quinta-feira, setembro 30, 2010

"Fogo morto", de José Lins do Rego

"Fogo morto" (1943), de José Lins do Rego, pertence ao ciclo da cana-de-açúcar, como ele próprio chamou os livros que escreveu sobre o universo dos engenhos açucareiros da zona da mata paraibana.
A trilogia "Menino de engenho" (1932), "Doidinho" (1933) e Banguê" (1934) – fortemente memorialista e narrada na primeira pessoa – é mais conhecida e apreciada. Mas "Fogo morto" é uma obra mais bem acabada do ponto de vista ficcional: escapa mais da atmosfera de lembrança, constrói personagens e análises psicológicas consistentes e traça um painel detalhado do auge e da decadência dos engenhos, substituídos pelas usinas.
A nostalgia não se apaga de todo, é verdade, talvez porque ela seja um traço inapagável do autor, porém sua dosagem é mais perfeita e não impede, como nas anteriores, que questões sociais e políticas sejam trazidas e avaliadas.
A obra é dividida em três partes: a primeira – O mestre José Amaro – conta a história triste de um seleiro amargo, cuja vida foi sendo destruída por condições adversas, tanto políticas quanto psicológicas.
A segunda – O engenho de seu Lula – narra a saga do engenho Santa Fé, desde seu apogeu, quando pertencia ao Capitão Tomás, sogro de Lula, até a derrocada, quando simboliza todo um universo em decadência. Essas duas partes iniciais apresentam um clima triste. José Amaro fez valer na sua casa, como num espelho, a violência das relações sociais do engenho; ele não conseguiu quebrar o círculo de opressões de que era vítima, e vitimava sua filha (Marta) e sua mulher (Dona Sinhá) com grosserias verbais e incompreensões de toda sorte, as quais enlouqueceram sua filha. Seu final é adivinhável: o círculo que ele fortaleceu o pegou e ele foi abandonado pela mulher e intimado por seu Lula a sair da terra em que vivia arranchado de favor. Sua desumanização (o povo dizia que ele virava lobisomem) e seu suicídio são uma metáfora triste para os caminhos que percorreu e que escolheu repetir, sem pensar. No outro lado, testemunhamos o engenho Santa Fé ruindo, também por causa dessa roda de incompreensões e injustiças que se escolhe repetir e não atenuar – no caso, os maus tratos, a violência mesma do senhor contra os escravos criaram o abandono do engenho, que não pôde mais seguir com a caldeira acesa (daí o "fogo morto" do título).
Esses dois espelhos que se refletem entre si criam um
infinitum de desigualdade, violência, incompreensão e injustiça que, realmente, é a cara desse estorvo colonial que continuamos a arrastar na região, desde a instalação dos primeiros engenhos.
A terceira e última parte – O capitão Vitorino – dá um certo alento. Vitorino é um personagem quixotesco impagável que, apesar das pancadas de todas as direções que levava, achava que se ergueria, com sua ajuda, na região próxima da cidade de Pilar, na Paraíba, um tempo melhor, em que "as vilas deixariam de ser bagaceira de engenho". Ou seja, ele via, na decadência dos engenhos, um ponto positivo: as cidades não mais ficariam subordinadas às casas-grandes.

É bom ver como, aos poucos, realmente, isso foi acontecendo... Também é bom ver, na pele, como ser mulher foi ficando, desde lá, cada dia mais fácil... Ao contrário de José Lins do Rego, não tenho saudade desse tempo bruto que espero que fique cada vez mais longe...

domingo, setembro 26, 2010

"A bagaceira", de José Américo de Almeida

"A chamada geração regionalista dos anos 30 representa a culminação desse processo de descobrimento da realidade brasileira." (A. Medina et alli.)

"Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã." (José Américo de Almeida)

“A bagaceira” é o portal do Regionalismo de 30, o primeiro livro dessa tendência recorrente que, desde a sua formação, a literatura brasileira insiste em visitar e revisitar – o Regionalismo.

A crítica, na pessoa de Otto Maria Carpeaux e M. Cavalcanti Proença, e seus pares, na de João Guimarães Rosa, entre outros, são unânimes em apontar “A bagaceira” como o livro que abriu os caminhos do romance moderno brasileiro.

É evidente que o preço do pioneirismo é alto e que os seguidores terão o privilégio de ajustar, recriar e aperfeiçoar, alcançando maior êxito. Mas, ainda assim, “A bagaceira” merece uma referência cuidadosa.

Primeiramente, é preciso registrar a forma, que justapõe, entre os capítulos, pequenas cenas “quebradas”, à maneira do cinema. Isso desconstrói a linearidade narrativa, típica da tradição, e coloca, realmente, o livro na galeria modernista.

Além dessa modernidade na composição, há o traço linguístico ou estilístico propriamente dito: o autor tem duas línguas – a do narrador (culta e mesmo erudita, às vezes) e a dos personagens, a qual obedece a imposições temáticas (quando o uso da linguagem regional é não só presente mas também intencional) e sociais (quando sua variação marca posições diferentes na escala social). É marca modernista, é bom repetir, o acolhimento da pluralidade linguística, quebrando a erudição monolítica, típica da tradição literária.

Por seu turno, o conteúdo é também modernista, no sentido de que a obra faz parte do esforço do período de revisitar o Brasil como tema central, agora não mais edênico (como no Romantismo), mas problemático (como vinha sendo estudado e mostrado desde o Pré-modernismo). Essa perspectiva denunciante, não tão presente no Primeiro Tempo Modernista, acentua-se na prosa dos anos 30 e mesmo a caracteriza, por necessidades próprias do período, ou seja, o fato de a Primeira República ter ficado focada na região Sudeste criou uma ignorância do Nordeste, suprimida por esse traço regionalista marcadamente nordestino.

O enredo se desenrola num engenho de açúcar da zona da mata (brejo, como é dito no livro) onde se contrastam duas realidades políticas e culturais.

A do sertão é trabalhada por meio de retirantes que, fugindo da seca de 1898, chegam ao engenho Marzagão. Sua situação é tal que a fuga não os liberta; apenas os coloca numa engrenagem trágica recorrente – “o que tem de acontecer tem muita força”. Esse núcleo é represntado por Valentim Pedreira, proprietário sertanejo, e seus filhos Soledade (biológica) e Pirunga (adotivo), que, entre a multidão fétida que se retirava, recebem, sem sabermos por que, permissão do dono do engenho para “poisar” (“Arranche aquela gente”, ele disse, apontando, entre tantos, somente os três).

A realidade do brejo é representada por Dagoberto Marçau, proprietário do engenho; seu filho Lúcio; Manuel Broca, o capataz; e as sequelas da escravidão – não mais o escravo, mas uma “escória de mestiçagem”, como diz o autor, a qual restou da Abolição incompleta que escrevemos.

O enredo se dá num choque entre esses dois “brasis”: o sertanejo é lacônico, vencido pela seca (não humilde), solidário, ligado à terra, livre; o brejeiro é falador, humilhado pela escravidão, egoísta, subjugado pelo feitor – elo importante da corrente interminável que prende tudo dentro dessa lógica primitiva de propriedade e de autoridade.

E é exatamente essa lógica bruta que triunfa e sufoca a do sertão: Dagoberto violenta Soledade, materializando o código breve que tudo permeia: “o que está na terra é da terra e reverte ao dono da terra”. E isso derruba todos, de várias maneiras – Soledade, Valentim, Pirunga e mesmo Dagoberto e Manuel Broca, o feitor.

Esse enredo de várias degradações só é atenuado, timidamente, na descrição final do engenho Marzagão: Lúcio, projeção de José Américo, depois da morte do pai, adotara métodos mais modernos no gerenciamento do engenho, o que parece ter melhorado a vida daqueles brejeiros.

Mas, diz o narrador no último quadro, a felicidade gerada suprimira a alegria, e a seca de 1915 reproduzia os mesmos quadros... Ou seja: a estrutura política e, consequentemente, agrária do brejo, ou a terra de Canaã, como é dito no livro, continua a transformar gente em bagaço e os poderes públicos continuam indiferentes à seca.

Que pena...