Meu novo normal - 1
Não é a primeira vez
que faço uma réplica a um texto de Flávio Brayner, que tem mania de me deixar
inspirada sem nem saber.
Dessa vez ele falou
da História e seus marcos divisórios (Invasões bárbaras, Grandes navegações...)
e da História das mentalidades e de suas tatuagens subjetivas e afetivas, o que
o levou a fazer uma reflexão sobre as idades em que sua vida é dividida e sobre
os critérios da divisão os quais seriam AMOR e MÚSICA.
Eu teria enorme
curiosidade de saber como ele divide a sua vida e por quê. Mas ele saiu de
mansinho sem dizer. Como sou uma cronista, esse ser que vive em voz alta, como
bem o disse Vinícius de Moraes, resolvi convidá-lo a se debruçar sobre a sua
biografia e nos dizer direito a divisão, na verdade dando a ele a minha
biografia e suas partes cujos, limites são AMOR e MORTE.
A primeira marca foi
uma mudança: eu morava na Boa Vista e “fui mudada” para Casa Forte quando tinha
onze anos. Fui morar numa casa enorme, que não combinava com a minha sobriedade
de sempre, e custou-me muito ser dela, se é que consegui. Acho que não.
Dessa casa eu saí aos
22 anos quando me casei, o que constitui minha segunda marca: lembro como achei
esquisito deixar meu pai, minha mãe e meus irmãos no terraço e partir para
outra parte de minha vida, acompanhada de um homem que eu amava tanto que não
via.
Um ano depois, tive
meu primeiro filho, que foi meu terceiro marco divisório. A mãe que nasceu com
aquele filho começou a intuir e a temer a solidão em que toda a maternagem
terminou por se concluir.
Dois anos depois,
nasceu meu segundo filho, num parto difícil e cheio de dores e choro, quase uma
antevisão do pior pesadelo de minha vida, que aconteceu no ano 2000: a doença
desse filho e as sequelas irreversíveis que até hoje marcam a sua vida e a
minha.
A morte de minha mãe,
o nascimento de meu terceiro filho e o desmoronamento paulatino do casamento
também foram marcos difíceis de viver. Talvez a mudança de dois filhos para São
Paulo possa ser um marco a se considerar, ainda não estou certa.
Na escala Richter,
esses acontecimentos foram terremotos oito ponto zero e fizeram de mim o que
sou: um conjunto aleatório de qualidades e defeitos, cercado por muros de medo
que, felizmente, não impedem a coragem de viver e o desejo de continuarem
fluindo nas minhas veias. Por meio de Flávio, constato que é uma tristeza a
mais a música ter se esquecido de moldurar os fatos de minha biografia.
Não entendo minha
vida, porém, como percurso de melhora ou amadurecimento, porque entendo nossa
História (e, portanto, a minha) não como linear e evolutiva, mas como produto
de um fazer possível e não perfeito – acho que fazemos História como somos: com
erros, acertos, recuos, avanços, violência e amor... E torná-la “sustância
narrável”, como disse João Guimarães Rosa, faz de nós o que somos. E nos
permite seguir, mesmo sem bússola.
Como prova desse percurso errático, há um último marco que rumino desde 2018: uma faca que, com perdões preventivos, declaro que apareceu dentro de mim.
(a Flávio Brayner, evidentemente)