domingo, maio 27, 2007

Chá de rolha - 7

Outro planeta - para Marcelo Perez
Estou me tornando uma coisa que nunca fui – uma pessoa apressada, que não tem tempo de ruminar o dia para aprender com ele. Não sei se sou uma pessoa nova que por hora estranho ou se minha vida ganhou contornos novos que ainda não reconheço.
Pode a gente pensar que acontece coisa demais de uma só vez? Ou não? Acontece o mesmo número de episódios de sempre? Ou a modernidade aumentou o número de eventos? Faz parte de ser moderno não ter tempo de contar, não poder contar, ser impossível ordenar, compreender?
A velocidade do mundo parece que aumentou e fico imaginando se ele dá mais voltas em torno do seu eixo. Acho que não. A gente é que está dando voltas demais...
Sexta-feira foi demais. Talvez esteja escrevendo essa crônica para ir sedimentando meu dia dentro de mim, com seus inúmeros episódios sem seqüência lógica.
Acordei tendo de trabalhar para o plano de saúde. Um amigo fez o favor de ir duas vezes à Imbiribeira e meu médico ainda precisa assinar um papel e eu anexar a esse papel uma xerox do resultado da biópsia. Fui levar o papel ao consultório do médico. A cabeça já começou a funcionar: que absurdo que esse médico ainda não tenha recebido o pagamento, não sei bem o que pensar, problema dele(?), problema meu(?) etc. Fui com minha irmã Débora, que ia dar aula na Madalena. Do colégio onde ela trabalha fui a pé ao consultório, voltei, fiquei esperando que ela terminasse. Bernardo veio conosco.
Todo ano acontece uma coisa assim: Deus atira pérolas em mim e vêm uns meninos lindos mesmo para eu adotar. Bernardo é um deles. Ele tem um sapato todo descombinado do mundo, mas é a cara dele, e escreve poesias. Um sapato daqueles só podia anunciar assuntos de outro mundo mesmo.
Dei boas risadas outro dia com Bernardo me contando uma paixão a distância que sofreu por uma bailarina que lhe deixou seqüelas graves: anda olhando os pés de todas as mulheres do Recife para ver se a encontra. Na sua cabeça, provavelmente, os pés da garota carregam calos e, um dia, terminará por encontrá-la.
Pois bem, depois de deixarmos Bernardo perto de casa, seguimos para o que Débora chama de “tarefa bancária”. Ela ainda me perguntou se eu preferia não acompanhá-la, mas não sou mulher de abandonar uma irmã na porta de um banco de jeito nenhum. Além do mais, ela tinha acrescentado: “É a minha metáfora contra os excessos do capitalismo”. Fiquei curiosa.
Essa tarefa de Debe, na verdade, é uma maratona que tem de durar vinte minutos por cima de pau e de pedra! Eu nunca tinha ido com ela... Só contando devagar para entender e para fazer entender.
Ela pega um papel na casa de papai e vai à “Caixa” do Shopping Plaza. Até aí, ela funciona na sua velocidade normal. Quando ela entra no estacionamento, começa a corrida, uma espécie de maratona semanal contra os abusos do capitalismo selvagem: ela estaciona o carro e corre para fazer tudo antes de os vinte minutos mínimos se esgotarem, para não ter que pagar os três reais descabidos da taxa.
Eu, na verdade, não devia ter ido, pois shopping-centers não são o meu forte. Vou deixar de eufemismos: eu me perco toda dentro de um – me perco na geografia física, na psicológica, na ontológica, em quantas houver, me perco. Sou incapaz de saber em que andar estou; quando entro numa loja e saio, fico sem saber se tenho que pegar à esquerda ou à direita; sinto que estou num labirinto; temo um minotauro; não sei se tenho que subir ou descer no elevador; o elevador de vidro me parece mais perigoso; tenho que usar elevadores e corredores por causa da cadeira de rodas de meu filho (aliás, ir sem ele é sempre pior, pois, abrindo e fechando as mãos, ele indica, como um pisca-pisca, onde devo dobrar); um frio danado; um bando de gente peripatética; um corre-corre lacuxia, que é de noite, que é de dia; sim, a gente fica sem saber se é de noite ou se é de dia... Vixe! Quanta coisa pra vender, quanta gente pra comprar... essas coisas...
Voltando... Paramos o carro e saímos correndo, tomamos um elevador, passamos por uma passarela esquisita que ofendeu o labirinto de minha irmã Lívia, eu lembrei, a coitada quase cai com uma espécie de barulho que essa passarela tem, eu acho mesmo que é capaz de ser coisa do demo que, de acordo com João Guimarães Rosa, ao contrário de Deus, silencioso, faz uns barulhos medonhos, nessas encruzilhadas do capitalismo.
Aí não agüentei:
– Mulher, tu sabe voltar pro carro, que esse caminho tá muito comprido, tou vendo a hora a gente se perder...
Debe fez um ar de riso e afirmou, pedagógica:
– É que não havia vaga no andar da passarela, aí tivemos que descer, subir e descer, entendeu?
Eu disse que sim, mas resolvi que ia ficar bem perto dela e não ia perdê-la de vista, porque, se a perdesse, mais nunca ia acertar a voltar pra casa.
Quem vê assim, pensa que ela não se perde comigo, que aquele lugar de outra galáxia ela também não entende, se é que há alguém que o faça. Mas essa trajetória mínima ela conhece, é sua vingança, seu jeito de vencer o que a vence e a todos nós (às vezes, é preciso ser realista)!
Minhas pernas curtas foram heróicas acompanhando as longas pernas de Debe, e lá fomos nós. Imagino se algum aluno nos viu no percurso, todos eles nos acham doidas varridas e espanadas, há até uma comunidade lá neles onde se pode votar em qual de nós duas é a pior.
Quando chegamos ao banco, encontrei Paulo Gustavo e, verso vem, verso vai, me esqueci de Debe, dei boas gargalhadas, e Debe, com um olho na missa e outro no padre, nem sei como ela conseguiu fazer tudo a contento – é que ela tem que acessar a conta várias vezes, de quarenta em quarenta reais, se não, vem uma nota de cinqüenta ou cem, e ninguém quer trocar.
E lá vem o furacão, eu ainda disse a Paulo:
– Adeus, temos que correr, pra não pagar o estacionamento!
E saímos as duas, vislumbrei uma estátua imensa na escada, perguntei a Debe como se sobe numa escada com uma estátua nos batentes, não deu tempo de responder; de raspão, parece que havia uma exposição, corrida, elevador, passarela... Aí vi uma coisa surrealista mesmo – um depósito de lixo, daqueles com um cinzeiro inox em cima de um tubo com um buraco para colocar papel, disfarçado(?) com uma planta artificial.
Aí eu disse assim:
– Debe, peraí que isso está demais, é coisa demais pra gente passar correndo sem entender. Você está vendo isso? – e apontei o troço.
– Estou, ela disse.
– Ainda bem, acrescentei, que já estava com medo de estar delirando. Que diabo de lugar esquisito, uma terra-do-nunca, com tudo disfarçado de outra coisa, escuro disfarçado de claro, gritos calados, todo mundo bem, ninguém briga nesse lugar, só quem corre é a gente, todo mundo feliz, cadê a falta de dinheiro?... Só me lembro de Milan Kundera, que dizia pra gente não esquecer que corre um rio de bosta por baixo das joalherias e dos teatros, e agora acrescento dos shopping-centers também, que todo mundo nesse lugar vira uma coisa que não é, é melhor correr mesmo, à la Edward Munch, gritando...
– Ainda faltam quatro minutos, disse a moça do caixa.
E continuamos em disparada, entramos num elevador que, em vez de subir, desceu... Ai, que agonia! Não vai dar tempo... Corremos para o carro, sentamos, fizemos uma última corrida espiralada, enfiamos o papel na máquina e ela nos diz... que ganhamos outra batalha da guerra contra a tirania capitalista e materialista da qual discordamos com todas as nossas células. Ela mesma, a máquina, que também é vencida, nos anuncia nosso triunfo! Só então, vemos a claridade do meio-dia e colocamos o cinto de segurança, no nosso ritmo, felizes, calmas... caminhando contra o vento... o rio de bosta à nossa frente confirmando nossa vitória.
É assim: quem vem a pé de Woodstock, passando pela América Latina, chega atrasado ao século XXI, e não há o que fazer, a não ser constatar ser de outro planeta.

segunda-feira, maio 07, 2007

Planeta Animal

Já é de praxe, quando se fala na atividade do professor, partir da frase sabida de João Guimarães Rosa que afirma não ser o mestre aquele “que sempre ensina, mas o que, de repente, aprende”. Pudera. Todo ano fazemos uma revisão do assunto, o que nos dá uma oportunidade única de não esquecer, somada a outra de rever o assunto, sempre, em perspectivas diferentes. É como, aos quarenta, reler um livro querido da adolescência – ele se torna outro.
Assim, comecei o ano, de novo, tendo que ensinar aos meus alunos o Quinhentismo, o período inicial da cultura do Brasil. Só que, por acaso, o mundo inteiro resolveu discutir o aquecimento global e os dois assuntos terminaram por se encontrar na minha vida e na minha sala de aula. Não me contive quando bateu a vontade de registrar o que, com a ajuda de meus alunos, terminei por aprender.
O Quinhentismo, na verdade, foi um hiato cultural bastante longo, que durou de 1500 até 1601, quando se iniciou o Barroco no Brasil. Durante esse período, havia dois tipos de manifestações literárias aqui – a informativa (comprometida com o objetivo do Expansionismo europeu, ibérico principalmente) e a jesuítica (comprometida com a meta da Contra-reforma católica).
Nenhum desses dois tipos de texto era literário, pois, como se pode constatar, a gratuidade passa bem longe deles: os textos informativos, como o próprio nome diz, informavam Portugal sobre o que havia aqui que podia ser apropriado; os jesuíticos, escritos pelos padres da Companhia de Jesus, também informavam a Igreja Católica das ações aqui empreendidas em favor dos objetivos tridentinos, mas, predominantemente, construíram, no Brasil, uma atmosfera medieval, mais favorável à catequese, sua principal meta. Poemas, peças teatrais ou dicionários foram escritos, não com o intuito de aprender, educar ou divertir os nativos, mas impor a eles um jeito de ser e pensar alheios.
Na pessoa do papa João Paulo II, a própria Igreja já pediu um perdão histórico por ter feito parte desse projeto de desrespeito à diversidade cultural e religiosa dos povos americanos.
Mas tudo isso vem apenas como ponto de partida para pensar a questão ecológica que se instalou aqui através do Processo Colonial. É que, sim, problemas ecológicos são decorrentes de questões políticas, apesar da falta de foco nisso que toda discussão sobre o assunto apresenta.
Do jeito como se discute “ambiente”, parece que todo o problema está em baleias, macacos ou florestas, quando essa “febre” apenas indica uma “infecção” no homem.
O Processo Colonial que vitimou o Brasil também construiu uma questão ecológica: a nossa Mata Atlântica tanto deu pau-brasil (entre 1503 e 1530, as remessas totalizaram 300 toneladas por ano), como, aos poucos, foi “desaparecida” para dar lugar aos engenhos de açúcar os quais, durante os séculos XVII, XVIII e XIX, enriqueceram a Europa. Portugal, por exemplo, vivia do lucro da intermediação do comércio entre o Brasil e os outros países europeus.
À proporção que a Mata Atlântica era “assassinada”, nativos e africanos eram vítimas do primeiro grande genocídio perpetrado pelo homem contra o homem: doenças, seqüestros, escravidão, assassinatos, estupros, perseguições, maus tratos... tornam o fim da floresta um horror mencionável, mas menor. Esse homem “infeccionado” está, hoje, seqüelado, ao nosso lado, e sua recuperação é mais urgente do que a da floresta. Ou melhor: a floresta só se recuperará depois que ele obtiver sua cura, que um ambiente são pessoas, não pode ser considerado à parte, isolado do homem e de suas inseparáveis ações sociais, políticas e econômicas.
Nossa floresta, na atual discussão, nem parece ter sido dizimada pelos países ricos: nós é que somos acusados de sermos destruidores de florestas e eles saem de heróis salvadores de baleias jubarte, como se eles mesmos já não tivessem esgotado até as próprias florestas, por exemplo, durante a Revolução Industrial, além da nossa.
Todos só querem discutir o problema como se ele fosse de flora ou de fauna, sem se discutir estilo de vida e consumo.
Quem topa comprar menos? Trocar o carro por transporte coletivo? Tornar o verbo “comprar” um ato de responsabilidade pessoal e social e não de alienação? Os países ricos abrem mão dos recursos naturais que eles concentraram a força? Eles repartiriam a riqueza imensa que acumularam a partir dessa concentração? Deixariam de desperdiçar combustíveis?
Não? Então, continuemos a falar de buraco na camada de ozônio, mico-leão dourado, ararinha azul, em detrimento do homem que, ao lado desses animais, continua “infeccionado”, num mundo que nunca foi tão rico, tão informado e, aparentemente, tão preocupado com o futuro que, salvo engano, será, então, cheio de bichos e florestas, mas sem humanidade.