quinta-feira, julho 29, 2010

"Guantanamera", de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío

“Olofin fez a vida, mas esqueceu de fazer a morte.
As pessoas viviam milhares de anos e seguiam mandando
segundo suas velhas leis. Tanto clamaram os mais jovens
que Olofin chamou Ikú, o qual fez com que chovesse trinta
dias e trinta noites. Tudo foi ficando debaixo d’água.
Só as crianças e os jovens puderam subir nas árvores
e nas montanhas mais altas. Depois que estiou, os jovens
viram que a terra reaparecia mais bela e agradeceram a Ikú.”

Revi, com um sorriso na boca e uma dor no coração, “Guantanamera”, dos cubanos Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío. Segunda parceria dos diretores, o filme é uma comédia triste, se é que essas duas palavras podem ficar juntas.
É um filme engraçado, porque traz cenas impagáveis sobre o cotidiano surrealista de Cuba, que lembra muito o “jeitinho” brasileiro, o qual, por sua vez, não pode ser só analisado de forma negativa, na minha opinião: ele é também um jeito criativo de sobreviver, apesar das circunstâncias políticas e econômicas adversas. Não é à toa que meu pai chamava esse filme de “BR-101”, referência à viagem desde Guantânamo até Havana, que é a coluna vertebral do filme, e à semelhança que tudo guarda com a realidade brasileira.
O enredo aparente é que uma grave crise de combustível se abate sobre a ilha (o filme é da década de 1990, depois da queda do muro de Berlim) e o transporte de defuntos se torna um problema a mais no dia a dia da população.
Então, Adolfo, um funcionário graduado, tenta recuperar seu prestígio abalado, formulando um complicado plano, com baldeação do defunto província a província, o que termina por embaralhar de tal forma os mortos que eles são confundidos e, no final, nos damos conta disso.
Esse personagem vive num mundo burocrático, violento, indiferente, ineficiente, autorreferente, falso, disfuncional e em ruínas, o que, com duas metáforas, o roteiro explicita – com a menininha, que anuncia mortes gerais, e com o mito de Olofin e Ikú, o qual, no meio do filme, do nada, aparece falado, acompanhado de imagens de cemitério e muita chuva.
Paralelo a esse, outro mundo é mostrado – o de Gina (esposa de Adolfo), Mariano (ex-aluno de Gina) e Cândido (ex-namorado, já velho, da tia de Gina, Yoyita, cujo corpo está sendo transportado) e todo o resto da população de Cuba, olhado com muita complacência pelos diretores, até porque eles entendem, fica sugerido, o relativismo moral e ético que é necessário para a sobrevivência.
Ariano Suassuna refere isso quando relata que compôs seus personagens pícaros a partir deste ditado popular que corre no sertão: “A astúcia é a sobrevivência do pobre”.
De fato, ao longo do caminho, tudo se vende e tudo se compra – alho, banana, porco, galinha... – não com a moeda oficial, mas com outra, mais próxima do dólar, que corre, invisível, porém real, no país. A contravenção corre solta e valida a vida.
Nesse mundo, ela, a vida, acontece, com seus dispositivos – o amor, a infidelidade, a traição, os relacionamentos, o perdão, o abandono, a solidão, os enganos... e... a morte, que poucos entendem como elemento desse conjunto.
A cena final sintetiza o enredo: em cima de um púlpito, Adolfo fala mentiras, enquanto Mariano e Gina fogem de bicicleta. Aí cai uma chuva, todos correm e aparece a menininha da morte, surda aos apelos por ajuda de Adolfo.
Quando meu amigo Samarone chegou de Cuba, me disse que o desperdício geral de nossa sociedade foi o que mais doeu nele, depois de testemunhar a penúria de lá...
É essa a parte triste do filme – a frustração; “a vida que podia ter sido e que não foi”; a pobreza; a adesão obrigatória à pirataria e ao relativismo moral; a realidade esquizofrênica com que a população tem de lidar; as fugas; as famílias partidas; as delações; a violação de direitos; os desvios de vocação e de profissões... tudo potencializa as dificuldades inomináveis de tão grandes da vida em si...

A Fariñas, que, com seu protesto pacífico e heroico, conseguiu, de outra forma, chamar a atenção da comunidade internacional sobre a violação de direitos humanos em Cuba. E ao povo cubano, com que, desde sempre, me identifico.

quarta-feira, julho 07, 2010

Meu perfume

Minha beleza despede-se
vergada de motivos...
Quilômetros de passado
condenam-me
à solidão...

Mas o que de melhor
se compôs devagar
em mim conspira
e, mesmo comprimido,
o desejo transborda.

Como rosa seca
que ainda exala
mais perfeito aroma
no leve pó demorado
que o tempo fez.

A senha é rara
como essa essência
que um vidro guarda
invisível.