O DIREITO À LITERATURA (II)
O
que os historiadores chamam Idade Contemporânea é um período de tempo
que contém o século XIX, o XX e o XXI de que estamos falando.
O
historiador Eric J. Hobsbawm localiza o primeiro entre 1789 (ano da
Revolução Francesa) e 1914 (começo da Primeira Guerra Mundial) e, o
segundo entre 1914 e 1989 (ano da Queda do Muro de Berlim).
Evidentemente, o século XXI nasce a partir desse último fato histórico.
Ao
longo do “grande século” – Hobsbawm assim se refere ao XIX, por sua lógica
medir mais de cem anos –, o sujeito ocidental, paulatinamente, se desliga da
tradição (que fala por ele), e se comprova uma compulsão
de falar, escrever, narrar,
para elaborar ou criar (?) uma nova ordem – a burguesa
industrial. E a literatura se constituiu como contraponto necessário, que elucidava
novos costumes, novas relações sociais, novos comportamentos, novos valores;
criava identificações e apresentava ideias, teorias, discussões, argumentos,
contra-argumentos, exemplos, experiências.
Balsac,
Vítor Hugo, Stendhal, Charles Dickens, Jane Austen, Tolstoy, Flaubert, Eça de
Queiroz, lá na Europa, e José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Aluísio
Azevedo, aqui no Brasil, entre outros, construíram uma tradição narrativa em
que um narrador onisciente, linear, cronologicamente orientado, isento,
objetivo e predominantemente masculino entrou no lugar da “voz da tradição”,
digamos assim, e trouxe o necessário: aconselhamento, sentido, explicação,
orientação...
As
guerras mundiais do “pequeno século”, palavras com que, por contraposição,
Hobsbawm se refere ao século XX, instauraram o malogro da razão e,
consequentemente, da ciência e do progresso material. Por conseguinte,
instala-se o antitradicionalismo, ou seja, as novas gerações desfazem o que foi
feito pelas anteriores. Também a quebra da tradição romanesca aparece como
consequência: a fratura da lógica, da perspectiva, da linearidade narrativa, da
cronologia e mesmo do narrador; o aparecimento do monólogo interior, ou seja,
da narração não episódica; a transgressão do código da língua; a retração do
descritivo; a quebra das fronteiras entre realidade e imaginação; e o narrador
que não é onisciente, nem sabe contar bem a história são traços novos que
revelam uma nova ordem, cada vez mais complexa e cheia de conflitos e
encruzilhadas.
A
literatura parece não fazer parte desse novo século que substituiu
a palavra – o DNA do século XIX – pela imagem – o DNA do
século XX –, mas os roteiros submersos dos filmes e das propagandas, e os
inúmeros escritores que, apesar das dificuldades, deixaram suas narrativas
desconcertantes e desconcertadas apenas nos mostram que continuamos seres
narrativos e que nossos relatos são influenciados pelo tempo, ao passo que o
influenciam, como uma cobra que morde o próprio rabo. Sendo assim, continuamos
a contar histórias: Virginia Woolf, James Joyce, Durrel, Pasternak, Saramago,
João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos recontam, revelam,
tropeçam, perguntam, refazem, inquietam, mas falam do esgarçamento em curso da
hierarquia, da responsabilidade de quem não “sofre” um destino, da falta de
segurança, de certeza, de sentido... Em suma, o século XX carregou a ferida da
bipolaridade: o muro de Berlin dividiu o mundo em duas partes antagônicas
armadas até os dentes, e as palavras “igualdade” e “desigualdade” tiveram que
ser elaboradas.
O
século XXI − que começou depois da queda do muro de Berlim − nos impõe
ainda mais novos desafios, já que estamos lidando não só com a falência dos
conceitos bipolares do século XX, que não são mais suficientes para nos
localizar na realidade que nos cerca, mas também com atomização, fragmentação,
variedade e multipolaridade... Nesse contexto, a palavra que está sendo
elaborada é “diferença”.
Pois
bem: na década de 70 do século XX, o escritor Otávio Paz já adiantava a
resposta de nossa pergunta: ele afirmou que não vivíamos naquela época o fim da
literatura, de que tanto se falou, mas o fim da literatura moderna e suas
características – a ironia, o tema da metalinguagem e a supervalorização do
novo com a consequente quebra da tradição. E que uma literatura fora dos
parâmetros da do século XX estava sendo gestada, sem que se percebesse
claramente. Ele tinha razão. A literatura não morreu e apresenta-se forte no
século XXI.
Só
é difícil saber com que características. Mas estudiosos do assunto já adiantam
algumas: o “make it new” das vanguardas não é mais importante; a maioria dos
romancistas atuais (que escrevem livros volumosos) não busca mais transformação
inovadora da língua ou da técnica narrativa (volta, inclusive, a narração na
terceira pessoa) e usa os diálogos tradicionais e as descrições; os conflitos
econômicos deixam de ser centrais, e surgem novos − culturais, religiosos e
psíquicos; a ironia e a paródia deixam de ser utilizadas; a literatura começa a
ser empregada para afirmar particularidades, inclusive sexuais...