domingo, setembro 30, 2007

Nosso século

Há pouco ganhei de presente um livro chamado “Cisnes selvagens”, da jornalista chinesa Jung Chang, e, devagar, pude desfrutar de uma descrição nua e crua da história da China ao longo do século XX. Essa leitura, ao lado do filme “Lanternas vermelhas”, do diretor chinês Zhang Yimou, a que tive o privilégio de assistir recentemente, por acaso, fizeram-me mergulhar longamente em mim mesma e no meu tempo. Sim, porque o livro ou o filme bons não são aqueles que a gente vê, mas os que ajudam a gente a se ver.
O “Cisnes selvagens” é um longo e ressentido relato de uma chinesa que, através da história de sua avó, de sua mãe e de sua própria, retrata o difícil século XX na China, numa perspectiva feminina. É, portanto, o livro uma espécie de reportagem biográfica que caiu fundo em mim também porque é obra de uma mulher. É claro que, geralmente, visões quebradas (como as de geração, gênero, raça, classe ou partido) não dão um resultado totalizante apropriado. Mas acompanhar o raciocínio da autora me fez mergulhar nesse século que me coube e pensar sobre o que parece dar a ele uma aura de benefícios incalculáveis para as mulheres.
Quando a autora veio para o Ocidente (ela mora na Inglaterra e, hoje, é casada com um inglês), impressionou-se com a igualdade que prevalecia nas relações sociais e pensou que não havia diferença entre as pessoas. É que ela vinha de uma sociedade em que os estratos sociais equivaliam a direitos diferentes e ser filho ou ser de determinada classe eram impedimentos ou facilidades irrevogáveis na China.
Sua vivência na Inglaterra, mais tarde, mostrou-lhe que as pessoas eram diferentes, mas havia uma questão fundamental: o mais forte não tinha o direito de maltratar o mais fraco, nos países ocidentais, como acontecia na China. Sua avó, por exemplo, era concubina de um homem poderoso e, quando ele morreu, sua primeira esposa tinha o direito de mandar matar todas as outras, mas, felizmente, essa não era a sua vontade, e sua avó foi poupada.
É doloroso demais ter acesso a um relato tão claro sobre o malogro do jeito de pensar que norteou tão fortemente a minha geração: é que a Revolução Comunista não quebrou, mas apenas se serviu dessa lógica, e ser filho de proprietários de terra ou de comunistas de primeira hora fez da China um lugar horrível para as pessoas que, como a autora, eram crianças ou adolescentes durante a Revolução Cultural e depois dela.
Uma idéia está por trás de tudo – a de que os fins justificam os meios. E os fins foram adiados e adiados, e os meios foram adquirindo a face tenebrosa de genocídio... A bela utopia da igualdade foi afundando, presa à da liberdade e à da fraternidade... E quedamos todos sem contrapartida... Havia dois jeitos de pensar no século XX – um achava que era o certo e que o outro estava errado e precisava ser substituído...
E num mundo de quase sete bilhões de habitantes só há dois jeitos de pensar? E na China comunista ainda prevalecia a lógica da hierarquia? E a igualdade significa igual acesso à matéria ou sacrifica, necessariamente, a liberdade? É possível “passar uma régua” e fazer todos pensarem uniformemente? E há diferença entre o perigo de uniformização para padrões de consumo e o de uniformização para posições políticas, filosóficas e existenciais? E pensar certo é pensar numa só direção? E seremos felizes quando todos pensarmos de um só jeito e quando tivermos o mesmo ponto de partida e o mesmo ponto de chegada? E porventura todos desejam a mesma coisa? E o ponto de partida, dentro da diversidade humana, pode ser igual? E o ponto de chegada existe? E, depois de descobrirmos que a resposta a essas perguntas é “não”, o que faremos de nós?
Por seu turno, o “Lanternas vermelhas” me impele a outro raciocínio: acompanhamos a chegada de uma quarta esposa ao palácio de um poderoso senhor e a sua queda subsequente pela lógica da hierarquia e da competição que, apesar de ser desfavorável a todas as mulheres da história, é a que predomina entre elas, pois não conseguem sair dela, já que ainda não estão prontas.
A espetacular revolução do século XX não foi a ruidosa Revolução Comunista, mas a silenciosa e desanunciada Revolução Feminina, que trouxe um novo papel para a mulher e, consequentemente, um novo homem, uma nova família, um novo filho, uma nova filha, um novo tempo... Pena que esse despertar, como todos, seja um processo penoso e custoso... Pena que o homem esteja impactado e, confuso, ainda não saiba ser partícipe dessa nova mulher que tão depressa apareceu diante de seus olhos... Ou não foi capaz de perder sua posição privilegiada, sem saber que há perdas necessárias... Pena que nem todas as mulheres conseguiram ainda acessar o roteiro da mudança, presas que permanecem dentro da lógica que as penaliza...
Como sempre, rumaremos em frente e negociaremos nossas vidas e nossos futuros como nos for possível, todos nós – homens e mulheres. Seres narrativos que somos, contaremos nossas histórias uns aos outros e seguiremos fazendo mudanças, assimilando perdas e aproveitando ganhos, desistindo de umas coisas e mantendo outras, tateando... O que não podemos de jeito nenhum é abrir mão uns dos outros e achar que ser feliz sozinho é suficiente.

sábado, setembro 08, 2007

Chá de rolha - 8

Está acontecendo um troço esquisito comigo, mas ainda não sei o que é. Minha irmã Débora, minha insubstituível e organizadíssima sócia, além de famosíssima diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog, tem tentado me ajudar, mas não tem sido possível – o troço é grande e ainda não tem nome; daí advém a dificuldade, inclusive, de diagnóstico do caso.
A primeira ajuda que ela pensou foi comprar uma agenda para mim. Estávamos já no mês de fevereiro, ela ficou intrigada de eu ainda não possuir uma, fomos juntas a uma livraria e adquirimos, baratíssima, uma agenda que ninguém mais queria, àquela altura do calendário. Ela me mandou escrever umas coisas, como prazos para entrega de originais de provas, ou devolução de provas corrigidas, mas nada disso adiantou: é que não tenho o costume de consultar agendas, e a minha se tornou um lugar de ir anotando versos soltos e idéias que vão nascendo e que, depois, transformo em textos.
Débora tem também me chamado atenção para o fato de que estou articulando mal as frases, que digo demais a palavra “negócio”, tentando, sem conseguir, me fazer entender. Estou tão aloprada que minha pressão subiu e minha médica receitou um diurético e caminhadas diárias de quarenta minutos para controlá-la. Tenho rodado a praça de Casa Forte quem nem uma maluca, apesar de achar que isso pode ofender minha psicologia, porque não é bom ficar andando em círculos, sem sair do lugar. Mas paciente é paciente, e estou tentando seguir as indicações. Digo “tentando”, porque tenho esquecido de tomar o remédio.
Pois bem: sábado passado, fui andar na praça. Só que tinha marcado com meus alunos uma sessão do filme Germinal, baseado na obra homônima de Zola, para estudarmos o Naturalismo. Em outras palavras: esqueci de ir dar a aula.
Isso é coisa que não me acontece. Tenho horários fixos há anos, costumo dizer que o Recife inteiro sabe meus horários, e nunca falto às aulas. Mas este ano tenho novas turmas, tive algumas consultas médicas e perdi dois compromissos seriíssimos agora em agosto – uma palestra organizada por uma escola na FUNDAJ e essa aula.
Quando me lembrei dela de noite, chega me senti mal, fiquei tonta e precisei sentar, paralisada de terror!
O que está acontecendo comigo?
Não me fiz de rogada: confeccionei uma máscara de carnaval linda, com lantejoulas coladas e fitinhas, e fui dar aula esta semana para a turma com ela. Cheguei à sala e disse, de máscara:
– Eu sou a nova professora, vim substituir Flávia, porque ela morreu de vergonha sábado de noite, quando se lembrou da aula de vocês.
Os alunos morreram de rir! E fui aclamada a mais doida das duas professoras, porque há uma bolsa de apostas, e eu e Débora costumamos empatar, sendo que há uma tendência pequena de ela ganhar, até porque saí do NAP e ela, coitada, continua lá, o que ameaça a integridade psicológica e pedagógica de qualquer um.
Voltando, a história ficou engraçada, pedi desculpas aos alunos, mas ainda não consigo saber o que se passa. Meus cinqüenta anos, talvez, estejam cobrando seus juros e suas correções, e encontro-me sofrendo de falência múltipla de neurônios.
Também é muita coisa acontecendo! E não tenho tempo de sedimentar um acontecimento, e já outro vem, com suas urgências e requerimentos.
Nesses últimos anos, uma montanha de acontecimentos me deixou pasmada comigo mesma: minha casa e minha vida têm trazido terremotos tênues e brutos tão próximos uns dos outros, que não tenho tido condições de entender suas seqüências, conseqüências, seqüelas...
E eu tenho reagido a tudo de uma forma diferente. Estou surpresa comigo mesma, não me reconheço... Uma arruela qualquer funciona diferente dentro de mim! Preciso me apaziguar com essa pessoa nova que emerge em mim mesma e com seus desejos e reações. Devagar, preciso me olhar no espelho e ir, aos poucos, me reconhecendo de novo e aprendendo a saber como age e como pensa essa pessoa recém-nascida que brota, poderosa.
Preciso me acalmar e perdoar a vida que perdi, esperando, em vez de construir, e acalentar a vida que chega, louvando-a, pois não é todo mundo que tem vida indômita dentro de si, depois de um inverno bruto tão longo...
Preciso achar na água turva o diamante: é que a vida miraculosa que funciona dentro de mim salva tudo à minha volta, e vem daí a surpresa, inclusive, de constatar que meu filho, que aparentemente tem tão pouco, é capaz de amar, conquistar e ser amado! Afora outras recuperações menores que é preciso notar, mesmo sem citar.
Espero conseguir entender de todo o que vem de novo, tendo coragem de assumir o que a vida me traz, mesmo me dando um pouco o direito de sentir medo e de fraquejar, tropeçando nas palavras.
Quero esta vida nova que palpita selvagem dentro do meu coração assustado; ela é inesperada, e estou confusa, mas, pensando bem, ela combina comigo, que sempre acho que continuar tentando lembra amar, que tudo explica!