terça-feira, agosto 20, 2024

O NOME DISSO

Um dos temas a que recorrentemente voltei nas minhas reflexões, neste tempo difícil de isolamento que não começa nem termina, foi o da comunicação através de nossos vigorosos meios de difusão – a televisão, o celular, a internet e, portanto, as redes sociais. Neles, há agora bilhões de produtores de conteúdo, possíveis graças à facilidade e ao baixo custo da circulação. Porém constato também que estamos morando na Babel mais absurda de todos os tempos: aquela resultante de um mundo cheio de gente com meios virtuais inimagináveis há 10 anos nas mãos, mas onde faltam pessoas que consigam dialogar.

Cada um de nós carrega um pouco de culpa dessa situação esdrúxula: alguns jornalistas e professores, infantilmente, abriram mão de suas importantes funções sociais e passaram a dizer o que todos dizem ou o que todos querem ouvir ou pior: o que dizem os que se localizam no mesmo ponto extremo polarizado. O senso comum triunfa, com suas simplificações, com suas frases feitas, com suas receitas prontas que, evidentemente, não dão conta de nossas complexidades. O governo acha que tudo isso se resolve com uma suposta escola sem partido ou com cerceamento e não com informação mais plural e mais pluridirecional.

Também somos culpados quando não buscamos canais alternativos ou quando nem sequer escutamos quem pensa diferente: presos nas bolhas das redes sociais, não só falamos numa absurda caixa de eco e só acatamos o pensamento de quem pensa exatamente como nós (se é que isso existe), mas também, por alguma razão que desconheço, estamos exigindo de nós mesmos dizer de novo o que já foi dito.

Não só: usando o poder dessas bolhas e seus mecanismos rápidos de compartilhamento, estamos, com muita violência, prejudicando carreiras, criando constrangimentos, humilhando, linchando e exigindo autoflagelações públicas espetaculosas. À proporção que desqualificamos o outro, realizamos uma cega, interesseira e, aparentemente, merecida autopurificação, num jogo parecido demais com o do Nazismo, para ser aceitável.

O resultado disso tudo é apenas embate de particularismos narcísicos que desaguam numa sociedade fraturada e incapaz de construir utopias coletivas, necessárias ao norteamento das ações cotidianas possíveis de todos. Ao contrário do que poderia ser, nessas famosas redes sociais, continuamos violentos, preconceituosos, intransigentes, ou seja, nesses canais virtuais, escorre nosso ódio de cada dia em tal volume que alguns chegam a pensar que estamos piores do que sempre estivemos.

Além disso, estamos lendo nada ou quase nada; rotulando a tevê com mil defeitos, também não estamos assistindo a ela. Presos a outra tevê que cabe nas nossas mãos e pode ser portada em todo lugar, estamos subordinados à ditadura da futilidade mais avassaladora de toda a nossa história: publicidades, coreografias, piadas, pegadinhas, músicas de baixa qualidade, correntes de oração ameaçadoras, ou mesmo rápidas e curtas frases sem autores ou com errada autoria e, principalmente, as já famosas “fake news” circulam tão rapidamente que nossa memória não retém; chegam em tal quantidade, que enchem nossos celulares a ponto de os travar e inutilizar. E, então, descartamos... Nada fica, nada permanece... Os meios de apagamento são também espetaculares – um click em “limpeza rápida” e tudo se apaga. Nada fica, nada permanece.

Tudo parece fácil, rápido, certo e possível: apagar, cancelar, prejudicar, excluir, agredir, linchar, calar... O outro é higiênico e cirúrgico; sem o outro, o mundo fica melhor e cada um de nós é dono da certeza única que está na raiz desses comportamentos. Na verdade, isso tem vários nomes – superficialidade, violência, “demissão subjetiva” (segundo Lacan) e falta de tolerância com o outro.

Sem olhar nos olhos uns dos outros, sem dizer o que o outro precisa escutar e sem nos dispor a ouvir, estamos nos afastando... Zapeando de uma guerra a um concurso de beleza, de uma criança ferida a uma baleia encalhada, somos capazes de nos apiedar da baleia... e acharmos que as guerras virtuais do mundo de hoje são uma boa prevenção contra a imigração ou a diferença que nos ameaça... Seguimos sem pensar, escolhemos atalhos, o canal que todos veem, quem tem mais seguidores, quem vende mais... sem atentar para o fato de que escolhemos. E, quando analisamos, apenas dizemos: está tudo errado... Nunca conseguimos ver as nossas próprias ações que fortalecem esse estado das coisas...

Estamos uma sociedade cheia de discursos e slogans, não de diálogos. Dizer que a tevê ou os jornais só mentem; adorar o professor ou o jornalista que diz apenas o que queremos ouvir; escolher o mesmo que a maioria escolhe; obrigar-se a dizer o que já foi dito é fugir – fugir da responsabilidade de ouvir, de pensar, de retrucar, de concordar, de discordar, de ser humano. Tudo isso está nos jogando num trajeto sem sentido que afogamos em bebida, drogas e outros desastres. E está nos colocando uns contra os outros.

O nome disso não é democracia. É tirania. O nome disso não é comunicação. É barulho. O nome disso não é felicidade. É depressão mascarada de bem-estar. O nome disso é hipocrisia. É preciso pensar as palavras “responsabilidade” e “respeito”: alertar, resistir, pensar e agir de modo mais crítico e humano, de modo mais profundo e atento. Dessa riquíssima indústria cultural também faz parte uma herança que nos ensina o que já fomos. E todos nós temos responsabilidade em relação a esse legado: não iremos repeti-lo, é claro.

Mas é necessário conhecê-lo para modificá-lo e tirar frutos dele; ter coragem para transmiti-lo. Esse insaciável apetite pelo novo está apenas nos fazendo consumir o que não tem qualidade. Enfim, é urgente pôr um fim nessa autoindulgência que está nos transformando em promotores diabólicos, sem limites e narcísicos. E não nos anjos reformadores e aperfeiçoadores do mundo que pensamos ser.

domingo, julho 21, 2024

REFLEXÕES SOBRE LITERATURA, SAÚDE E MEDICINA

Começo afirmando que, a partir da segunda metade do século XX, a História e a Medicina nos presentearam com um paradoxo: o positivo aumento da longevidade e a consequente, mas negativa, morte do mundo a que a gente pertence, antes de a gente morrer. De forma mais lenta, acho que isso sempre aconteceu, pois somos seres históricos que transformam o mundo ao longo do tempo. Entretanto constato que, recentemente, a velocidade com que essas transformações acontecem aumentou muito e, paralelo a isso, vivemos mais.

          Não tinha sido capaz de escrever sobre o impacto que o fim do meu mundo causou em mim; “fico muda quando mudo” é a frase que uso para pedir um tempo de silêncio aos que me cercam e amam. Os convites sequenciados que médicos me têm feito para fazer palestras me deram força suficiente para o esforço de escrever para compreender e explicar, o que constitui uma das tarefas de minha vida.   

No começo do mês, pensando sobre o que traria dessa vez para vocês, lembrei-me de um livro que li em 2015, cujo título é “Sobre Alice”, do jornalista americano Calvin Trillin, que, como eu, justifica seu relato dizendo que um escritor ou o jornalista têm o instinto (do qual não podem fugir) de tentar encontrar sentido nos fatos que nos atropelam durante a vida.

“Sobre Alice” é uma linda declaração de amor que o autor escreveu sobre a sua esposa Alice Stewart Trillin, que morreu antes dele, de problemas cardíacos decorrentes de um tratamento de câncer de pulmão a que ela tinha se submetido 25 anos antes. Alice venceu o câncer (morreu, muito tempo depois, da cura e não da doença em si), e a recuperação lhe rendeu a chance de ver o casamento de suas duas filhas e de ajudar muitos médicos e outros doentes a entenderem o que se passa com os pacientes em tratamento, por meio de palestras e de um famoso depoimento escrito chamado “Sobre dragões e ervilhas – uma paciente de câncer conversa com médicos”.

De acordo com Alice, os dragões do título eram uma metáfora para o fato de que a doença era um monstro difícil de matar e podia ficar à espreita e despertar quando menos se esperava; as ervilhas, outra metáfora para as coisas que, a despeito do que se pode antever antes de adoecer, têm que continuar iguais, como ir à feira, pagar as contas, perder entes queridos, manter, minimamente, a própria identidade...

O câncer foi, na história de Alice, o que ela mesma chamava de “concretização de nossos piores pesadelos”, isto é, às vezes somos surpreendidos por acontecimentos incompreensíveis, de tão brutais. O que fazemos dos episódios e de nós mesmos depois faz muita, muita diferença.

        Naquele ano de 2015, eu disse que a compreensão disso torna cada um de nós ainda mais responsável pelos outros: precisamos continuar fazendo esforços para conviver em harmonia, pois o episódio, por bruto que seja, não traz com ele passes de desculpas, nem justificativas para eventuais descortesias que possamos cometer daí para frente. As pessoas, simplesmente, não têm nada a ver com o fato, nem podem ser depositárias de nossa revolta com o lotérico caso que ocorreu na “nossa” vida e não na “delas”. E mais: não querem ficar ouvindo lamúrias... E mais: algumas são incapazes de, minimamente, entender o que aconteceu... E mais: outras acham que, se aconteceu conosco, azar o nosso... E mais: algumas não pensam sobre essas coisas, só vivem...

Um pouco calados, temos que seguir em frente com essa razão (como diz a matemática) invisível que potencializa as coisas da vida...

O que acontece comigo é que mudanças, mesmo pequenas, despertam a lembrança “do meu pior pesadelo” – a doença neurológica gravíssima de meu filho do meio, que o transformou e a mim mesma em pessoas completamente diferentes... E, sim, há as dificuldades mesmas da vida, que não param e se somam, cotidianamente, ao acontecimento, numa equação com muitas incógnitas... E muitas lágrimas... Se pais têm medo de morrer e deixar os filhos, o meu medo é maior; se pais temem adoecer quando seus filhos são ainda dependentes, o meu temor é mais longo; se pais acham difícil sustentar seus filhos, minha dificuldade é maior; se pais acham penoso contratar cuidadoras e babás, a minha pena é maior...

Não há muito o que fazer depois que um fato desses se instala nas nossas vidas: às vezes, temos que apenas suportar enquanto ele passa, como no caso de Alice; às vezes, temos que aprender a viver com suas intermitências, como acontece nas recidivas antes da cura final; às vezes, ele não passa nunca, como no caso de meu filho, que carrega, desde a fase aguda de sua infecção, há mais de 20 anos, sequelas irremediáveis muito limitantes.

E não há consolo, apesar de muitas pessoas terem umas ideias prontas que as blindam do medo da vida e suas tocaias: algumas pensam que Deus não enviaria um fardo desses para elas, pois Ele sabe que elas não suportariam; outras, que dizer a uma pessoa que outras têm problemas maiores do que os dela é suficiente; outras, que Deus manda o fardo e o “como” carregá-lo; outras pensam que se matariam, cometendo, a meu ver, uma covardia; outras passam a vida inteira sem pensar nessas coisas difíceis, achando que a vida é uma passagem festiva e sem problemas e que só algumas pessoas fazem confusão, porque são confusas, como eu, conforme me disse, há algum tempo, um aluno meu. E ainda acrescentou:

– Viemos ao mundo para comprar!

Eu lhe disse que Deus não teria uma ideia idiota como essa, e até hoje não sei se ele pensa mesmo isso, ou se eu lhe disse alguma coisa que o tocou tanto que ele se defendeu com essa “pérola” materialista...

Como gostaria de acrescentar raciocínios aos que fiz em 2015, queria dizer que tanto as experiências de Calvin e Alice Trillin quanto as minhas aconteceram dentro de hospitais e ao lado de sua população – médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogos... e doentes. Na verdade, acho que um hospital é um lugar no qual a vida de muitas pessoas muda, de repente, para uma outra parte e por isso é preciso muita generosidade e muita delicadeza no trato com elas. Ou no de quem é de lá de alguma forma (plantões, internatos, diretoria...).

         Não saberia, de jeito nenhum, ensinar a vocês como se mover na vida ou num hospital (os dois espaços podem servir um como metonímia do outro). Mas acho que posso afirmar que momentos de transição – aquilo que nem todos, mas uma quantidade significativa de pessoas vive dentro de um hospital – são sempre muito difíceis: usando metáforas, é a gente precisando caminhar sem mapas... ou tentando se equilibrar com cada perna em um barco diferente... ou sendo vítima de um terremoto que tira o chão de nossos pés.

Profissionais de saúde são testemunhas dessas experiências radicais e intuo que é a própria humanidade do médico que pode ajudar nessas situações, servindo de bússola, ou seja, quanto mais profissionais de saúde sejam gente como toda a gente, mais conseguirão dar conta da tarefa, apesar das dificuldades.

Foi o escritor inglês de origem indiana e islâmica Salman Rushdie quem me deu as metáforas com as quais seguirei pensando:  a vida é uma casa muito, muito grande, cheia de buracos nas telhas, no chão; as paredes estão em condições ruins, ameaçando ruir... Nela estão todos os seres humanos – parentes, amigos, amantes, conhecidos, desconhecidos, desconhecidos perigosos... E a gente dentro daquela casa, andando, andando, sem saber para onde, levando quedas e pancadas... De repente, a gente se dá conta de que a casa não tem saída... No meio do pavor dessa descoberta, constata-se que há alguns quartinhos onde existem vozes que falam da casa... São os escritores (ou os artistas): pessoas que, dentro da casa, falam dela para nos distrair do terror (é que algumas vozes são obscenas, outras safadas, outras amáveis, outras engraçadas, outras tristes...) e dar algumas dicas. No seu ensaio, Salman pede que imaginemos o que seria ficar na casa sem a linguagem das artes, como esse espaço se tornaria ainda mais assustador, sem a distração momentânea ou as direções mínimas apontadas... Ele conclui: “tenho certeza de que, imediatamente, nos lembraríamos de que não há saída!”

Talvez venha daí a explicação para o fato de haver tantos escritores médicos, ou seja, na essência, o médico é próximo do escritor, ou deveria ser: dentro da casa (ou da vida ou do hospital), o médico devia guiar um pouco, usando não só a linguagem objetiva da ciência (que não permite mais de uma interpretação), mas também a figurada da literatura.

A sensação de superioridade que alguns médicos têm é um verdadeiro impeditivo para o percurso suportável nesse lugar aflitivo. Durante a internação de meu filho, na fase aguda de sua doença, duas técnicas de enfermagem me ajudaram em ocasiões diferentes: uma delas me contou uma piada da qual não me lembro e que terminava dizendo que “alguns médicos pensam que são deuses, e neurologistas têm certeza”; e a outra me disse que eu sossegasse, pois os médicos costumam dar vereditos errados, uma vez que ela já tinha presenciado milagres sem conta que os desmentiam, na UTI em que trabalhava. Com as metáforas, elas me deram uma espécie de agasalho, ou seja, fortificaram a possibilidade de eu continuar pensando que talvez aquilo que os médicos diziam não se realizasse, o que terminou por acontecer. 

Quando tento me lembrar do período daquela internação, uma nuvem confusa parece atrapalhar tanto relato quanto lembranças: fui bombardeada com suposições, veredictos e impressões que não se cumpriram. Portanto, acho que poderia ter sido poupada de muito do que ouvi.

Entendo, perfeitamente, que os médicos se sentiam meio que obrigados a me preparar para o pior, já que achavam que meu filho iria morrer “dentro de um ou dois dias”, como me foi dito várias vezes. No entanto, de forma geral, eu merecia mais cuidado: naquela longa internação, meu filho estava num limbo entre a vida e a morte, e eu era uma mãe amorosa que perdia o filho aos poucos. E que, ao fim e ao cabo, não o perdeu de todo.

As recentes notícias da tragédia do Rio Grande do Sul me deram a expressão “fadiga por compaixão” com a qual agora posso falar sobre o que talvez aconteça dentro dessa casa chamada hospital: há um equilíbrio muito difícil entre a compaixão e a exaustão na área de saúde e, ao contrário do que se pensa, também deve haver compaixão em direção aos profissionais da saúde; é recíproca a relação de humanidade necessária nesse, digamos, encontro.

Entretanto, se o médico se coloca acima de seu paciente, numa posição estapafúrdia de superioridade, como ele espera merecer sua cota de compaixão? Na verdade, o médico que se coloca nessa posição se recusa a participar desse jogo de afetos tão humano − a confluência de erros e acertos, amores e dificuldades que resume a vida de todos nós.

Além disso, com certeza, pode-se esperar, escolhendo-se a Medicina, uma remuneração que dará condições de vida muito acima da média. Mas é preciso atentar para outros pontos: o custo social da formação e, portanto, o troco que a sociedade brasileira precisa que seja dado. E as próprias necessidades da população do país. Todos temos de procurar ter mais do que apenas dinheiro; ter só dinheiro é uma forma ridícula de pobreza.

É urgente a busca de explicações, sentidos, propósitos (que antigamente eram dadas pela Religião ou pela Tradição), os quais são procuras também cruciais para que nós, embora presos nessa casa caindo aos pedaços que é a vida, ou o mundo ou o hospital, cumpramos as tarefas a que viemos ou que, cegos e enganados, escolhemos...

Aí a literatura pode ajudar. O escritor mexicano Carlos Fuentes chegou a comparar o romance com “uma arena privilegiada”, embora ele não quisesse dizer com essa expressão que esse gênero textual seja um espaço sagrado, ou seja, não precisamos tirar os sapatos antes de entrar nele. Ao contrário, na sua opinião, o romance nasce do fato vagabundo de não mais nos entendermos, depois que a linguagem unitária e ortodoxa da Religião se esfacelou. Em outras palavras, o romance, ou a própria literatura, na sua visão, são a arena onde se digladiam várias ideias, linguagens e valores e onde todos entram de sapatos e brincam de os intercambiar.

Acrescento que ler livros literários treina a gente a ler, reconhecer, desdobrar e, claro, acertar a usar a linguagem polissêmica que, antes de tudo, dá ao leitor ou receptor o direito de ter acesso à informação, no ritmo que lhe convier ou que lhe for possível.  Ou seja: em livros, a informação não chega nem em grande e rápida quantidade, nem desorganizada como hoje.  

Não compreendo como coincidência o fato do encontro de duas gerações; na verdade, acho até que há um sentido em todo encontro – de amantes, de parentes, de amigos, de vizinhos, de aluno e professor, de médico e paciente... A gente pode não se dar conta disso... Guimarães Rosa diz que “quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”... Eu talvez acrescentasse “milagre que a gente não sabe ver”, pois estamos perdendo a habilidade de ver o invisível...

Tanta coisa bonita pode acontecer entre pessoas, e a gente só tem a ideia de competir... E, portanto, de simplificar para ganhar... Nossas relações políticas, por exemplo, estão nos dividindo entre bons e ruins. Shakespeare, no século XV, já sabia que isso não é verdade...   

Finalizo esta palestra dizendo que o mundo em que fui formada morreu, mas eu ainda estou aqui, não sei bem para quê... Se bem que eu jamais deixaria de escrever e falar se convidada a fazer isso, uma vez que essa é a minha tarefa.

Todos cometemos erros desastrados e devemos seguir em frente, tentando fazer melhor. O nosso melhor pode não ser suficiente, mas é o que, esfolados, conseguimos. Diferentemente de como nos comportamos nas redes sociais, precisamos levar em conta, como no Direito, a tal da “presunção da boa fé”. Pensei isso, recentemente...

Meu terceiro filho vivia me perguntando “e se eu não tivesse nascido?” Eu lhe respondia que eu seria incompleta, que a família seria menor... Mas ele continuava a repetir a suposição. Um dia, ele chegou perto de mim todo contente e disse: “eu já sei: se eu não tivesse nascido tinha uma coisa desmantelada no Universo”.

Então: espero ter cumprido a tarefa de levantar pontos que façam sentido para vocês; espero que cada um de vocês compreenda qual coisa desmantelada do Universo depende de vocês para ser consertada, porque isso é uma direção; espero que vocês entendam que há muita coisa invisível e calada que se passa entre nós, seres humanos, e que ninguém veio ao mundo para apenas ganhar dinheiro. Nosso espírito está fraquinho, com problemas graves de segurança alimentar... Mas ele existe, e acredito que a felicidade tem mais ligação com ele do que com a matéria (essa é uma das poucas certezas que tenho). Ao fim, é isto: nunca vi uma pessoa ser, realmente, feliz sozinha. Então se trata de conjugar verbos simples – amar, repartir, cuidar, tentar, falhar, consertar, resistir... Entre erros e acertos... Isso somos nós...  

quinta-feira, junho 20, 2024

O MÉDICO, A DOENÇA E A LITERATURA

         Começo confessando que fiquei com inveja do tema de Pedro Gabriel, que tem a ver com a saúde e a poesia, imaginem que maravilha falar sobre como a poesia pode salvar as pessoas... Mas me coube falar sobre médicos, doenças e a literatura. Fiquei muito tempo matutando sobre como desenvolveria o tema e pensei em começar falando sobre “O alienista”, de Machado de Assis. No dia 16 de maio próximo passado, fui convidada para falar sobre esse importante autor e nem sei se deu certo, porque ele falava de coisas meio que proibidas na sua época. E eu acho que na nossa.

         Machado nasceu em 1839 e morreu em 1908, ou seja, no exato momento em que o Iluminismo tinha se casado com o Positivismo. E o que significam essas bodas? Bom, o Iluminismo, lá por volta do final do século XVIII, entre outras coisas, é uma espécie de laicização do pensamento, é quando o Ocidente deixa de explicar os fenômenos naturais por meio da Religião e passa a não só procurar respostas na RAZÃO, na LÓGICA e na CIÊNCIA, mas também inaugura a mentalidade de que elas iriam dar conta de explicar tudo.

         Nesse contexto, algumas palavras começaram a ser politicamente incorretas, como se diz hoje, e a não poder ser ditas: “inexplicável”, “insólito”, “milagre”, “mistério”, “incompreensível”, “inesperado”, “medo”... Vem daí, por exemplo, a literatura fantástica, que nasce nesse momento – ela apresenta um personagem que acredita na lógica e é movido por ela, mas enfrenta situações que não consegue entender, nem explicar racionalmente.

         Tudo isso acontece, porque uma das funções da Literatura é falar o que não pode ser dito: o escritor legítimo é alguém que, como se diz hoje, pensa fora da caixinha e por isso é sempre tão incômodo; ditadores costumam não simpatizar com livros, principalmente os literários, como se pode verificar ao longo da História.

         Por sua vez, o Positivismo, de Auguste Comte, é uma espécie de resumo da cosmovisão materialista, típica de muitos pensadores do final do século XIX, como Darwin, Marx, Engels e Taine, os quais olham o mundo privilegiando a experiência dos sentidos. Em outras palavras: eles preferem a matéria, em detrimento do espírito.

         Consequentemente, há, no final do século XIX, um enrijecimento do pensamento ocidental, que prescreve a troca da fé em Deus pela fé na Ciência. Na Literatura, aparece o tema do anticlericalismo, e padres cometem crimes, mentem, são hipócritas... E nela a Ciência ganhou uma força enorme – o escritor mais determinista do mundo é nosso Aluísio Azevedo, que animalizou personagens e os colocou, mecanicamente, como determinados pelo ambiente de uma favela nascente.

         Machado, apesar de morar na periferia do mundo, não caiu nesse modismo e fez a Ciência do seu tempo sair da boca de dois personagens loucos.

O primeiro era Quincas Borba, que estendia o Darwinismo à sociedade e o usava para explicar as injustiças sociais; ele dizia que não havia nada de mais no fato de que os mais aptos fossem os senhores, e os menos aptos fossem os escravos, que cuidavam das galinhas, que seriam servidas no cardápio dos senhores. Explicando sua teoria do Humanitismo, usa a estapafúrdia história dos dois exércitos: como não havia batatas para todos, é lógico que a guerra é inevitável; então: o exército vencedor, diz o personagem na sua loucura, ficaria com as batatas e poderia não só subir a montanha, porque estava nutrido, mas também chegar ao lugar onde havia batatas para todos. Se não houvesse a guerra e a eliminação de um dos exércitos, sequencia, todos morreriam. A famosa frase “Ao vencedor, as batatas” resume, então, sua filosofia darwinista e cínica, que justifica a guerra e os meios injustos com os quais alguns pretendem atingir um fim (e, infelizmente, conseguem, às vezes).

O segundo era Simão Bacamarte, um psiquiatra (na época, se chamava “alienista”) que pretendia botar todos os seres humanos numa tabela e tinha escolhido sua esposa de acordo com o que, visivelmente, parecia anunciar que ela cumpriria bem o destino da maternidade – seios grandes ou quadril largo, algo assim... Mas tudo no materialista e científico Simão falhou fragorosamente – brigou com o padre, desentendeu-se com toda a cidade, cujos habitantes se rebelaram, sua esposa nunca engravidou e começou a ter compulsão por compras, e ele mesmo enlouqueceu, pois sua ideia reducionista e classificativa (ele pensava que poderia facilmente identificar o louco, separando-o do são) mostrou-se impossível de ser levada a cabo.

Voltando ao tema de minha palestra, quero ainda esclarecer que a doença psiquiátrica foi usada por Machado como uma metonímia, uma figura de linguagem com a qual se fala de uma doença querendo significar todas as outras. E que outras conotações saíram da pena do autor – a hipérbole ou exagero, a ironia... Com a linguagem metafórica da Literatura, o autor, diferentemente de seus pares europeus, questionou o Cientificismo de seu tempo e, por meio do riso, nos fez ver o absurdo que é examinar uma pessoa apenas com os recursos da Ciência e da Técnica.

A tão propalada, urgente e tão desacreditada Humanização da Medicina é uma missão de hoje tão ou mais difícil do que no tempo de Machado de Assis, já que estamos vivendo uma valorização da Técnica e da Ciência tão grande quanto no tempo do autor. Ou maior.  Os médicos estão presos a exames espetaculares, é verdade. E a protocolos que, seguidos, os livram da Justiça, que hoje é uma forte mediadora das relações humanas.  

Mas a Humanização, sabe, a existência daquela troca de palavras, a história da família, a tolerância de ouvir um paciente sem julgamento, de tomar conhecimento de suas dores, seus sintomas, suas queixas... talvez seja o caminho a ser seguido, até para saber qual exame deve ser prescrito.

Sei que nada disso é fácil – outro mediador de nossas relações é o tempo e suas urgências... E todo um sistema em que prevalecem a competição, a desigualdade de oportunidades e renda, as engrenagens mercantilistas... Porém não me consta que já foi mais fácil viver; como já disse em um poema, somos uma fábrica de fazer novos tempos ao lado de novos desesperos...

Também não me canso de dizer que não somos capazes de sobreviver só com realidade; Nietzsche já dizia que “temos a Arte para não morrer de verdade”. E precisamos imaginar mundos e seres humanos melhores... Às vezes a imaginação se distrai e vira realidade...

Portanto, estudar Arte – principalmente as narrativas do cinema e da literatura, incluindo o teatro e a poesia – ajuda a educar a sensibilidade e ensina a pensar com autonomia... O crítico português Jacinto Prado Coelho diz que a literatura não foi inventada para ensinar nada, mas refletir sobre ela nos ensina muito. Ler um romance, um conto, uma novela, um poema, ver um filme e pensar, conversar, ouvir, trocar ideias... Tudo isso ajuda a gente a ser gente, a compreender, a ser compreendida por quem nos cerca, a perdoar, a entender os contextos em que as pessoas estão inseridas, que são sempre difíceis... Uma quantidade enorme de clubes ou grupos de leitura estão, espontaneamente, sendo formados pelo país, não sei se vocês já notaram... Eu e Mateus Rios fazemos parte de um, ele funciona assim: decidimos em grupo de WhatsApp qual livro ler, lemos a sós e, uma vez por mês, fazemos verdadeira questão de nos reunir para conversar sobre ele. 

Duas histórias me ajudam a fortalecer essa sugestão de ler livros literários.

A primeira aconteceu com meu filho Daniel, muito pequeno ainda, quando mostrei algo que, na minha opinião, era bonito, e ele exclamou “mãe, eu ainda não sei gostar”, o que comprova que até uma criança é capaz de entender que gosto e tudo na vida são aprendizados...

A segunda aconteceu comigo quando outro filho teve uma doença gravíssima, com cujas sequelas ele e eu vivemos até hoje: foi a postura do infectologista que o atendeu.  Esse médico me dizia que não sabia; que não tinha chegado a uma conclusão; que meu filho (na época, com 17 anos), às vezes, reagia como uma criança, às vezes, como um adulto; que, portanto, apresentava especificidades com as quais ele e todos os outros médicos não sabiam ainda lidar; também me consolava; se esforçava para me explicar o que estava acontecendo com exemplos da Literatura, para que eu pudesse compreender melhor aquele turbilhão de informações e termos técnicos que me assaltavam; chegava correndo quando necessário, mesmo na noite de Natal; era movido por um instinto bonito de salvar meu filho, quando outros médicos achavam que as sequelas seriam tantas que não valia a pena deixá-lo viver... Sua franqueza, sua humanidade, as contas que me apresentou... Quando eu disse que tinha notado que ele apresentara um valor pequeno comparado com o que tinha trabalhado, ele disse “naqueles dias, era seu filho o cliente que mais precisava de mim”...

Foi nossa relação humana e franca, atravessada pela palavra, que me fez suportar aquele verdadeiro calvário, que terminou na íntima constatação de que a vida exige de nós muita coragem, pois ela nos fere, aleatoriamente, com “exigências brutas”, como disse Drummond. E que estamos aqui para cuidar uns dos outros de várias formas. Cuidar pode significar ouvir, ser ouvido, curar, acompanhar paliativamente, apresentar limites, perdoar... Em resumo: cuidar é construir possibilidades de convívio e, portanto, de diálogo. As tais engrenagens materialistas podem atrapalhar, mas estamos aqui para vencer o desafio de conviver e não de inventar máquinas formidáveis de matar e ir para Marte.       

Não me parece que ficar nas redes sociais está ajudando a gente a desenvolver a generosidade, que é sempre necessária nas relações humanas... Essas redes e seus algoritmos não são inocentes: direcionam o pensar, o sentir e, portanto, o falar da gente; empurram-nos uns contra os outros, e seus donos ganham muito, muito dinheiro com as tretas, a intolerância, as agressões e os cancelamentos em que somos armadilhados quando, enganosamente, pensamos nos comunicar através delas. Elas não são democráticas, nem contribuem para o nosso entendimento uns dos outros – dirigem nossas palavras não só para ferir o outro, mas para pôr em dúvida os seus argumentos e suas razões. Dividem o mundo em dois e nos obrigam a nos reduzir, pois levam oito bilhões de pessoas a pensar de apenas duas maneiras. É a famosa polarização que, sem que percebamos, está nos empurrando para ideias extremadas, que terminarão por nos jogar numa guerra – se é que já não estamos nela.

Começa a nascer sub-repticiamente a ideia de que é impossível conversar com quem pensa diferente de nós. Ou seja: só é possível dialogar com quem diz o que queremos ouvir ou com quem aplaude o que dizemos. Que mundo é este em que não há subtons entre as cores? Que mundo é este que acusa quem não compactua com um dos lados a que fomos reduzidos? Não é um mundo, mas um beco sem saída...

É importante carregar um prisma, sabe? Um prisma é um objeto incômodo de carregar nos dias que correm, mas é necessário fazer um esforço; todo amor, toda relação exige um esforço. Esforço de palavra, eu acrescento. Por isso a literatura: ela faz a mediação, permite que a gente calce o sapato do outro, pois passamos muitas horas vendo a partir do ponto de vista do narrador, de cada um dos personagens... Um escritor não é melhor do que ninguém, é apenas alguém que maneja bem as palavras, cria para elas novos significados ou nos presenteia com as palavras com as quais ele consegue falar dos sintomas e das dores de seu tempo. Nesse contexto, quando os lemos e criamos grupos de discussão, vamos entendendo melhor o tempo que nos coube viver e, fazendo adaptações, nós conseguimos ser seres humanos em contato real, que é o remédio de que, realmente, precisamos. Pensar que somos feitos para brigar ou que nossos encontros são colisões sem sentido está nos mergulhando numa epidemia de doenças emocionais e num redemoinho de suicídios de jovens que cedo demais decidem desistir de seguir em frente.

Um médico não é só alguém que decifra exames; é alguém que escolheu participar de uma relação humana especial, feita na mistura de poder com cuidado, de um lado, e medo e fragilidade, do outro. Um paciente, como o próprio nome o diz, diferentemente de um aluno, não é um agente, tem que se submeter à coerção do tratamento; e um médico tem de saber exercer uma ação, ao mesmo tempo efetiva e compassiva, sem se deixar afetar demais... Tudo isso é muito humano e muito sutil e muito difícil, eu sei. Sem o atravessamento da palavra, acho que nem possível é...

Não sei o que dizer a vocês para terminar esta palestra... Como diz Guimarães Rosa, viver é muito perigoso e, sem as mãos dadas, é impossível. Devemos resistir, teimando na direção do diálogo e do perdão, que não são tarefas fáceis, com certeza. As palavras têm duas roupas e, às vezes, elas ferem tão fundo que “perdão” vira uma palavra insuficiente. Todo amor de verdade carrega uma gota de ácido, como diz Drummond...

Então peço a cada um de vocês aqui presentes que tenham coragem para resistir às sereias desse sistema desigual, contemplando ricos e pobres com a mesma atenção possível; que continuem a tentar (mesmo sem conseguir) equilibrar suas profissões com a vida familiar; que não se abandonem às simplificações ideológicas e partidárias; que tenham ânimo para enfrentar as complexidades humanas e seus sintomas, lembrando que “complexo” não é difícil, é só algo que tem de ser olhado por meio de muitos saberes; que os que são professores ou tutores não desistam de ensinar com o exemplo humano, para que possamos aperfeiçoar nossas relações.

Como já disse num poema, tentar lembra amar, que tudo explica entre erros e acertos. 

Obrigada!

segunda-feira, maio 20, 2024

CONCLUSÃO

O esforço

do gesto

da palavra

desperta

o outro afeto

da escuta.

sábado, abril 20, 2024

PALESTRA DO RIOMAR

PRIMEIRA PARTE: QUEM FOI MACHADO DE ASSIS?

         Machado de Assis não é só o maior escritor do Realismo brasileiro, estilo de época que ele inaugurou; é o nosso maior escritor do século XIX ou talvez de toda a nossa literatura, na opinião de muitas pessoas.         

         Apesar de sua famosa ironia, estudá-lo é, principalmente, aprender sobre a natureza humana e ganhar certa dose de generosidade para com ela, o que é de muita utilidade nestes tempos de tantas “inquisições” nas redes sociais.

         Na verdade, Machado é o mais intrigante autor de nossa literatura: sua trajetória biográfica, suas ideias e, consequentemente, suas obras são surpreendentemente singulares, e observá-las é um aprendizado precioso.

         Sua vida pode ser considerada um milagre. Nasceu pobre, filho de uma lavadeira e um pintor de paredes, e não se tem notícia de estudos regulares. Apesar disso, foi devagar escrevendo sua história difícil, aprendendo a ler aqui, aproveitando oportunidades minúsculas, lendo um livro acolá, quando foi caixeiro de livraria ou tipógrafo... Estudou latim e francês de favor... Enfim: recebeu ajuda...

         O que quero dizer é que Machado soube aproveitar as chances que apareceram; penso que é muito cômodo à classe dominante brasileira achar que sair sozinho da situação de pobreza é não só possível como fácil, basta querer.

         Infelizmente, essa ideia inaceitável está, fortemente, presente nas discussões atuais sobre meritocracia, na minha opinião. E não se aplicam à cabeça superdotada de Machado de Assis: para a maioria, a falta de educação de qualidade e de políticas públicas de acesso à cultura são cancelas intransponíveis.

         Apesar de não ter tido acesso a quase nada, Machado conseguiu galgar a “escada social” brasileira, que era, na época como hoje, inóspita.

        Mas não nos enganemos: a sua história não pode servir de exemplo para argumentos espúrios de “se ele conseguiu, todos que se esforçarem conseguem”, pois há, no Brasil, uma forte (apesar de meio invisível) lógica de exclusão que, arbitrariamente, impossibilita a maioria de construir inserção. E pior: usa as exceções para se validar.

       Pensar em saídas para isso é nossa mais urgente responsabilidade, não nos esqueçamos!

         Machado não teve que vencer apenas a origem: foi neto de escravos alforriados, o que quer dizer que era pardo, mas também era gago e sofria de epilepsia, doença que o afetou no meio da vida e que dividiu sua obra em duas partes – uma romântica, antes da doença; outra realista, depois dela.

         Numa sociedade como a nossa, marcada tão fortemente pela estratificação que já ouvi muitos referirem um “apartheid” (tomando emprestada a forte palavra da África do Sul), Machado foi capaz de suplantar o “destino” social que sua época tinha escrito para ele.

         Em suma: nada impediu Machado de ir ascendendo socialmente e de maneira admirável, sem quebrar valores éticos − nem a história que esta sociedade tinha reservado para ele, nem sua cor tanto tempo escamoteada, nem sua favela de origem, nem sua doença.

         Mas isso não aconteceu de repente, por sorte: sua consagração foi um mérito que foi sendo esculpido pelo amadurecimento, pelo trabalho, pela reflexão – a história de Machado é um exemplo de tenacidade e sua fama foi antes consequência de um fazer que lance espetacular de cartas ou dados; só seu terceiro livro de contos e seu quinto romance começam a destacá-lo no panorama da nossa literatura.

         Foi hábil observador de si próprio. Olhando-se como o fez, desconfiou da ciência de sua época e, ao contrário dos escritores europeus, relativizou as certezas do século XIX.

         Debruçado sobre sua própria história, questionou o mecanismo simplificador do Determinismo do seu tempo e, naperiferia do mundo, escreveu uma obra só explicável pelos parâmetros do século XX: a ciência do século XIX e sua visão reducionista estão na voz de dois personagens loucos de Machado, de cujas teorias simplistas sobre as questões humanas rimos.

         Na época, enunciavam-se teorias científicas materialistas para explicar tudo, ou mesmo se acreditava que a Ciência terminaria por explicar tudo.

         No entanto, na obra de Machado, era o maluco Quincas Borba que defendia a ideia de que as sociedades podiam ser explicadas por meio do Darwinismo, ou seja, de que não havia nada errado com o fato de que os mais aptos tivessem até privilégios, e os menos aptos não pudessem ter acesso a direitos básicos; e era o psiquiatra também maluco Simão Bacamarte que se achava capaz de diferenciar, perfeitamente, o são do louco, colocando cada qual em seu lugar numa tabela simplista.

         Logo no princípio de sua segunda obra realista, o delirante Quincas Borba explica ao amigo Rubião, verdadeiro personagem central da obra, sua ideia filosófica do “Humanitismo” que consiste em dizer que, para alguns almoçarem bem, outros devem ser os escravos que cuidam das galinhas a serem servidas no cardápio.

         Para melhor esclarecer sua absurda teoria, ele exemplifica com a famosa história dos dois exércitos que tiveram de guerrear, pois só havia batatas para um.

         O exército vencedor, diz o personagem na sua loucura, ficaria com as batatas e poderia não só subir a montanha, mas também chegar ao lugar onde havia batatas para todos. Se não houvesse a guerra e a eliminação de um dos exércitos, sequencia, todos morreriam. A famosa frase “Ao vencedor, as batatas” resume, então, sua filosofia darwinista e cínica que justifica a guerra e os meios injustos com os quais alguns pretendem e, infelizmente, conseguem atingir um fim.

         Ao contrário disso tudo, Machado foi um excluído que construiu seu próprio acesso às batatas e, acima de tudo, escolheu, sem se confundir, as batatas com as quais queria ficar, pois sabia que “só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima de suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.

         Enfim, também foi pertinente analista da história que se desenhava a sua volta, apesarde ter sido acusado do contrário. Só que sua avaliação foi discreta, porque ele preferiu as entrelinhas, o estudo das reações e da pluralidade das motivações dos seres humanos.

         A arena ideológica do seu tempo está presente na sua obra, mas diluída na discussão das contradições e dos absurdos da condição humana que eram seus verdadeiros temas.  

         Nas suas análises, Machado foi amadurecendo até chegar no nível que o destacou: a presença de personagens falíveis em situações extremas que os fazem cair nas engrenagens e armadilhas mercantilistas da sociedade. Essas encruzilhadas terminam por traduzir sua visão cética e pessimista do ser humano, a qual descamba para uma ironia niilista que hoje pode ser vista como politicamente incorreta. Mas é só triste, na minha opinião... Acho também que por aí chegou ao personagem pícaro, caminho pouco mencionado de sua obra. 

         Por tudo isso os temas do seu tempo ganham, na sua obra, matizes novos e originais.

Machado aprendeu a ler. Foi leitor de si mesmo, de seu mundo e de sua época e dos livros que o ajudaram a ver-se e a ver tudo a sua volta com clareza e originalidade.

         Saber de Machado de Assis e de sua obra, portanto, dá uma dor, mas desenvolve a compreensão do ser humano e de suas fraquezas derivadas das circunstâncias sempre adversas em que vive.


SEGUNDA PARTE: PRINCIPAIS OBRAS

1. “Dom Casmurro” (1899)

         Por ter sido tardio, o Realismo brasileiro foi “contaminado” pelo Simbolismo e pelo Impressionismo, tendências do final do século XIX.

         Na verdade, as obras de Machado de Assis não são facilmente classificáveis, o que termina por torná-las polêmicas, principalmente “Dom Casmurro” cujo tema é o da infidelidade feminina (muito comum na época). Mas que recebe, nas mãos de Machado, um tratamento originalíssimo.

         Todas as outras personagens realistas do período, semsombra de dúvidas, traíram seus maridos e, assim, desconstruíram tanto as mulheres quanto o casamento idealizado, típicos do Romantismo.

         Não é o caso de Capitu: a quebra da nitidez do Impressionismo confunde nossa avaliação, e “Dom Casmurro” é um livro que muito mal se encaixa no formato realista. Afora o fato de que nele Machado não só focaliza a classe dominante, mas ainda a desmascara, o livro “Dom Casmurro” em tudo foge da descrição equilibrada e isenta dofato e da contemporaneidade, com narração onisciente, que são os traços mais fortes do Realismo.

         Seu narrador em primeira pessoa, Bento Santiago, tenta, de forma sub-reptícia, convencer o leitor da traição de sua esposa Capitu com seu melhor amigo Escobar.

         Mas a história não convence de todo – nas entrelinhas, pode-se ler não só todo o machismo, todo o autoritarismo (travestidos de vitimismo), mas também toda a violência que ele tenta disfarçar com seu estilo erudito de bom moço das elites brasileiras do fim do século XIX.

         Os leitores sentem-se incomodados com a falta de espaço para a autodefesa de Capitu: ela está lá na história, porém o narrador não lhe abre espaço, não lhe dá a palavra...

         A violência inaceitável desse gesto percorre todo o enredo, e a dúvida se inicia a partir de uma constatação que não se pode calar: por que ele quer nos convencer de que foi traído? Não seria mais previsível, num país patriarcal como o nosso, o narrador querer nos convencer sobre a versão contrária, ou seja: a de que não foi traído?

         O esforço na direção contrária da esperada, portanto, esconde e revela variados segredos, e mesmo desejos, que não são claramente expostos, mas ficam latentes na falta de nitidez e de contorno, típica do Impressionismo, não do Realismo, o que dá margem a várias leituras, inclusive a de que Bento queria, na verdade, esconder sua homossexualidade.

         Além disso, o narrador esperou tempo demais para escrever seu relato: se a traição ocorreu por volta dos trinta anos, por que ele só foi contá-la aos sessenta e tantos? Ele não colecionou mágoas demais nesse intervalo? O fato não foi se apagando e, portanto, sendo substituído por uma nova versão já distante da realidade?

         A força desse não-dito faz do “Dom Casmurro” umas das mais profundas e intrigantes obras de nossa literatura, além de que ilustra para nós, seres humanos, nossa complexidade e a de nossa linguagem, que nos diferenciam e ferem todo dia. 


2. “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881)

         A chegada tardia do Realismo aqui no Brasil causou muitos problemas na caracterização do Realismo entre nós, que se desenvolveu, por assim dizer, na madrugada do século XX, ou seja, num tempo ambivalente entre as certezas científicas positivistas do século XIX e a quebra delas no século XX.

         Isso está traduzido na obra de Machado de forma magistral.

         Vários temas compõem a tessitura narrativa de "Memórias póstumas de Brás Cubas", que, aliás, mais parece um romance modernista: fatos apresentados em quadros, às vezes, visuais e fora da ordem cronológica quebram completamente a narração cronológica, típica do Realismo.

         O primeiro tema brota mesmo do Realismo − é a infidelidade feminina que quebra de uma vez dois pilares românticos: a idealização da mulher e do casamento. Grandes livros do período trabalham o desmantelamento da felicidade conjugal: "Madame Bovary", "Anna Karenina", "O primo Basílio"...

         No nosso caso, o triângulo é formado por Brás Cubas, Virgília e Lobo Neves, e sua causa fica no que Eça chama de "episódio interessante" para quebrar a desocupação e o tédio geral que grassa entre as personagens, principalmente as femininas.

         Diferentemente das personagens europeias, Virgília não morre e seu erro fica, digamos assim, sem o devido “castigo”, o que diz muito sobre Machado e sua obra que desmascaram as idealizações com as quais o Romantismo via o ser humano.

         O segundo está num ponto de vista triste de Machado de Assis, também uma pancada forte no Romantismo e seus heróis extraordinários, capazes de transformar o mundo: Brás Cubas, o herói do romance, é um homem falhado, e o último capítulo do livro, "Das negativas", dá conta disso: “(...) Não alcancei a celebridade do emplastro, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento (...) Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

         Nada em sua vida brilha ou se destaca: foi um estudante medíocre; não exerceu com entusiasmo nenhum cargo, nem profissão alguma; não conseguiu levar adiante a empresa do emplastro, um remédio que aliviaria "a nossa melancólica humanidade"; não constituiu família, nem, de fato, ajudou ninguém. Mesmo o emplastro, que consumiu parte de suas posses e parece ser fruto de desprendimento, foi efeito, na verdade, de sua "paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas": como o livro é escrito na primeira pessoa, nós, os leitores, sabemos das intenções pouco nobres do narrador – ele o queria inventar pelo “prazer da nomeada”, ou seja, no ato da compra, o consumidor do medicamento seria obrigado a dizer o seu nome.

         Seus amores também foram ordinários: amou (se é que se pode usar esse verbo) Marcela e foi por ela assaltado; Eugênia, que rejeitou, por ser coxa; Virgília, com quem teve um caso que foi, sem explicação, minguando, e Eulália, morta numa epidemia, além de todas as europeias que usou, depois que terminou os estudos, se é que se pode chamar de estudos a sua trajetória universitária em Portugal.    

         Sua vida deu chabu. Ele mesmo confessa que colheu "de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação", ou seja, ele preferiu a aparência e não a essência.

         Que herói...

         Brás Cubas, enfim, é prisioneiro do gozo, do poder, da glória, e sua vida transcorre num espaço onde prevalecem as injustiças, os instintos agressivos, temperados pela mentira, pelas conveniências e pelo dinheiro.

         Mas não só ele é assim; o romance é um desfile de poucas virtudes e muitas falhas, e o oprimido não é melhor que o opressor: Prudêncio, o escravo de Brás Cubas, também escraviza, na primeira oportunidade e Dona Plácida acomoda-se, mediante certa quantia, à situação de que discordava por achar imoral – tomar conta da casa onde Brás Cubas e Virgília se encontravam.

         Enfim, nada escapa à ironia de Machado: sentimentos, crenças, condutas, tudo é olhado com amargura; tudo aponta o absurdo da condição humana e as máscaras de suas ordenações sociais.

         O terceiro tema é a loucura, recorrente na obra machadiana: aparece, também, por exemplo, nas obras “Quincas Borba” e “O alienista”.         

         Quincas Borba, amigo de infância de Brás Cubas, traz às páginas do romance uma teoria dogmática que nada mais é do que uma caricatura da atmosfera científica da época. Seu Humanitismo (e seu "formidável rigor") provam que a inveja é uma virtude; a guerra, uma operação conveniente; a dor, uma ilusão; a violência, a miséria, a fome e as doenças, apenas equívocos do entendimento. E que o homem, portanto, pode ser feliz.

         Nada escapa à chacota corrosiva de Machado nas “Memórias póstumas de Brás Cubas”, nem mesmo a fé que a mentalidade de seu tempo tinha no progresso da ciência e no triunfo da lógica. Nenhum consolo brota da leitura do livro, cujo pessimismo torna inalterável o absurdo cortejo dos séculos e dos homens.

         É um livro só aparentemente engraçado; carrega uma tristeza sem remédio e, ao contrário do que diz, transmite a nossa miséria.

 

3. “Quincas Borba” (1891)

         Uma espécie de continuação de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” é menos experimentalista e famoso, mas é mais profundo e sutil. E ainda mais triste. Da trilogia mais importante de Machado, é o menos palatável – na dificuldade que impõe ao leitor para decifrá-lo e na mensagem.

         Caso se possa pensar numa imagem que um livro evoca, uma sala de espelhos é o que aparece à mente quando tentamos sintetizá-lo. Seu enredo mais claro é a história de Rubião, herdeiro de Quincas Borba, o mesmo filósofo louco que era amigo de Brás Cubas nas “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Mas há um contexto mais amplo que o texto “Quincas Borba” refere – o da nossa sociedade estruturada por relações de trocas de todos os matizes, principalmente os materialistas.

         De início, Rubião aparece cuidando do filósofo doente, já meio enredado na sua loucura e na sua teoria, que o confundem e paralisam.

         Quando morre, o “filósofo” deixa para Rubião não só toda a sua fortuna – que Rubião não consegue quantificar racionalmente −, mas ainda seu cachorro, que também se chama Quincas Borba (espécie de âncora do passado e da loucura) e que persegue Rubião no seu trajeto de decadência até a morte, disfarçado de ascensão social e econômica.

         Uma das chaves para entender o “Quincas Borba” é essa ascensão rápida demais a que foi empurrado o personagem. Porque não foi construindo, nem compreendendo os próprios percursos para o novo espaço que adentrava, Rubião tornou-se presa fácil das armadilhas do mercado e das relações de interesse que se organizam no tecido social dominante a que ele foi alçado e no qual não foi criado.

         Rico, Rubião muda-se de Diamantina para o Rio de Janeiro e, ainda no trem, encontra Sofia e Palha, que vão introduzi-lo nas engrenagens mercantilistas da sociedade, as quais, por sua vez, o esmagarão devagar à nossa vista.

         O leitor, quando se olha no espelho, vê Rubião – um homem bom e cego, à beira do abismo – e parece adivinhar o perigo que ele corre ao lado do casal (meio serpente, meio sereia), que duplica a sociedade com seus apelos insistentes e suas exigências inescapáveis de status e aparências.

         A inocência de Rubião – que é sua verdadeira riqueza e o vetor que o precipita no abismo, ao mesmo tempo – atrai uma corja inumerável de parasitas que refletem a sociedade, vista no seu lado mais negativo, que, por sua vez, num espelho de lente, se reflete, aumentada no casal Sofia e Palha. Esse jogo de imagens refletidas umas nas outras é como um labirinto de enganos que prendem, enlouquecem e matam Rubião com seus brilhos falsos e suas figuras invertidas.

         Mascarados pelo status e pela riqueza, Sofia e Palha vão subindo, na escada social, à proporção que quebram ética, valores, vínculos... Sabem de cor todos os fios do tecido com que costuram sua ascensão, usam Rubião e o descartam com facilidade, quando já não havia o que tirar dele. Blindados pelo conhecimento das regras que garantem a invulnerabilidade e a vitória no jogo, consomem, mas não são consumidos pelo sistema e terminam encastelados no topo da pirâmide de onde observam a demência do personagem central, com escárnio. Nesse jogo mortal, dentro do labirinto, só Rubião não conhecia as regras...

         O propalado adultério de Sofia, que se adivinha sem se realizar, nada mais é do que uma estratégia de ataque: ela é cúmplice do roubo de Palha, favorece o desequilíbrio da vítima, fere-a, apressa sua confusão mental e golpeia-a mortalmente, soprando-a, com a cara limpa e o discurso correto dos inocentes...

         O marido a usa, ela o usa e os dois usam o desejo recalcado de Rubião para ganharem o jogo dentro da sala de espelhos que brilham e invertem valores.

         As pressões desse jogo de martírios são poderosas: elas não só potencializam os germes de loucura internos de Rubião, desde a herança ambivalente de Quincas Borba, mas também maltratam o leitor, fazendo-o antever a pilhagem, testemunhar o crime, sem poder ajudar a vítima.

         No final do jogo, na sala de espelhos, não há vencedores: Sofia, Palha e companhia “sobem para baixo”, Rubião morre e o leitor se entende partícipe.

         Machado precisa ser ouvido neste tempo de fake news;de escaladas sociais desonestas e ostentatórias; de prisões em expressões, ideias e comportamentos “americanalhados” (como diria Alberto da Cunha Melo); de comunicação sem conteúdo; de tretas e cancelamentos nas redes sociais; de falta de criticidade; de preguiça mental panfletária e de simplificação.


quarta-feira, março 20, 2024

PALESTRA PARA O SIMPÓSIO DE IMUNOLOGIA

              Caros senhores, boa noite. 

            Começo confessando que não sei explicar por que estou aqui com a responsabilidade de falar para vocês. A única explicação talvez seja o afeto inquebrantável que se cria, às vezes, entre mim e alguns dos meus alunos. Nesse contexto, o meu querido ex-aluno Mateus Rios deve ser perdoado, por achar que sou capaz de dizer a vocês alguma coisa que se aproveite.

  Confesso também que tive muita dificuldade de escolher um assunto sobre o qual pudesse falar e aí resolvi começar contando histórias de minha família, no melhor estilo Suassuna.

Meu pai, que se chamava Marcos e era pediatra, tinha duas histórias lindas: a primeira diz respeito a uma menina que entra na sua sala com uma roupa nova e papai elogiou:

Minha filha, que roupa bonita!

E a menina:

É nova! A calcinha também é nova, é igual à de mamãe. Mostra, mamãe, para ele ver...

Imaginem o clima...

De outra feita, uma mãe chega com uma bola de gude bem grande na mão (as crianças chamam essa bola de “cocão”).

Doutor Marcos, ela disse, eu trouxe essa bola de gude para o senhor ver. Meu filho engoliu uma bola de gude igualzinha a essa.

Meu pai pegou a bola na mão e perguntou ao menino:

− Meu filho, como você engoliu uma bola deste tamanho?

− Assim! Isso dizendo, o menino pegou a bola da mão de papai e engoliu (no caso, o segundo cocão).

Resultado: vários dias de pesquisa radiológica para acompanhar o trajeto das duas bolas no organismo do menino.

A terceira história é de tio Saulo, que era urologista: um paciente, muito falante e inquieto, ficou cheio de gases depois de uma cirurgia, e tio Saulo fez uma prescrição para amenizar seu quadro de dor. No dia seguinte, quando perguntou ao paciente como ele estava, tio Saulo ouviu:

− Doutor, que remédio abençoado!! Soltei três bufas de um metro e meio e fiquei bonzinho!!

É claro que vocês devem saber dezenas dessas histórias e se divertir com elas, não é?

Pois bem: terminei por escolher falar sobre as histórias que estão presentes neste contato comovente que acontece entre o médico e seu paciente, na hora em que é crucial um diálogo de verdade entre eles, na hora em que é necessária a expressão, ao mesmo tempo, franca, clara e sintética de uma queixa, na hora em que é preciso não só um esforço de escuta e interpretação do dito, mas também do não dito.

Neste tempo em que nada disso costuma acontecer, quando estamos, nas redes sociais, mais nos desentendendo do que dialogando, posso suspeitar de como tem sido difícil o exercício da profissão de vocês.

Uma vez alguém me disse que os seres humanos são feitos de células, e eu discordei, retrucando:

− Os seres humanos são feitos de histórias!

É assim que penso: nossa vida se fia de histórias – as que vivemos, as que contamos, as que nos contam, que se entrelaçam com as nossas e viram nossas, porque nos ajudam a contar as nossas, as que inventamos... Tudo isso junto nos precipita num processo de produção de pensamentos, saídas, soluções, fugas, reflexões, que transformam essa habilidade num ato final de triunfo da espécie.

É incontestável que estamos passando por uma crise muito forte nessa área, que nos dirige, na minha opinião, para uma rua sem saída: estamos tão “despedaçados”, tão partidos, que nossa expressão não está criando laços, mas nós cegos. As redes sociais e suas possibilidades viraram uma rinha de galos de briga na qual só queremos brigar (se diz, no contexto, “tretar”). E não vemos que existe quem lucra com isso: quanto mais cancelamos e tretamos, mais os milionários proprietários dessas plataformas ganham dinheiro e poder.

Entretanto é o compartilhamento de histórias que nos salva a toda hora: peço sempre neste ponto que se pense sobre o que teria sido de nós se não tivéssemos nossas histórias contadas em livros, peças teatrais e filmes durante o período da pandemia de que, aos poucos, estamos, felizmente, nos distanciando.

Fico imaginando aqui comigo como as histórias de seus pacientes precisam ser ouvidas, partilhadas... Com certeza, elas ajudam tanto as pessoas a se curarem, quanto auxiliam vocês a aprenderem mais para curarem mais; a discutirem entre si aprendizados, soluções, saídas; a, depois de errarem, conseguirem não repetir o erro; a contarem essas histórias sem citar os nomes envolvidos nas conversas com parentes, amigos, a fim de repensarem decisões, comportamentos e protocolos para elaborarem a própria prática médica ou a própria vida; e até mesmo acho que vocês se apropriam delas para ajudar outras pessoas a articularem suas compreensões...

Enfim, nesses tempos que passamos em labirintos, aí é que precisamos observar de novo essas narrativas, reexaminá-las para que possamos criar outros caminhos por onde ir...

Com essas narrativas, trocamos o real impossível pelo possível sonhado, inventado, procurado, encontrado, satisfeito... Por isso nossas histórias são uma ferramenta para entendermos os enigmas do mundo, da vida, do desejo; os mecanismos do medo e do afeto; as engrenagens da identificação e da diferenciação...

De fato, esse acervo é fruto de uma ação que alterou o mundo que nos cerca de forma contundente, o que permite acrescentar que nossas histórias afetam (e muito) a forma como sentimos e agimos historicamente. Essa coleção de experiências é como um rio que carrega nossos valores, frações de nossa identidade, sentidos... E nos humaniza.

Estas palavras são, portanto, uma espécie de prece: usando a razão e a sensibilidade, talvez possamos ir ajustando as trilhas da imaginação, para que possamos fazer um futuro “que fale a nossa língua”, como diz o escritor moçambicano Mia Couto.

Recentemente, ouvi o ministro Sílvio Almeida dizer algo que me ajudou muito a organizar as palavras para me fazer entender: “é preciso tirar o gozo do problema e colocá-lo na solução”. Simplesmente adorei isso: nossas palavras não devem servir apenas para nos esvaziar, mas também para sonharmos soluções.

A partilha dessas narrativas (ao contrário do que estamos fazendo nas redes sociais) deve ser feita assim, como disse o pedagogo Rubem Alves: devemos, nas nossas relações, não jogar voleibol, ou tênis ou tênis de mesa (esportes em que arremessamos ao outro uma bola o mais difícil possível), mas jogar tênis de praia (esporte em que, ao contrário dos outros, a cooperação é o objetivo).

Que esta prece nos ajude a lembrar o que somos: seres ferozmente sociais, os quais, apesar de gostarem de brigar, são interdependentes e narrativos, o que nos obriga a aperfeiçoar a escuta, o perdão e a generosidade.

E que esta partilha de histórias e experiências aqui em curso contribua para sermos atores do esforço que se deve efetivar sempre para um mundo e um país mais corrigido.