo dizendo que a palavra “afeto” agora é minha utopia: ela está lá no horizonte... Quando dou dois passos na sua direção, ela se afasta dois passos; quando dou dez passos, ela se distancia dez passos... Caso me perguntem para que raios serve tudo isso, eu explicarei: a palavra “afeto”– a que agreguei os mais delicados gestos e os mais exclusivos desejos – é uma bússola que me ajuda a seguir...