sábado, setembro 02, 2006

Jogo de trevas - romance

DO TESTAMENTO DE BRANCA

I

Acho o fato de estar aqui sentada, tentando relembrar e homenagear tempos outros, imensamente belo. Sou uma amante da beleza e não é outro o motivo que me leva a refazer ordenadamente todos os acontecimentos que, graças a Deus, vieram a me completar.
À Beleza, a essa sei que não chegarei nunca, mas o simples fato de descrever acontecimentos e fazer conhecidas grandes pessoas, indubitavelmente, me aproximou dela.
Sinto que sou uma grande mulher e além disso possuidora de grandes sentimentos e paixões. Sim, sou. E graças a isso posso narrar tudo o que se passou por aqueles tempos. Só uma grande mulher pode ser bastante para notar quando uma outra grande pessoa se lhe depara. Sinto-me, como já disse, grande, e só esse sentimento para comigo mesma fez com que eu ousasse falar de outras gentes que, aos meus olhos, deveriam ser deixadas em paz. Sim, porque merece paz quem lutou toda a vida para a ter. Sendo grande e velha, uma mulher pode, assim acho eu, ousar fazer o que farei: ressurreições. Só uma mulher como eu pode fazer isso, porque, com sua grandeza e através dela, somente vê coisas grandes e grandezas em quem nem sabe que as tem.
É, pois, meu propósito não só ficar remoendo coisas várias do passado, mas também fazer uma homenagem especial àquele tempo, àquela terra e àquelas pessoas, pela vida e pelos sentimentos humanos por que me fizeram passar.
Nasci numa pequena cidade do pobre e circunspecto estado de Pernambuco, e foi lá também que nasceu o meu filho – o Antônio. Eu, ao contrário do Antônio, permaneci morando nela durante quase toda a minha vida e, se Deus quiser, nela morrerei. Acho inclusive justo o meu pedido: quero achar a morte no lugar mesmo onde encontrei a vida. De temperamento apaixonado, eu até o momento da volta a minha terra me entediava. Mas foi bom para comigo o meu destino: ele me reservava além de grandes atos, grandes amores. Mas também grandes tristezas. Fui, no entanto, previamente feita para agüentar grandes cargas e até ficou meio notória a minha coragem, metade fria; metade apaixonada.
Jamais esquecerei as minhas impressões primeiras: as que me assaltaram assim que cheguei a minha terra, depois de ter permanecido ausente dela durante vinte anos, passados num sórdido e odiento colégio, interna, na Capital do Estado.
O tempo tornava tudo terrível. Aquele vento seco, juntamente com o aspecto medonho da cidade vazia davam um ar de mistério a todo o ambiente que me assustou. O ar envolvia tudo e, tenho certeza, transformava as pessoas em não sei que espécie de monstros.
Assustada que estava e com tal embrulhada e confusa sensação de frio e medo, intuitivamente, notei que a minha surpresa em chegar sem avisar não devia ter acontecido e que eu voltava exatamente quando não devia; quando algo estranho acontecia.
Mas outro sentimento veio a se entranhar no meu coração: o de que devia permanecer naquela cidade. Senti que seria ali que toda a minha sensibilidade deveria ser desenvolvida e onde o que eu vinha chamando de meu “estro” deveria ser concretizado. Aquela paisagem, estranha a mim durante tanto tempo, fazia com que todo o meu corpo jovem fervilhasse. E também todo o mundo se descortinou aos meus olhos, com suas belezas.
Por trás de cada uma daquelas janelas fechadas eu podia até ver rostos sertanejos de feições bem marcadas e, decididamente, não podia pensar naquele mundo povoado por pessoas sem uma força espiritual grande até o seu último extremo.
Pela primeira vez senti que tinha sob os pés um chão que me pertencia tanto por direito como, dali por diante, por sentimento também: foi quando senti que o amava e – felicidade! – descobrira que também eu tinha uma terra a amar e pela qual lutar – palavra que até aquele momento não saberia explicar, mas que, depois de pousar sobre aquele solo o meu corpo, vinha ao meu espírito destituída de qualquer dificuldade de ser compreendida –. E aquele chão, apesar de árido, pedregoso e seco, era de uma beleza chocante e sinistra.
Depois de vários anos de uma apatia total de sentimentos, eis que senti um total alumbramento por tudo aquilo e me apercebi de que não tivera fazia tempo uma tão profunda sensação de Beleza.
Mas aqueles silêncios me assustavam... E essa lembrança de um grande e insuportável medo é a que ainda permanece na minha memória quando tento me lembrar de todas as impressões que me assaltaram naqueles mágicos momentos.
E eu descobri, então, algo de muito importante: tinha uma terra e pertencia a ela. E, graças a Deus, essa descoberta aparecia a mim quando ainda não era tarde demais.
Estamos hoje a 30 de julho de 1979 e me encontro com 70 anos. E, prometo, tentarei, o mais claramente possível, registrar toda a minha vida, mais como uma obrigação para comigo mesma do que por qualquer outra coisa.
E há também o Antônio, o meu filho querido, a quem quero deixar minha vida – já que nada há além disso que eu lhe possa ceder como herança. Antônio é um anjo bom, desses que só em sonhos ainda existem, perdido e – como dói em mim admitir – carente de afetos que jamais lhe foram dados. Nunca foi ele criança, estado que lhe foi por todos negado sempre, e só hoje, na velhice, posso compreender que não há maior crime que negar a uma criança o direito de o ser. Quem sabe não sejam essas as razões de ser o meu Antônio um homem tão angustiado, sempre à procura de alguma coisa que lhe é incógnita? De qualquer maneira, estou certa (e talvez esteja aí também a fé da mãe que muito ama) de que ele encontrará o seu destino; e que este lhe seja bom, é o que a Deus imploro todos os dias.
Quero ainda explicar por que só agora – tão tarde – me resolvi a contar essas histórias: é que me parece ser característica minha só tudo fazer à última hora e, se assumi para comigo mesma a responsabilidade de deixar ao meu filho, escrita, a minha vida, já é hora de começar – antes que ela termine sem ter sido cumprida a tarefa a que eu mesma me propus. Gostaria, assim, de angariar forças dos céus e renovar desse jeito as minhas próprias tão combalidas e enfraquecidas pela velhice e pela próxima morte que de mãos dadas dançam as suas danças danadas à minha volta e teimam em querer me levar a brincar o jogo do Fim em suas companhias.
Pedirei ajuda, quando necessário, ao meu diário ou quando me for impossível, por qualquer razão, lembrar de certas emoções ou acontecidos – Antônio que me perdoe, se isso o aborrecer.
Do meu diário, acrescento, o que não me servir será queimado.

Jogo de trevas

DOS PRÓLOGOS DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO

I

Ousadia

Não tenho qualquer certeza sobre o caso desse meu mais novo pecado, isto é, se serei ou não perdoado por tão grande ousadia. Mas, no entanto, outra eu tenho: a de que há uma certa santidade nos terrenos da Arte, e pobre daquele que a quebrar! Estou totalmente cônscio de que cometo uma grande falta em intrometer minha tão confusa e perdida pessoa dentro de tal lago de pureza e arrebatamento e além de tudo o macular propositadamente. Mas, por mais que eu tenha tentado controlar minhas mãos, elas teimam em escrever; por mais que eu tenha tentado fugir de minhas idéias e da minha alma, o meu cérebro permanece trabalhando e maginando e relembrando...
Não estou bem certo de quem poderá ser essa pessoa aqui que, mesmo muito perdida, obstina-se em querer se redimir e encontrar a Paz. Sei apenas que sou um Antônio qualquer cuja Paz foi brutalmente roubada pelo Espírito danado de uma grande cidade. E sinto-me pequeno exatamente porque estou continuamente me comparando a essa grandiosidade falsificada e destituída de qualquer beleza, que é o mundo em que vivo: ambiente pobre e sujo, cujos habitantes têm uma só consciência – a da própria pobreza e miséria. Eu tenho, no entanto, uma outra – a da minha pequena insignificância que diariamente baixa a fronte diante de uma imagem comprada já com o intuito de a mim representar a grande cidade que cada dia mais me engole e sufoca. É uma imagem de Cristo em grande sofrimento e ela simboliza tão bem todos os meus pesares diante da vida, que não pude resistir ao impulso de comprá-la depois que a vi pela primeira vez. É, pois, um temor misturado com um amor pesaroso e penalizado, o sentimento que experimento com relação à alma louca dessa cidade dos recifes.
Não faço idéia sobre o que irei ou não falar. O meu coração, só ele próprio o sabe e imagina. No tocante ao fato da memória, no entanto, ele não interfere, tão destituído está de outro sentimento diferente do medo. É meu cérebro que, então, toma o seu lugar e age em detrimento do maltratado coração que, indubitavelmente, já não agüenta a memória de certas pessoas, fatos e sentimentos que, apesar de passados, insistem em voltar sempre e sempre. Ah! se Deus me desse forças para suportar essa grande carga que se me impôs! Sinto-me, entretanto, fraco e destituído de qualquer vontade de reviver e, ao mesmo tempo, de refazer toda a minha vida. Além do fato mais grave de todos: é que não me sinto suficientemente preparado para abarcar toda a grandiosidade do Espírito incomensurável da Arte que durante toda a minha vida tentou e rondou a alma e a vontade.
Por outro lado, sinto-me vazio depois de quaisquer duas ou três palavras que escrevo. Mas é preciso me encher e rezar para que tudo dê certo. É preciso. É preciso. Sinto-me, no entanto, como um autômato que depois de toda uma vida de preparação, de repente resolve cumprir o destino que lhe foi imposto, mas que ao mesmo tempo tem medo de o enfrentar.
E há ainda a força do sangue que me impulsiona no grande e primeiro mergulho em direção ao verdadeiro mundo do qual estive sempre fugindo através de incontáveis leituras e infindáveis sonhos de um Universo perfeito. Sim, digo força do sangue porque descobri que também minha mãe resolveu, pelo fim de sua vida, contar histórias e reviver a sua longa e penosa existência. Ela deixou a mim (e assim eu deixarei aos meus filhos) as suas histórias fantásticas que me fascinaram durante longo tempo e que me obrigam, de certa maneira, a parir também as minhas e fazer às dela concorrência.
Assim se juntam essa força e a minha necessidade de remissão para a feição dessas histórias que se seguem. E que seja eu perdoado, peço como minha mãe.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

15 de 12 de 1933:

Estou assustadíssima: chora o tempo todo a minha mãe; ainda não me pude avistar com meu pai; a cidade está estranha... tudo é estranho... e a noite me assusta, assim misteriosa e chorosa.
Gostaria muito de saber o que está acontecendo.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

II

Naquela noite sombria, só Ivã, o segundo terrível, veio me visitar. Pudera isto fazer porque sua cor não o punha em perigo de vida como o poderia fazer uma outra qualquer.
Eu sempre quisera muito bem a Ivã e revê-lo naquele dia já tão cheio de emoções apenas me fez chorar desesperadamente durante muito tempo, apesar de precisar ouvi-lo para entender direito o que estava acontecendo.
Mas ele apenas ficou comigo até que eu parasse de chorar e, apressadamente, passou-me um papel e desapareceu.
Eis o que nele estava escrito:

“Sem sombra de dúvidas a loucura se apossou de mim. Ando louco, perseguido, tonto. Há em cada canto um inimigo de tocaia, capaz de me açoitar, quem sabe até a morte.
Preciso de ajuda, Branca. E por favor não a negues!
Algo muito terrível está acontecendo e é preciso que se pare o tempo antes que um mais terrível desfecho venha acontecer.
Beijos de teu Ivã”.

Jogo de trevas

DOS PRÓLOGOS DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO

II

Impressões ou o Monstro dos Arrecifes

Só foram coincidentes nossas impressões – as minhas e as de minha mãe – em um só ponto: é quando elas são de medo.
A grande cidade assustou-me. Não foi, no entanto, o seu vazio que me causou espanto mas a sua total falta de espaço: as pessoas batiam umas nas outras e passavam sem se aperceberem de que o que cruzava com elas não eram animais quaisquer, mas seres humanos que mereciam algo mais do que simples tropeções.
Jamais pudera imaginar, na minha ignorância inocente de habitante dos interiores, tal inferno! Passavam por mim tantos aleijados que eu obtivera certeza de que fora o Espírito maldoso dessa grande cidade que lhes roubara os membros, fazendo pouco de suas pequenezas diante da sua maldade. Como se fosse desnecessária qualquer utilidade que pudéssemos possuir; como se o Espírito nos roubasse tudo o que nos fosse caro; e fosse capaz de nos destruir. Mal sabia eu naquele instante pavoroso o quanto havia de verdade naquelas primeiras impressões que me apareceram e quão cedo minhas suposições e medos me vieram a ser provados.
Ali, perdido naquela pobre e imunda grande cidade, a força do meu sangue no tocante à Arte foi, pela primeira vez, anunciada a mim. Ávido de apreender tudo para depois transcrever, sofria mais e mais me mortificava: as caras de caboclos deslocados dos seus lugares de origem me maltratavam; as vestes e sapatos e bolsas e tudo o que queria esconder a pobreza daquele povo maltratado somente mostravam mais claramente o quanto era miserável aquela gente; as feições marcadas por grandes fomes ou corpos marcados por grandes bebedeiras davam dó; o contraste da grande riqueza arquitetônica com a grande pobreza das ruas deu-me náusea; e a imundície aterrorizou-me por completo.
Depois vim a saber que a tropical e pobre cidade dos recifes nada mais era que o principal refúgio da pobreza de todo o Nordeste do Brasil e que ela ali se instalara para não mais sair, com unhas e dentes. Foi só quando pude entender por que perambulava pelas ruas tão grande quantidade de prostitutas: elas procuravam riquezas (coitadas!) num lugar onde só se oferecia miséria.
Jamais terei tão afiada a minha pena para ser capaz de descrever, como gostaria, essa cidade que me transformou e venceu. E aqui, sentado, eu me amedronto só de pensar que espécie de vingança ela me armaria se fosse capaz de adivinhar que lhe abro o espírito dessa maneira.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

Tarde da noite de 15 de 12 de 1933:

Talvez as coisas se aclarassem se eu pudesse falar com alguém.
Ivã veio aqui em casa e, desvairado, apenas entregou-me um papel cheio de doidices que mais ainda me assustou.
Acho que está completamente louco.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA

I

Auto-retrato

Antônio é uma alma barroca, perdida, desrumada...
Que treme diante de questões básicas da natureza humana. Que procura infinitamente por algumas coisa – o amor? – que não sabe onde está ou se achará.
É, no entanto, um questionador por excelência. E só por isso morre de medo de si mesmo e da vida, que (infelicidade!) parece que exige mais dele do que do resto do mundo.
Antônio é um espírito inquieto mas calado e por causa disso, para viver, precisa de escrever, tarefa que lhe parece a ele imposta por deuses terríveis e maldosos – escrever dói –.
É Antônio um homem?
Ou ser homem pressupõe ter coragem? Anda em ânsias, esse Antônio, atrás de se definir. Pensa, às vezes, que é um covarde cósmico e completo; ou um louco doloroso; ou um desterrado sem irmão na sua angústia. E nada abranda a sua dor.
Antônio só é um ansioso a sempre buscar.

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

I

Vinha talvez pensando em como terminar aquele quadro. Trazia ele a figura inacabada de um belo homem, ao qual faltavam os olhos e alguns detalhes finais que o deixariam talvez diferente da maioria. O nariz era afilado, e o queixo quadrado sobressaía diante dessa agudeza. A testa, recuada, dava já um aspecto de beleza àquele rosto estranho. Parou, então, estarrecida diante de um rapaz cujas feições completavam aquelas que durante tanto tempo a perseguiam. Parou e, pegando o carvão, sem qualquer vergonha, desenhou sobre o seu esboço, completando-o, os bonitos e sugestivos olhos daquele estranho homem. Amedrontada mas cheia de felicidade, foi retratando... e assim que foram acabados esses olhos, o rosto, já não lhe faltava mais nada. Só que havia nesses olhos copiados uma expressão mais nova e tão harmoniosa com o resto, que até o verdadeiro parecia agora falso.
E o homem aproximou-se.
– Vês? Acabo de te retratar – disse ela. Não esse teu rosto cansado – continuou – mas o teu verdadeiro rosto. Pesquei a tua alma.
– Desculpe-me. Esse não é o meu rosto. Jamais tive esses olhos.
– Espera... Por que tentas fugir? Essa paz aqui estampada nesse desenho é o que procuras?
– Deixa-me, mulher, em paz com meus demônios – disse e quase correu a fugir.
Acho que aos poucos torno-me artista – pensou ela. Eu pude sentir a alma desse homem que nunca vi. Apenas com a minha arte.
Deus, será isso bom ou mau sinal?

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

III

Só hoje, 45 anos depois, eu posso notar o quanto havia de Verdade naquelas, aparentemente, tão desconexas palavras. Morro de angústia só de pensar que a ajuda pedida por Ivã foi por mim negada; e, se agora vejo que Ivã trazia consigo uma toda especial Verdade, naquela época eu só via loucuras naquilo que trazia no seu bojo medos e temores tão reais.
Os vinte anos são cegos!
E é só nisso que me apóio para me defender diante de Ivã, que constantemente se encontra comigo.
Fui dormir ainda cheia de temores e nem sei como acordei – se com os gritos ou choro de minha mãe –. Só sei que, da janela do meu quarto, vi dependurado o corpo inerte de um homem que, enforcado, balançava, no entanto, para me assustar e apavorar.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA

II

Não, a alegria não existe. Nem existirá.
Só a dor e a tristeza
e o desespero há.
Dos subterrâneos clandestinos
da minha mente,
visões medonhas
esborram por sobre sangradouros
profundíssimos
e escorrem com fluidez
em direção ao coração também ensombrado
que acolá rasgará
por falta de ladrão.
E aos meus olhos só aparecem
os terrores absolutos
e os gritos alucinados dos gnomos
que travam cá dentro
batalhas odientas
contra eles mesmos.
É preciso uma força que não tenho
para encarar a vida e mostrar-lhe
os olhos calmos, apesar da luta.
Eu nego a Alegria.
Nego porque ela
jamais me povoou
e porque foge,
assim alumiada,
dos pélagos obscurecidos
e desabitados do meu coração
cheio de ânsias.
Nego com todas as forças
que ainda me restam.
Nego-a até para não ficar louco
de ansioso buscar
atrás e sempre.
Oh! Fantasma assustador
que é a Alegria.
Pára; para que eu possa
ao menos olhar-te
e ficar-te aqui com um pouco apenas
da tua luz.
Pela grande escuridão
da tristeza em que me encontro,
eu te imploro
por uma pouca vela
que possa, no entanto,
derreter as ceras
das máscaras
desses gnomos dolorosos
que, veladamente, como sombras,
colam-se, feitas em dores,
à minha alma
e a embrutecem
propositadamente.
Como pode ser tão cruel
essa dor
a ponto de apagar em mim
a única luz que me restava?
Dai-me essa vela,
ó alumiosa Alegria,
antes que te batize
como o mais mentiroso
existir
durante todos os tempos.
E para que tal não aconteça
dize onde foi que pousaste
- mesmo que seja longe,
em terras que nunca vi -
as asas brilhantes
que te carregam sempre
a alhures longínquos
e distantes dos meus sítios
pantanosos e sombrios.
Vai de vez
se assim queres,
sem nada me dizer,
mas, por tudo...
Deixa-me cá com o obscuro
e não me venhas tentar
incandescer,
com teus piscares de estrelas;
nem enlouquecer,
de ânsias
diante de suposições
sobre tua existência.
Eu te enxoto,
como ao pior dos cães,
mas te açulo, no entanto,
a que proves,
por qualquer meio
ou através de qualquer álibi,
tua existência,
que arrenego.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

IV

A imagem daquele homem lá dependurado me serve como símbolo apavorante das coisas que estavam acontecendo, e é exatamente ela que me vem à memória quando tento me lembrar de alguma passagem ou sentimento relativos àquela época.
Num só dia aconteceram muitas coisas: primeiro, a emoção da chegada; segundo, o medo do desconhecido; terceiro, a noite pavorosa e o bilhete de Ivã; e depois o cadáver à minha janela. Tive enorme medo de tudo e nunca nada me foi claramente explicado. Gostaria de poder contar ao meu filho essa minha vida confusa mas ela até a mim o é, de modo que, se parece nebulosa e desconexa essa minha história, é porque cá dentro de mim ela mesma tão confundida está que não a posso clarear a ninguém.
Alguns acontecimentos aqui e acolá pescados da minha tão baralhada memória podem, no entanto, ser descritos; e são eles que vou daqui por diante narrar, mais por simples doação de minha pessoa e vida ao filho querido que me é longe do que como explicação – a mim mesma ou a outros – do que aconteceu. E seria mentirosa se dissesse tudo bem claramente e se afirmasse convictamente que toda a minha vida pode ser narrada como quem conta uma história de trancoso.
Mas algumas vezes eu penso na possibilidade de todas as vidas serem assim ensombradas, porque, se agora na velhice, as coisas vão ficando menos cheias de medo e mais simples, quando a vida ainda tem força dentro da gente, nos sufoca o entendimento, e fico a pensar, então, se não é essa a sua função: a de continuamente nos forçar a usar vendas e a cegar os caminhos. É aí que ela fica cheia de voltas e obscura – é quando essa mascarada, tentando nos destruir, se transforma em sombras incompreensíveis e misteriosas.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

I

Hoje de manhã, enquanto assistia à aula na Universidade, senti que era observado: era uma pintora que me fazia um retrato e me olhava de maneira incômoda demais à minha timidez de sertanejo. Parece que já tinha tudo pronto e só faltavam no esboço alguns pormenores, que copiou das minhas feições. Ao me levantar, tremendamente incomodado e pronto a sair da posição de modelo involuntário, ela me falou e me mostrou um rosto parecidíssimo com o meu. Não lhe quis falar, no entanto, e fugi apavorado, com medo nem sei de quê.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

V

O dia 16 de dezembro de 1933 estará sempre na minha memória como o dia do enforcado.
Pois bem, no dia do enforcado foram vários os que apertaram as suas próprias cordas e as puseram ao pescoço. E, entre eles, eu mesma o fiz. E por causa do Ivã, que me mandou a seguinte carta:

“Novamente recorro a ti para que me ajudes.
Tenho certeza de que viste o meu irmão de sangue enforcado à tua janela e é preciso vingar a sua morte. O meu sangue esvaiu-se com o dele e eu preciso de recompô-lo para poder continuar vivendo.
Pensa bem e, se quiseres me ajudar, fala com o amigo meu que te leva esta carta.
Tenho já todo um plano formado. Ele te explicará. Preciso de ti.
Ivã”.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

II

Uma vingança, ao menos, eu tenho contra esse monstro danado dos arrecifes: é mostrar-lhe sempre e sempre o quanto é sujo e imundo.

Ao Capibaribe, rio de angústia coletiva:

Corpos pretos que buscavam alma
em movimento de garça-urubu – abaixando
e transformando em pescoços seus corpos
sujos da lama
viscosa
(onde brincavam sorridentes, certo dia,
crianças magras e doentes).

Corpos pretos que assustavam o poeta,
mas que lhe davam de comer,
enquanto inutilmente tentava sair a correr e a gritar,
assustado com tamanha pobreza
- com medo de ver, apesar de forçado.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

15 de 12 de 1933:

Hoje Ivã me mandou outro bilhete, mais confuso ainda que o primeiro.
Até me revelou a existência de um plano para vingar a morte horrível desse seu irmão. Ai! quem me dera poder apreender o verdadeiro sentido desse mecanismo danado que me envolve e à minha alma em direção a não sei que profundo abismo.
Há apenas um ponto que me ficou claro: Ivã e seus companheiros que nem sei quem são precisam de algum dinheiro para adquirir armas. E é aí, parece-me, que precisam da minha ajuda. Quem o tem, segundo eles, é um sujeito novo na cidade, de quem nunca ouvi falar, mas que certamente os auxiliará se eu o abordar com jeito.
E eu assim espero...

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA

III

Novo auto-retrato

Sou eu que sou o fantasma assomado;
sou o malassombro -
danado e sem destino -,
avoante em alheios pesadelos;
sou o pior de todos os pavores.
Tenho até sete cabeças e um só corpo!
Sou um urso de verdade;
sou o próprio medo que um dia há-de haver,
e que agora há em mim.
São sete os medos que inspiro,
e o faço porque eles são em mim
a recrudescência autotemerosa
dos maiores temores que existem.

Há o primeiro medo:
inspirado pela face da loucura,
ela é a que mais persegue
com seu visgo.
Nem há quem possa escapar dela.
Existe tanto de louco em todos vós...
Essa medonha face e ardilosa
desperta sempre
- Oh! descabida -
a parte em vós do desvario
e vos entrega,
mãos atadas,
ao caos inconsciente da Loucura.

E há o segundo medo:
que vos é dado pela segunda face.
Esta não vos persegue
mas reflete, calmamente,
de modo a que possais ver,
bem nítido,
o tamanho incomum de cada covardia
que existe em cada um de vós.
Já ouvi gritos alucinados
dos que olharam de perto essa segunda
e lá viram
nenhum Narciso,
mas outra covardia facial,
tão medonha quando a depenada,
que houvera recriado a refletida.

E há o terceiro medo:
é o medo danado e grandioso,
patenteado pela terceira face.
É cara, entre todas, mais medonha:
o rosto volteado e cheia de tramóias
a vida aí vos aparece
e anda desde que vós lhe apareçais
até quando a abandonareis
a vos atanazar,
cada segundo,
em busca, cruel,
e com olhos de condor,
de um qualquer meio
que destrua
cada vossa existência,
que rodeia.

E há o quarto medo:
é o medo entre todos mais estranho.
É comum a todos os viventes;
é destino certo inadiável.
E a certeza única – e de mãe viúva –
que a vós foi permitida pela vida,
mas que de vós será roubada sorrateiramente.
E a quarta face é, então,
a da pesada Morte e odienta;
inevitável
caveira barulhenta,
que de vós fará a vossa vida.

E há o quinto medo.
Entre os sete, é este o de mais força:
é que os outros todos se irmanam,
bem no centro deste aqui,
e cada um, assim fortalecido pelo outro,
ganha raiada e maior força –
há, então,
absoluta e completa inteireza.
É o medo cigano e desconfio do futuro;
a que, involuntários,
ides empurrados,
por cada movimento desse rodante mundo inquieto.
A quinta face é esgazeado símbolo
amedrontado,
do terror irascível e carteado
do futuro adventício.

E há o sexto medo:
o nascido da peleja secular
do Homem contra sua pequenez.
Máscara a vós presenteada
na hora já de vosso nascimento,
essa sexta cara há-de vos seguir,
obstinada e medrosamente,
dos pélagos às alturas radiantes,
a que supostamente chegareis.
E, zombando de vós e simplesmente,
lá nessas alturas radiantes,
mostrará a vós, despudorada,
o senho verdadeiro e imutável,
a que caiais de novo no vazio.

E há o sétimo medo:
é o medo bíblico do remorso;
e da nostalgia de um paraíso
- e também de um tempo mágico -
que, esvaídos pela vida, são desaparecidos.
E a face sétima e maldita
presente aqui, esvoaçante,
é o pior espinho e além de tudo
assevera, em cada passo que avançais,
as culpas, em cruz pesada de calvário,
do que fizestes e do que fareis.
Ou do que já fizeram,
e também do que farão vossos irmãos.

Agora vossa vez de imaginar:
ajuntai os sete medos,
lado a lado,
retirai desse mundo quase morto
o único pedaço que lhe resta.
Ao todo morto, anteponde os medos todos...
e tereis, assim, representado
o reino danado em que habito.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

VI

Se aos vinte anos achei que fora já suficiente a ajuda que contra todos os meus princípios eu dera à encoberta causa de Ivã, hoje fico a pensar se eu não seria capaz de lhe ter salvado a alma e a de muitos que, fiéis a ele, deliberaram sozinhos por seguirem-no ao desconhecido, como acontecera sempre.
A dúvida que ainda me persegue é tanta e tão dolorosa, que peço a Deus todos os dias estar ela servindo já como paga de meus tão intensos pecados.
Mas a culpa que carrego é grande demais para minha purgação somente: ela é tão intensa e me fere tanto a punhaladas que, às vezes, tenho a impressão de ela me ter vindo apenas a embrutecer e a me abrir os olhos e o coração do meu corpo aos sofrimentos todos de todos os homens do mundo, que levianamente cegara até então.
Ah! como eu gostaria de saber quem me traçou tão amaldiçoado destino e supôs que eu o carregasse assim silenciosa e conformada. Não! Hei de morrer bradando a altas vozes a minha revolta perante o deus que encheu até rasgar de desespero meu coração.
Sim! ajudei ao Ivã conseguindo-lhe o dinheiro, mas estou convicta de que isso não foi bastante, apesar de ter rasgado cada pedaço de minha pessoa para o fazer. Ou quem sabe eu nem rasguei nada e repito isso incessantemente para perdoar o abandono à paixão em que caí? E para me perdoar a mim própria da idéia que me persegue?
O Mal sempre foi tão obsessivo à minha vontade e sempre me perseguiu tão veladamente e proximamente que tremo inteira só de pensar na simples possibilidade de lhe ter cedido terreno, ao menos uma vez.
Oh! céus, dai-me sossego nem que seja na morte...

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

III

Ando sempre pelas ruas dessa grande cidade que me enlouqueceu e despersonalizou como quem a quer destruir só com isso. Eu o faço com a consciência de que esmago assim cada víscera do horrível monstro destruidor que é o dos recifes. E também, paciente, espero – enquanto ando – que as ruas danadas e viscerais me devolvam o pedaço de vida que me roubaram certo dia. Tão assassinas são essas criminosas ruas que tenho, às vezes, até a impressão esperançosa de que elas dêem a mim uma das tantas vidas que sugam diariamente, como pagamento pelo pedaço que traiçoeiramente me roubaram.
Será que isso acontecerá? Ou o monstro apenas acabará de roubar aos poucos o resto mesmo de mim próprio?

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

II

- Vês aquele rapaz, lá? – mostrou uma primeira moça a outra que a acompanhava.
- Sim – disse a outra, perturbando-se, no entanto.
- Já viste outro tão feio em tua vida? – perguntou a primeira.
- Não o acho feio – disse a segunda, bruscamente – e saiu cheia de raivas.

III

Voltou a casa meio triste e, ao chegar lá, mirou longamente o rosto retratado por ela e que tanto lhe agradava.
- Não, não é feio. É belo de uma beleza que só eu percebo. Talvez esse rosto guarde em si os traços ancestrais de uma beleza exótica e diferente que sempre me alumbrou – falou a moça a si.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

21 de 12 de 1933:

Estou me sentindo tão ansiosa que acho que vou explodir. Tudo ao meu redor contribui para que essa ânsia seja sempre maior e maior. O clima de tensão, a atmosfera abafante, o medo, os sustos e as minhas intuições de alguma coisa maior a acontecer realmente produzem em mim uma sensação de angústia muito grande. Ando a precisar de atenções, de carinhos e ternura que nunca me faltaram, mas que agora desapareceram. O carinhoso Ivã nem pode sequer me olhar e todos andam na mesma. Sinto falta de atenção humana – não a egoísta -, mas a de que todos precisam. Sinto um enorme medo e não há ninguém que me possa desvendar o que está acontecendo.
Tenho que confessar que, com tudo o que está acontecendo, outra novidade veio: pela primeira vez em toda a minha vida, afora as ânsias de que falei, ouras mais me perturbam – é o meu corpo jovem que fervilha com vontades estranhas e a mim desconhecidas.
A impaciência anda a tomar conta de mim.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

VII

Desde o dia da minha chegada ao sertão em 15 de dezembro de 1933 até o primeiro de janeiro de 1934 (data que mudou o rumo da minha vida para sempre), houve um acúmulo grande de acontecimentos e mal me levantava aqui do peso de um, já caía acolá com o de outro.
O medo era como uma espécie de onda, que vinha e ia, cada vez mais forte. Tudo beneficiou o que me aconteceu aos 24 de dezembro: o clima de medo; a tensão; as comemorações da noite de Natal...
Gastei todo o dia a pensar na visita ao homem do dinheiro. A todo instante a lembrança me assaltava, de modo que, quando a noite chegou, veio-me a impressão de que a esperava há muito tempo já.
Nem eu mesma posso até hoje explicar o que me fazia ficar tão excitada. Eu não conseguira durante todo o dia sequer relaxar meu corpo tenso. Minha agitação era enorme e à noite ela ainda mais aumentou, para susto meu.
Às nove horas do dia 24 eu pedi permissão à minha mãe para ir-me deitar e ela a deu. Meu pai se encontrava bastante alegre e bebia em companhia de seus amigos. Falara durante todo o jantar de suas últimas vitórias políticas e tenho até a impressão de que eles comemoravam qualquer coisa que me era desconhecida. Brindaram toda a noite às políticas lá dos sertões e posso até dizer que o fantasma do enforcado nem de longe os assustava. A mim, no entanto, ele continuava a apavorar e fui incapaz de qualquer alegria durante todo o dia e também durante todo o período desde o dia 16 até muito depois, durante meses inteiros. Também brindei nem sei a quê e mecanicamente bebi alguns goles, que me deixaram assim ansiosa, descuidada e tonta.
Tranquei-me durante alguns minutos no meu quarto e, depois de me certificar de que ninguém subiria mais, entretidos que estavam lá na festa, escapuli-me pela janela e parti pela noite em procura do homem.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

IV

A pintora não me abandona a mente. Deus! Já não é bastante a dor que a cada dia me envias? Era lá preciso mandar-me, além de tudo, as angústias todas do amor, quando nem mesmo as da vida posso suportar?

Poema à fuga

Louca...
que paras e que copias a alma,
de quem não a quer copiada.
Vai-te embora; quem pensas que és, a transformar meu corpo e a ver almas
onde elas nem existem?
Vai-te embora, deixa-me com a minha cara sem alma
que só quero descanso...
Deixa de perversidade...
Deixa-me os olhos
que, já tão cansados de tantas mudanças,
não agüentam mais
(tantos caminhos por ver!).
Vai-te.

Não fui sincero em tudo o que contei: primeiro, escondi o fato de que o homem do retrato não tinha os olhos batidos pelo vício que aparecem agora, constantemente, a me assustarem. Segundo, não falei da grande beleza que a pintora possui. Não essa comum: é uma beleza rica na pobreza. A simplicidade dos traços do seu rosto se enriquecem de tal maneira do contato de uns com os outros, que lhe dão um ar de bondade e beleza inesquecíveis.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

VIII

Medonhos pensamentos e sobressaltos vieram atrapalhar a minha pressa em logo terminar minha tarefa. Um medo incontrolável da noite sertaneja e sombria se apossou de mim, completamente. E eu, que sempre estivera acostumada com noites menos silenciosas e assustadoras, fui possuída, então, por grande pavor: as noites do sertão não têm qualquer voz que faça companhia; são de uma mudez grande demais para serem suportadas sem nenhum temor maior. E o medo grande em mim foi aumentando... aumentando... e eu feito louca, chorando até de tanto medo, atirei-me aos braços daquele homem desconhecido. Possuída nem sei por que espécie de paixão, esqueci-me de mim própria e lhe cedi – desvairada – meu corpo virgem, sem que ao menos nada me tivesse sido pedido.

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

IV

O homem aproximou-se da sala de pintura da escola de artes e, procurando, talvez, por alguém, topou sem querer num cavalete com um rascunho ligeiro de uma das alunas, que se retirara temporariamente.
Perturbando-se ao olhar o estudo, rabiscou por cima dele uns versos e se retirou.
O estudo era a tentativa, ainda inacabada, de representação de um homem deitado sobre uma mulher ainda disforme.
O rosto do homem retratado era o do poeta, só que trazia o do quadro uma expressão de beleza e paz que não se encontrava no, ao contrário, perturbadíssimo rosto verdadeiro.
Ao chegar e mirar seu estudo, agora já completado pelo rápido poema, a moça riu simplesmente, deleitada. Achou ela que os novos traços do carvão completavam de maneira absoluta e indiscutível o que gostaria de dizer e, acrescentando alguns traços, fez-se a si própria, então, ainda que enevoada, sob aquele tão definido corpo de homem.
O quadro era, só então, de uma beleza grande e completo – duas almas ali se encontraram e com símbolos belíssimos se entenderam –.
Quem sabe não se fixara aí exatamente a grande beleza do estudo?

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA

IV

I
Quem me dera...
ser filho
da possibilidade inusitada
da Noite de Natal.
E quem me dera...
ser o Renascido
irmão gêmeo e amigo;
guia de minha procura,
também como Ele incansável.
Mas não me quis
por gêmeo
o Deus-amor.
E cá estou eu:
gêmeo-siamês do Diabo
e cúmplice desse anjo louco que traiu,
envolto em sombras
e nada mais.
– Há séculos que não vejo a luz –.
E até o fogo que me queima a alma,
uma chama que me foi dada,
não a pude olhar de perto:
a escuridão é venda grossa,
não me permite outras visões.

II
Agora vê, ó Deus
que me fizeste;
aqui, não pude ser filho da paixão
nem teu irmão;
acolá, deste-me de presente,
como um grego,
os martírios de tua morte,
em meio à minha vida.
Como podes, Louco Maior,
depois disso e mais ainda,
chamar a minha alma sufocada,
como o fazes
continuadamente,
a que permaneça
à Tua direita
e à de Teu Pai,
imantada à Tua força
que a atrai?
Tu não me quiseste como irmão!
Deste-me dor e nada mais!
Nem que ilegítimo,
não me deixaste ser filho
do Espírito maravilhoso
da noite de Natal!
Não achas Tu que mereço a Paz da Tua ausência?

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

Madrugada de 25 de 12 de 1933:

Que pode dizer uma mulher, depois de cometer contra si mesma o maior de todos os pecados? Que palavras ela poderá dizer para expressar um total desespero? Apenas uma simples confissão será o bastante para esgotar toda a culpa que lhe esmaga o peito? Ou a palavra à salvação dessa alma é uma só: perdão?
E uma moça-criança apenas, quando descobre que não está a salvo nesse mundo – como eu própria, antes alheia a paixões – deve penitenciar-se por todo o sempre, eternamente?... Quanto descuido eu tinha contra o Mal e esse danado disso se aproveitou e me abarcou...
Oh! Deus, dai-me forças a que esse ínfimo segundo apenas de minha existência não me venha a arrasar o resto todo. E também livrai, se assim o quiserdes, do filho que pode vir, mas que eu não quero.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

V

Como agressão à pintora e não sei por que razões – para magoar, talvez, por sua beleza – destruí um esboço seu com os seguintes versos:

Sob mim vislumbro presença de um contrário.
Se antes o nada fora ocupante...
Agora se mostra aí a perfeição –
que vejo transformada.
Amo, no entanto, essa forma imperfeita;
mas perfeita,
que veio ocupar o canto cativo do ninguém.
Houvera precisão, então, com certeza,
de a Perfeição ser Imperfeição
e esta o âmago de toda Perfeição.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

IX

Fico até hoje questionando as minhas convicções religiosas: se, ao entregar meu corpo a um homem que jamais vira em toda a vida, eu cometera um pecado grande demais, ou se ele é perdoável, sendo levadas em conta esta ou aquela razão atenuante. Nas minhas convicções de adolescente, eu sempre considerara o amor a coisa mais bela e a única por que se deveria viver; e o sexo sem ele a coisa mais sórdida e suja do mundo. Havia em minha mente somente essa divisão extremada e o relativismo do que veio a me acontecer deixou-me louca de culpas e doente até de tanto sofrer. Até agora, e eu estou com 70 anos, não posso entender que espécie de loucura foi a que se apossou de mim naquele momento, só sei que dele, além das culpas posteriores que eu mesma impus a mim, só pude desde sempre me lembrar dos prazeres, alegrias e calmas que me trouxe.
Fico sempre a agradecer àquele homem, que nunca mais vi, de estar ainda viva depois de tudo o que me aconteceu: jamais teria suportado a morte de tantas e tão amadas pessoas se, com aquele homem, não houvesse aberto e minha mente nem abrandado as minhas ânsias.
Fui-me embora já de manhãzinha para a minha casa, não mais possuída pelo medo, mas pela culpa. Recebi naquela noite o mais inesperado presente de Natal que jamais recebera: carinhos e delicadezas de um homem que nem ao menos conhecia. E, por outro lado, dei a ele outro ainda mais: o meu corpo virgem, que se lhe abriu inexplicavelmente.

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

V

A pintora fez outro belo quadro: com o nome de “Deus do Amor”, o novo quadro era novamente o rosto do poeta. Dessa vez, no entanto, a beleza dos seus ombros se sobressaía; e a sua cabeça, virada para trás um pouco, frisava a masculinidade de um pescoço grosso e bem feito.
Carinhosamente, a moça o afagou, quando terminado. E, enquanto fazia isso, falava a si:
– O amor é belo como esse homem. E bom à alma como a poesia.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

VI

Uma carta que não foi jamais enviada:

Acredito de maneira firme num amor uno, perene e indestrutível. Acredito também sentir por você esse sentimento profundo e angustiante.
O amor, no entanto, com sua força inerente, destrói os fracos e isso ele me fez: a vontade de ser alvo desse sentimento e a interminável busca dele a que me propus durante anos me enfraqueceram e (ironia cruel!), quando ele me apareceu, acho-me como um fugitivo arredio e descrente.
Temo você e fujo, convicto de que ajo corretamente.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

1 de 12 de 1949:

Jamais saberei ao certo o motivo que me levou a querer deixar ao meu filho tantas dúvidas ou tantos amores e ódios.
Não sei ainda se ele se chamará Antônio ou Antônia, mas de qualquer maneira é enorme a alegria que sinto quando penso no assunto. Parece que, apesar de me sentir uma mulher livre e plenamente consciente dos meus deveres para com o mundo – sou dele um cidadão tão importante como qualquer outro –, a maternidade é que realmente terminou de completar a feição da minha pessoa: é como se o meu homem houvesse participado da criação do meu ser juntamente com Deus, que a iniciou e a deixou pela metade.
É, pois, esse diário uma reflexão sobre a minha vida de ser humano, de mulher e de mãe; também sobre a realidade que me pertence. E a prova última de que, apesar de não parecer, eu sou livre, amei livremente e que sou como sou, porque, antes de tudo, é grande a minha responsabilidade para comigo mesma.
Tenho hoje 40 anos e, assim que obtive certeza de que trago comigo um filho, resolvi deixar a ele os relatos e pareceres de minha estada cá nesses desertos sertanejos de Pernambuco. Só quisera ter coragem – o que agora me falta – para realmente isso fazer.


7 de 12 de 1949:

Achei dentro da minha bíblia todas as cartas que recebi durante esses anos. Graças a Deus, apesar do alheamento em que me encontrava, mecanicamente fui guardando tudo. Assim, se um dia me resolver a, realmente, contar as histórias de minha vida, tudo me ficará mais fácil.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

X

Infelizmente, o episódio do homem do dinheiro não terminou aí. Alguns dias depois da noite de Natal, recebi dele as seguintes palavras:

“Branca:
Para me redimir do grande pecado que cometi perante tua pureza, farei tudo.
A morte anda medonhamente a percorrer a Terra e aqui nesses sertões ela parou para descanso.
Peço-te que me perdoes e, para não pedir isso gratuitamente, dou-te a mim mesmo na morte.
H.

P.S. Não te preocupes, no entanto, pois foram várias as razões que a isso me levaram, e não só as que me incriminam diante de ti.
H”.

Veja-se só aí que vida a minha tão cheia de sobressaltos! Quem diria que eu pude sobreviver a tanto...

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

VI

Nem sabia quem ali o trouxera à enfermeira. Tinha pena, então, dobrada por nada ter consigo e por estar ali sozinho, entregue à inconsciência e à solidão. O médico dissera algo como “dose excessiva”, mas, para sua inexperiência, isso nada significava. E tudo junto fez com que ela desvelasse o doente de maneira incomum: havia nas feições do rapaz uma carência total de esperança e o seu desespero diante do que ele chamava de “fantasmas da arte” e da imagem de uma mulher era tanto que causava pena enorme.
Não chamava nomes. Chorava muito, no entanto, quando evocava o nome de Deus. Pedia paz a todo instante. E a Ele implorava que a mulher ouvisse os seus gritos angustiados e o viesse salvar do inferno em que caíra. Blasfemava a todo instante e desdenhava dos cuidados da enfermeira, dizendo que só a mulher o poderia salvar.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

VII

Mais uma vez, as vísceras do monstro dos Recifes esmagaram a minha alma: elas roubaram, como sempre, um amigo meu muito querido.
E quero aqui deixar a ele as poucas palavras que consegui escrever, sem deixar de frisar que a minha real tristeza ficou comigo e não me sairá jamais. E que a alma agitada do amigo meu se aquiete e abandone o palco de sua morte – não há pior inferno do que as ruas monstruosas dos Recifes –.

Meu amigo:
morreu contigo
parte grande de mim mesmo.
E teu corpo partido
leva consigo o meu
também partido pela dor.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

20 de 8 de 1979:

Faz uns vinte dias que comecei a contar as histórias de minha vida. Gostaria bastante de ter começado a fazer isso mais cedo, porque só agora me apercebo de que a morte anda muito próxima de mim. Sinto-me muito cansada e dores pelo peito tomam conta de mim vez por outra. Quando me for, apenas sentirei saudades do Antônio, como sempre e nada mais. Sempre dei muito de mim mesma à vida e morro agora sem nada lhe dever.
Alivia-me, no entanto, a simples idéia de que serei mais útil ao Antônio depois de morta, porque sem dúvidas lhe velarei os passos mais proximamente do que nunca, mesmo durante todo o tempo de minha vida.
Apressarei as minhas narrativas de agora por diante para que pelo menos fiquem a Antônio os fatos que me marcaram e à minha vida de maneira mais incomum e mais nada. Espero poder fazê-lo, apesar de sentir tão próxima a morte de mim mesma.

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

VII

A pintora chorava, quando lhe apareceu alguém e lhe falou do poeta: foi só então que descobriu o porquê de não ter conseguido, de maneira nenhuma, concluir outra face dele que houvera começado.
E seu choro, cuja verdadeira razão desconhecera, agora se esclarecia: ela chorava pelo poeta que não conseguia retratar, e por si própria; pelo desencontro de suas vidas; pelo amor forte que ela sentia por ele; pela tristeza; pela vida, às vezes tão cruel com alguns.
Abandonou seu esboço, levantando-se e prometendo a si mesma pintar somente quando o poeta se restabelecesse.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

VIII

Eu tenho segredos na alma e no corpo. Dos segredos da alma, tento falar e, às vezes, consigo. Dos do corpo, não posso: meu corpo tem sua própria voz que me é desconhecida. Acho belo, no entanto, seu jeito meio louco de dizer à Mulher que a ama e muito. E mais belo ainda o fato de que é compreendido.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

Madrugada de 5 de 9 de 1979:

Sinto que é hoje o dia de minha morte e essa idéia me veio devagar. Mas me sinto para ela tão preparada, que nem sei direito onde pode estar a vida que sempre andou forte dentro de mim.
É pena que tenha vindo justo no dia do aniversário de Antônio, mas, apesar disso, será bem-vinda.
Pude deixar a Antônio, como gostaria, os fatos que mais marcaram a minha vida e parece que se esvaiu assim o pouco dela que me restava ainda. Espero firmemente que tenha ido para meu querido Antônio, filho muito amado, esse fio de vida que me escapuliu!

A Antônio:
É essa a minha herança, meu filho: a da consciência, com suas responsabilidades grandiosas e amedrontadoras. Mas não te aflijas com as ânsias que ela traz em vida porque, quando a morte vem, levemente nos pousa as asas: ela sabe o quanto nos foi grande o peso da vida. Própria experiência, afianço-te.
Saudades da mãe que te amou muito:
Branca.

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

VIII

Quando ela lhe apareceu, ele apenas chorou. Seu desejo de vê-la era tanto, que nem sequer se lembrara de que estava acolá deitado e vencido e que era desse jeito que seria visto.
A pintora achegou-se carinhosamente a ele, acariciou-lhe o braço esquerdo ferido e os cabelos assanhados. E, no intervalo de seus soluços, conseguiu dizer-lhe:
- Vou ficar contigo aqui... acalma-te.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

28 de 12 de 1933:

O homem do dinheiro me mandou uma carta e pelo portador vim a saber do seu suicídio. Não sei que espécie de sentimento para com ele me causou tamanha dor e tristeza. No entanto, a carta que me foi enviada por ele aliviou-me muito das culpas que poderia ter vindo a sentir. Agradeço a ele sempre e sempre agradecerei por ter sido delicado comigo em vida e na morte.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: REFLEXÕES E CONFISSÕES

IX

O obscuro e terrível, o monstro dos Arrecifes rondava-me a alma certo dia, quando veio a mulher ao meu encontro. E, com a calma que trouxe às minhas ânsias – em voz e em carinhos precisados –, apontou-me com invejável lucidez a alumiada aparição cheia de luzes de outro monstro assustador.
E a luz, emanada da loucura dos recifes e até de sua inviabilidade, serviu para me mostrar a vida verdadeira: máscara medonha de trevas alumiadas.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA

V

Estranhas coisas há
na condição de SER – homem –:
ouço vozes mortas,
vozes ressuscitadas de aléns desconhecidos.

São falas geladas
de quem já da vida desistiu.

São vontades alheias
que ainda cá comigo permanecem
nas suas ânsias loucas
de cristal virar.

São ventos frios;
frios medos e mães que ressurgem em filhos.
E que falam aos vivos
através de um morto
para que sobreviva,
apesar da vida.

É a Arte,
com seus enormes Fantasmas
a rondar a casa
e a angustiar
a alma daquele
que lhe dá sempre só fugas.

Ah! quem me dera
possuir coragens
para desvendar
as vozes frias e ansiosas
da mãe que já me foi
e poder dizê-las,
maldosamente,
a assustar a vida.

Jogo de trevas

DAS CENAS OU UM OBSERVADOR MISTERIOSO E INEXISTENTE

IX

Em um qualquer dia, foi a pintora atropelada, mas, apesar de muito ferida, ainda permaneceu com vida. Essa foi a prova última para o poeta de que o amor lhe dera forças para enfrentar a vida.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA

VI

E o Monstro dos Arrecifes

Beijou carinhosamente o homem e retirou-se. À porta, no entanto, teve um sobressalto e, com medo de alguma coisa no ar, voltou-se, riu a ele e veio beijá-lo ainda outra vez.
A pesados passos, lá longe, vinha-se achegando aos poucos a rainha dos pélagos do mar. Fluida loucura, essa alma cancerosa da doidice andava atrás de vítima a matar, em cumplicidade com outro danado monstro seu marido: o casamento da perfeição – aquele monstro, o dos recifes, e a morte em cópula se apresentam, ansiosos por destruição.

Não merece Alegria
quem não sabe cantar.
E eu prezo-a tanto
e me é tão cara
a Desejada
que não a quero fugida,
de entre as mãos das minhas ânsias.
E esse canto é a chave
com que a quero prender.

E sai a mulher em mansidões de alegria, perdida em sonhos. Inocente diante de seu destino.
De longe os monstros a vêem. Lançam-se em sua direção como verdadeiros abutres.

É que a muita Alegria,
depois que foi encontrada,
é jamais abandonada
pela ânsia em procurá-la.
E é tanta a Alegria
e deusa de tanta beleza
que me parece possível
nunca poder se acabar.
Deusa bela e imortal
a Alegria alumia,
mostra em veredas sombrias
a luz com máscara de sombra.
Há luzes em todo o Universo.

E a moça, distraída pelo sonho e descuidada, é atropelada pelo Monstro dos Arrecifes e pela Morte. E do dia já morto, apenas restaram vidros luminosos, em cacos, pelo chão, em meio dos quais se achava deitada a moça, agora já ferida.

Descobri com a Alegria
a escuridão feiticeira:
a que, apesar de umbrosa,
traz consigo, alumiada,
uma bola de cristal.
Onde andará a Morte,
amiga de todo o Mal,
que nessa bola mostrou-se?

E o Monstro dos Arrecifes, irmanado ao outro também cruel – o da Morte –, ficou acolá, na noite, com mil olhos de vidro espalhados no caminho e mais unhas de tanto brilho quanto. Deixaram lá os seus brilhos e saíram, ainda mais obscuras, pela noite adentro, misturadas, atrás de outro cuja vida, covardemente, já deixara de habitar:

As almas todas maravilhosas
que em sonho certo dia me chegaram,
encontrei-as todas,
em placidez,
sobre um belo corpo de Mulher.
Enviada a mim nem sei por quem
(acho que pela vida ou pela Morte,
para se verem livres de lamentos)
a Mulher tirou-me do escuro
e mostrou-me a luz com mansidão.
E com cativos gestos e carinhos
tirou-me a venda e os pesadelos,
avivou em mim os olhos mortos,
trocou por bom um sonho mau.
É que nele viajei
a um tempo que não era meu,
e do tempo que me pertence
fugi à incoerência.
A Beleza não me estava à porta:
a Alegria fora-se com ela.
E os demônios da Tristeza
matavam-se pouco a pouco.
E tive minha vontade,
fé e liberdade
obscurecidas, perdidamente,
pela dor enorme de ser homem.
Mas outros olhos, agora,
a mim desconhecidamente serenados,
olham comigo novamente.

Mas lá, estirada ao chão, toda a serenidade lhe fora. E também a do poeta, ao descobrir o tanto de covardia que existe na Alegria: essa danada se anula diante de quase tudo.

Jogo de trevas

DO TESTAMENTO DE BRANCA

XI

Ainda naquele confuso dezembro de 1933, são dois os fatos que, somados aos anteriores, levaram-me ao período de alheamento em que caí: longo e cinzento, são só névoas o que dele me restou.
O primeiro, uma carta de Ivã; e o segundo, o acontecido da noite de Ano-novo.
Deitei-me na noite do dia 29 muito cansada e o sono pegou-me logo que me estirei na cama. Fazia muito tempo que não dormia bem e meu corpo pedia descanso desde muito. Meu sono nesta noite foi pesado e diferente do que sempre fora: o meu é leve e qualquer pequeno barulho pode me despertar. No entanto, naquela noite, eu não sentia possuir nenhum poder sobre mim mesma. E foi isso exatamente – o grande cansaço – que me impediu de saber quem foi ao meu quarto e lá deixou-me uma outra carta de Ivã.
Além da carta, a pessoa que lá foi me afagou o rosto e os cabelos carinhosamente, deitou-me no rosto beijos e depois se retirou. Mas isso não o posso afirmar com certeza se realmente aconteceu ou se não foi fruto talvez de um sonho. A vaga lembrança e difusa de algum carinho alheio, no entanto, eu a tenho. E acho que morrerei sem saber se tudo foi um sonho de amor ou se realmente aconteceu.
Eis a carta que me deixaram, naquela noite:

“Minha querida Branca:
Lembra-te de que existe o sonho e, se morro em breve, deixo, no entanto, o exemplo de que é por ele que devemos lutar mais arduamente – é por ser livre para sonhar que o homem vem ao mundo.
Fui mesmo uma negra sombra que passou voando rápida demais pelo mundo e sem tocá-lo nunca com os pés, mas jamais, em tempo algum, ninguém sentiu a luminosidade da alegria tão de perto quanto eu.
Fique certa de que eu a abarcarei com meus braços e a prenderei eternamente.
Adeus, Ivã”.

E eis o segundo – o acontecido do Ano-novo:
Como havia sido planejado, houve uma grande festa de Ano-novo, naquele ano, na cidadezinha sertaneja, que nunca mais viu outra desde então. Eu a esperava com muita ansiedade e ao novo ano também, esperançosa de que ele trouxesse tranqüilidade e paz. A festa correu animada e linda. Já de manhã (e ainda ela assim se ia), vi de dentro do saguão a figura muito amada de Ivã e corri a abraçá-lo e cumprimentá-lo pelo ano novo que chegara. Na inocência que me levou até ele, ia pensando em como abordá-lo e, sozinha, falar com ele sobre tudo.
Mas não quiseram os deuses que eu soubesse nada sequer dos acontecidos todos: ao chegar bem perto de Ivã, que também corria para mim, ouvi o canto de uma ave e ao mesmo tempo um tiro que o derrubou quase aos meus braços, tão próximo estava de mim. E, quase tão rapidamente quanto tudo, Ivã foi arrebatado de meus braços e levado embora para sempre.

Jogo de trevas

DOS ESCRITOS DE ANTÔNIO: AS ANGÚSTIAS DO POETA

VII

Primeira elegia ou a morte de Ivã

O Destino traçou:
no grande palco do medo,
a claridade cá dentro
avistara já lá fora,
confundidos, Ivãs e negrumes da noite.
A Branca-claridade – a que estava
cá dentro a misturar-se com luzes e
alegrias da festa –
sai a abraçar emocionada aquele que
cá fora acabara de chegar.
O tiro (com sua luz,
que se confundia com a da lua;
e com seus ruídos,
misturados com o cântico)
apagou como sempre os mistérios escuros da vida,
provando assim com dor
que Ivã estava certo
e não louco:
corpo branco,
vestido de alvura mais branca ainda
manchava-se de um encarnado sangrento,
esvaído do preto abraçado com carinho.
Tirou-se, então, a máscara teatral
da alegria, e
o corpo que antes corria,
cheio de luminosa alegria,
agora parava, abraçante,
diante do negrume ferido
e gemente que lhe caíra aos pés.
O grito ainda saía-lhe e,
novamente, o pássaro falou.
Ave agourenta,
que sozinha lá continuou
a servir de carpideira,
enquanto cá – lugar de caos luminoso
escurecido –
já alguém roubava da brancura,
(agora rubra),
o pedaço negro-e-rubro de sua alma.

VIII

Segunda elegia ou a Ivã

Ai, sombra de mim mesmo
que na própria sombra se perdeu.
Deixou loucas palavras?
que maltratam
e frisam e lembram
a nossa nulidade
diante das oprimentes grandiosidades
dos Eternos Mistérios.

Sombra danada
cuja vida com a minha não mirei,
mas que faz parte do meu sangue:
lá nele sombra e rubro
se misturam
em forças de Satã;
e cá em mim as sombras são maiores,
não há dúvida.

Sombra da noite eterna foi Ivã;
noite terrível e
prolongada
na qual viveu assustado
por tantos séculos,
tempos imemoriados de torturas infindadas.

Que viva lá
outra mais clara vida
o meu tão obscuro Ivã,
perto de Aquele
cuja também loucura
o trouxe à morte.

Jogo de trevas

DO DIÁRIO DE BRANCA

02 de 01 de 1934:

Acho que hoje são dois de janeiro.
Desde ontem que nem ao menos consigo me lembrar de quem possa eu mesma ser.
Tenho certeza de que algo grave aconteceu mas não posso me lembrar o quê, precisamente.
Talvez um pássaro meu muito querido tenha voado embora... ou tenha talvez a lua atirado nele... ou ele (quem sabe?) tenha apenas perdido a voz...
Não! Eu é que a perdi.
Deus! Ajudai-me.