sábado, abril 06, 2013

Carta aberta

Recife, 25 de março de 2013.


Prezada Prof.ª Vitória Ribas:
Comissão Permanente de Concursos Acadêmicos – PROGRAD/UPE
Coordenadora Pedagógica – NEAD/UPE

Por meio desta carta, venho, primeiramente, reconhecer o empenho da Universidade de Pernambuco (UPE) em aperfeiçoar, ano a ano, o processo seletivo vestibular, ao longo do tempo em que trabalhei na rede privada do ensino médio do estado, preparando alunos para o ensino superior. Sou professora de Língua Portuguesa, mais especificamente de Literatura Brasileira, e constato esse esforço e seu consequente resultado, principalmente nos últimos anos, quando parece ser ainda mais coerente o posicionamento dessa universidade, no sentido de, inclusive, valorizar o professor, quando do estabelecimento do vestibular seriado, que contempla e fortalece o processo de ensino-aprendizagem nos dois anos iniciais da escolaridade média. Também quero mencionar a qualidade da avaliação dessa entidade das redações vestibulares não só nesses últimos anos, mas no decorrer de vários vestibulares, que, de longe e modestamente, avalio e sigo.

Mas não posso me calar diante dessa última mudança estabelecida que tirou o conteúdo de Literatura de todos os cursos, exceto Letras, no vestibular tradicional dessa universidade a partir dos exames de 2014. Aliás, pude testemunhar quando o vestibular da UPE passou a exigir não apenas os conteúdos específicos, e considerei avanço a introdução dos conhecimentos humanísticos para todos os cursos, o que, sem sombra de dúvidas, somou no sentido da humanização de nossas relações sociais, sempre tão difíceis. Infelizmente, não é só no Brasil que há, atualmente, uma desvalorização do ensino da literatura. Mas a forma como nos portamos diante dessa constatação é, sim, uma atitude de que precisamos tomar consciência.

Não é a literatura que está em crise, deixe-se bem claro; seu sucesso pode ser constatado nas feiras literárias, nas bienais, em recitais, nos concursos e nas publicações de todo formato que existem país afora e que arrastam e movem milhares de pessoas e de instituições. O que está em crise é seu ensino.

Tenho pensado muito sobre o que tem acontecido com a literatura ultimamente e tenho ousado desconfiar de que sua desvalorização é devida à sua importância e à sua força. Sua importância pode ser verificada na sua contribuição à evolução humana, pois as narrativas sempre foram imprescindíveis à passagem de nossas experiências de geração em geração; e sua força, na sua preservação, apesar de ditadores de toda sorte que, ao longo da história humana, tentaram, com fogo e arrogância, eliminá-la.

Há uns três anos, venho sentindo na pele os efeitos nefastos da proposta do ENEM para a Língua Portuguesa, especificamente, na parte que me toca, a Literatura. Ao contrário do que, na minha opinião, o ENEM, de início, pretendeu fazer, a humanização do ensino médio, ele, na verdade, confirmou a valorização das matérias específicas dos cursos mais concorridos, a saber Medicina e, mais recentemente, Engenharia. É claro que, desde que comecei a notar a presença desse ponto no comportamento de meus alunos, não fiquei calada e venho tentando convencê-los de que as ciências humanas são importantes em todas as carreiras. Mas confesso que não venho conseguindo muito sucesso na minha lida quixotesca. Aliás, escrevi, em 2011, um texto explicitando minhas posições no JC on line, além de que também o publiquei num blogue opinativo que mantenho na internet desde 2006 (“Na linha do tiro”, 29 de setembro de 2011, disponível em http://fsuassuna.blogspot.com/).

Pode-se perceber, então, que não sou pessoa omissa frente à realidade que me cerca, principalmente a pedagógica. E ratifico o que disse então, denunciando a falta de especificidades do estudo da língua na referida prova. Nesses treze anos de ENEM, por exemplo, nunca houve uma questão conferindo se o estudante seria capaz de identificar o termo antecedente a que um pronome se referia numa situação textual, o que seria uma questão pertinente de gramática a serviço da compreensão do texto. Fique claro que o Inep traz essa habilidade como ponto importante para a competência de leitura. Outro exemplo que posso citar foi uma questão que trazia um texto do “Grande sertão: veredas” em que Riobaldo, o personagem principal, falava de um meeiro. A questão, infelizmente, perguntava sobre a relação do proprietário com o meeiro e não sobre a linguagem de João Guimarães Rosa e tudo o que ela tem de especial, criativa e inquietante. Não é preciso frisar que, na prova de “Linguagens, códigos e suas tecnologias”, a questão precisava ser de linguagem. Mas a concepção de língua com que se concebe a prova é muito reducionista e se interessa apenas pela língua como ferramenta de interação sociológica. Tudo o que em Guimarães Rosa é simbólico, estruturante, “compreendedor”, metafísico, belo e universal se perde nessa abordagem simplista da linguagem. Também é preciso esclarecer que interdisciplinaridade não significa esvaziar algumas disciplinas de conteúdo, mas a criação de relações entre as diversas disciplinas. Ou seja: inter-relacionar as disciplinas não é, de forma alguma, desqualificar uma e substituir por outra. Estou usando só essas duas questões como ilustração, mas qualquer visão rápida da prova de linguagem do ENEM revela a falta de conteúdo e de especificidade nas questões cujos textos, quase sempre, são meros pretextos para as alternativas e não parte necessária de sua contextualização.

Todas as palestras a que tive o prazer de assistir sobre o ENEM e suas pretensões resumem a avaliação a uma medição matemática e estatística pouco clara para a maioria, o que impede, infelizmente, a compreensão e a participação da população nos espaços a que tem direito e de que, aos poucos, desde a Ditadura Militar, vem paulatinamente se aproximando. Um processo de avaliação, na minha opinião, não deve ser um empecilho a esse caminho de democratização e de clareza nas nossas relações sociais e políticas.

Mas não quero me deter nessa questão, inclusive porque entendo que a avaliação do ENEM veio para ficar, e isso tem ficado cada dia mais claro, inclusive em virtude do modo como foi imposta à sociedade: sem espaço para a discussão, até do conceito de língua com que se deve trabalhar.

Por conseguinte, o que venho verificando é a diminuição pela metade das aulas de literatura nas escolas e, consequentemente, uma ameaça importante à oportunidade de apresentar aos jovens todo o acervo cultural de nossa nacionalidade que, ao longo da história, com muito esforço, foi forjada na nossa linguagem. Ou seja: estamos à beira de desistir de ler, ao lado dos nossos alunos, sobre a estruturação de nossa identidade nacional e, portanto, de oportunizar a busca ou a elaboração da identidade pessoal de cada cidadão, na pessoa desses alunos. Por ser parte do humano e até por escrevê-lo, pois foi na linguagem que nos fizemos humanos, a literatura também constrói a necessária noção de universal, sem a qual acabaremos por nos matar uns aos outros definitiva e completamente. Privar alunos do ensino médio (de classes dominantes ou dominadas, indistintamente, é bom frisar) do contato com a história da literatura brasileira e até universal, que se pode, comparativamente, visitar durante as aulas, é negar a eles a chance, para a maioria única, de se reconhecerem, nos textos, como brasileiros; como sujeitos pertencentes ao gênero humano; como seres especiais, psicológicos, biológicos e metafísicos, ao mesmo tempo. E ainda é negar-lhes o conhecimento dos padrões artísticos, culturais, linguísticos e estéticos com que nos construímos ao longo dos séculos e que fizeram de nós o que atualmente somos. Nosso desafio devia ser, portanto, a democratização desses textos e dos saberes sobre eles e não seu apagamento ou sua desvalorização. A literatura é e sempre será uma contrapartida valiosa ao reducionismo que empurra pessoas em conflito para manuais de autoajuda que simplificam nossas questões e, desse modo, não nos auxiliam, de verdade, a conhecermos e dialogarmos com nossas complexidades e dificuldades. E ela também é a guardiã de nossos olhares, sentires e saberes sobre o mundo e sobre nós mesmos, ao longo de nossa agônica história. É, por último, a via mais barata, acessível e fácil a esse processo todo, escrita numa linguagem real e potencial, ao mesmo tempo, e que é capaz de crescer em significação, à proporção que cresçam as nossas compreensões ou tentativas de. A ficção e a poesia iluminam a realidade e mostram como ela poderia ser seguindo ou segundo nossos sonhos, desejos e imaginações, ou mesmo captam novos níveis de interpretação e de percepção – quando nem mesmo sabemos, ainda assim podemos usá-las para adivinhar e, intuindo e tentando, então, saber. A literatura é, em última instância, o motor de transformações desejáveis no leitor que se transmuda no sujeito que todos queremos ser – pensantes, críticos, atuantes – e, por conseguinte, no mundo.

Não posso concordar com o novo formato dessas avaliações, principalmente num momento crucial, como o presente, em que falta à maioria dos brasileiros não só capacidade de ler um texto e interpretá-lo com competência mas também de ler o mundo que os cerca e interferir nele com ação e reação proativas. Além disso, a competência social de escrever para escrever-se e criar novos saberes não se cria alijando do currículo do ensino médio o conteúdo de literatura, que fundamenta, por sua ligação com a história e outras disciplinas, o autoconhecimento e o conhecimento dos erros e acertos do passado para a criação de um presente melhor e um futuro possível. E viabiliza a pluralidade de olhares e saberes e fazeres.

O conhecimento do passado é estruturante, e seguir sem conhecê-lo é como andar de olhos fechados. Não posso, portanto, manter-me calada diante da facilidade com que o ensino de língua tem sido desqualificado (em especial o de literatura) no nosso ensino médio e mesmo no superior, quando, por exemplo, é reduzido a cursos a distância, em resposta à recente e reprovável lei proposta pelo governo. É aterradora a ambiguidade das ações governamentais, quando hipervalorizam o ensino de língua e matemática por um lado, na prova Brasil, por exemplo (sobrecarregando, sem a contrapartida da justa remuneração, professores da esfera pública dessas áreas), e, por outro, de forma irresponsável, direcionam ações reducionistas e desvalorizadoras do professor, como as que originam demissões em massa de professores de língua de nossas atuais universidades privadas, como tem ocorrido. Além do mais, essa postura tira o estudo das especificidades da literatura – a apreciação diacrônica de diversos contextos sociais e históricos geradores de diversos estilos – do currículo do ensino médio, entretanto, incoerentemente, contempla, nas questões, os conteúdos de história das artes plásticas e até da arquitetura. Ou mesmo exige tanta leitura e interpretação, porém avalia essas competências por meio de uma prova que não carrega nem um texto inteiro, mas apenas parágrafos soltos que não cooperam para que o aluno construa a noção de progressão textual e de textualidade.

É claro que se pode acatar a prova do ENEM como primeira fase e complementar a seleção com critérios que ratifiquem os objetivos de cada instituição, conforme têm feito consagradas universidades do país, como a UNICAMP. Para que fique claro, a retirada da literatura da prova de português da segunda fase do vestibular tradicional vai transformá-la numa “seca” e ultrapassada avaliação de gramática e não vai contemplar a diversidade de gêneros que perpassam nossa sociedade ou qualquer outra, já que textos literários existem e estão presentes nas nossas relações sociais. Também mostrará, nas entrelinhas, a incoerência entre a ação e a pretensão de humanização – tão urgente e necessária – dos seus cursos, entre os quais, os de Medicina e Engenharia.

Além disso, não posso concordar com a retirada das leituras recomendadas e dos filmes propostos que, no ano passado, foram exibidos para nossos alunos, juntamente com contextualizações e debates enriquecedores. Inclusive, houve elogios de várias direções para o que se considerou uma ideia apreciável e inovadora dessa universidade. Pude verificar, durante as sessões, como era desafiador o projeto, pois não só precisávamos ensinar os alunos a ficarem concentrados durante toda a exibição, mas também constatamos que esse exercício deu resultados na concentração e na fixação da atenção dos alunos, conquistas importantes para o aprendizado de todas as matérias. Como esses conteúdos eram atrelados ao programa de literatura, adivinho que não serão mais pedidos, o que constitui perda pedagógica irreparável, na minha opinião.

Peço, portanto, que se considere a minha argumentação e que se pense com vagar na irremediável perda que está para acontecer, não sem antes dialogar com a população para que ela se coloque, já que tenho ouvido de pessoas das mais diversas profissões admiradas expressões de repúdio ao novo formato da seleção em questão. Também é preciso que se tome, sobretudo, consciência, pois, somos, sim, coniventes com o que acontece a nossa volta e podemos nos esquivar de errar se nos dispusermos ao diálogo.


Prof.ª Flávia Suassuna