domingo, fevereiro 25, 2007

Adversativas

O moço
que me sabia
perdeu-se.

Gritei seu nome
chorei
chamei desesperada.

Mas ele partiu.

Todo amor é difícil:
luta
intersecção
espaços...
definições impossíveis,
molhadas de lágrimas.

Mas odiar é mais difícil ainda.

Nem sei agora
como falar
para quem começa:
– Cuidado, meninos,
isso é faca,
pode ferir,
matar...

Mas tenho uma fresca cicatriz
bem perto de mim.

Vivi cativa
emudecida
dentro de uma ampulheta
esperando ser feliz.

O tempo passou,
ficou perdido?
gastado?
ou foi o tempo preciso?

Mas o vidro estilhaçou-se!

E agora?
enxugar meu próprio rosto?
engolir meu soluço?

Mas trago a salvo
escondido
soberano
meu desejo
meu sentido.
E saberei consenti-lo.

sábado, fevereiro 17, 2007

Chá de rolha - 6

Inaugurações

Eu e Débora, há duas semanas, fizemos pequenas reformas na sala de aula: havia pinturas fofas e prateleiras vazias.
Como bem sabe João Cabral de Melo Neto, prateleiras não podem ficar vazias – é como se faltasse algo à sua natureza. Assim, resolvemos comprar “coisinhas” para fazer das prateleiras prateleiras de verdade.
E passamos horas na loja olhando tudo, comparando preços e prevendo cada coisa no seu lugar.
É claro que aconteceram maravilhas e tragédias, essas coisas inseparáveis quando o assunto é vida e relacionamento.
A primeira coisa que nos chamou atenção foram três gaivotas lindas, como tudo que é caro, e inúteis, como tudo que é lindo. Ficamos confusas, como sempre.
E começamos a procurar outras coisas, mais baratas. Mas com as gaivotas nos recessos dos nossos corações. Aí adquirimos uma canoa, um coqueiro, uma máscara, um peixe emoldurado e duas africanas “estilosas”, como diz meu filho Diogo, concebidas por um designer italiano, de acordo com a vendedora.
Ficamos hipnotizadas! Eram esguias e trajavam roupas rústicas, uma delas segurava um abajur cujo tom combinava com o da sua própria roupa. Inutilmente lindas...
Corremos para casa, para, numa análise combinatória, arrumarmos tudo, uma parte na casa de Débora, outra na sala de aula, ainda humanamente vazia.
Então tiramos três retirantes de uma mesinha de Débora e, no lugar, pusemos as duas triunfantes africanas!
No fio com o qual ligaríamos a lâmpada da charmosa nativa, havia um papel escrito em inglês: “warning”, avisava ele. E lemos com cuidado e dificuldade tudo o que estava escrito, algo como: “isso não é brinquedo, não deixe criança pegar; o plug é especial, não force se ele não entrar”. E, em negrito, a recomendação mais importante: em hipótese alguma, use uma extensão. Fomos rigorosamente obedientes.
Ligamos a lâmpada, ainda me afastei um pouco para ver o efeito luminoso, estava lindo, a luz dando ênfase à figura. Aí houve uma explosão, e tudo ficou escuro, menos a vela de Santo Antônio!
Débora teve um ataque de riso, ria tanto que tossia, curtindo que estava os últimos estertores de uma gripe. Mas eu não achava graça, caí no chão, desolada, e me tornei uma estátua de desespero.
Débora correu, para ver se se salvava da tosse com um pouco de água e eu, paralisada de terror, restava no chão e, num fio de voz, dizia: “Olha aí, Debe, detrás da porta, o quadro de luz...”
E a pobre tossia e ria e não tomava providência nenhuma, só rindo, tossindo e se lamentando do que parecia um prejuízo imensurável, já que a tevê e o som tinham tido suas luzes apagadas, e ela já pensando na geladeira, que tem mania de se quebrar.
Santo Antônio lá... uma ilha de luz, num oceano de trevas, tosses, risos e aperreios...
Aí eu venci minha desolação, que sou boa mesmo nisso, levantei-me e, no quadro de luz, notei que só um pitoco estava do lado verde, os outros todos, vermelhos. Com medo, devagar, mudei a posição do interruptor e... Fiat Lux! Tudo voltou a funcionar.
Débora achou minha providência elétrica o máximo! Quando vai contar esta história, diz assim: “Só na cabeça dela se levantar das cinzas, pensando que alguma coisa podia ser feita!”
Minha desolação passou, e aí começamos as duas a rir e a nos lembrar de outras inaugurações frustradas de nossa história familiar.
A primeira que nos ocorreu foi uma performance musical que combinamos executar por telefone – Débora no violão e eu numa escaleta que meu filho (então com 2 anos) tinha ganhado de presente.
De acordo com nossas expectativas, a inauguração do dueto seria um sucesso musical dos mais afinados, e eu em Jaboatão e ela em Recife ensaiamos o quanto pudemos.
Aí chegou o dia do encontro. Quando começamos a tocar, deu tudo errado, nem parecia que as duas tocavam “Asa branca” – uma tocava “Asa preta” e a outra, “Asa vermelha”. Ficou tudo tão horrível que meu filho desabou num choro incontido e nós só faltamos morrer de rir e desistimos para sempre do dueto musical; agora só fazemos duetos lingüístico-pedagógicos para cujos resultados nossos tons diferentes importam pouco.
A segunda inauguração aconteceu com dona Verônica, ex-futura sogra de Débora: é que ela comprou uma televisão lá pelos idos dos anos 60, o que constituía um acontecimento municipal dos mais relevantes.
Desse modo, ela encheu a mesa de laranjadas Cliper e chamou toda a vizinhança para assistir à maravilhosa atração da rua – a sua novíssima e elegantíssima tevê.
Todos sentados, ela foi ligada, apareceu a imagem nítida e, depois, tudo se reduziu a um ponto luminoso que logo desapareceu num assovio.
Irritadíssima, dona Verônica pegou a trava de ferro que fechava a porta e danou na tevê, emudecendo-a para sempre, sem nem pensar no prejuízo, que a raiva era tanta que ela ficou rica.
Agora, falando sério... Ficamos todos meio presos nessas inaugurações (a primeira vez que fazemos sexo, o nascimento do primeiro filho, o primeiro lar, o primeiro emprego...), mas Guimarães Rosa tem razão: o que importa mesmo é a travessia, o meio do caminho, aquilo que fazemos de nós mesmos e de nossas vidas, apesar das inaugurações malogradas.
Nossas escolhas vão se sucedendo e, inclusive, podemos reverter um começo desastrado, desistir de um caminho e tomar outro, ou acabar bem uma história desmantelada de início.
Como pensa meu tio João, para isso, é preciso lutar, mesmo sem resultados, que o proveito da luta é ela mesma. Ou, às vezes, ela é tão longa que não vale o resultado que traz. Mas ela em si é o ganho ou a vitória.
Já conheci quem desistiu, quem se matou e não testemunhou a recuperação do filho, quem não se abaixou quando foi necessário e não tem mais para quem ficar erguido, quem não sabe recomeçar, quem sucumbiu diante da primeira dificuldade, quem só sabe pensar que tudo lhe é adverso... E escolhe não o caminho da suplantação, mas o da acusação, que é entrelaçado com o da vitimização – “vítima” e “algoz” são palavras perigosamente próximas, como, infelizmente, já pude constatar.
A vida é uma viagem difícil. Nossa chegada a ela é uma inauguração cheia de esperança, mas o importante mesmo é ficar erguido depois das quedas, aproveitando as companhias, que não viemos sós.