sábado, dezembro 31, 2011

O aniversário de Clarice Lispector

− Dez  de   dezembro   é   o  aniversário  de  Clarice  Lispector,  disse-me  André  Resende,  há  cerca  de  três semanas.
Nós acabáramos de dar uma palestra juntos, com Lula Couto como mediador. E tínhamos, se bem me lembro, discordado em tudo. Eu falara das funções da literatura e de como os jovens não podem perder o contato com as narrativas, digamos assim, míticas de uma cultura. André Resende, com um jeito tímido e pouco didático, tinha denunciado a falta de um projeto de formação de leitores nas escolas do Recife e falado sobre como a literatura é sempre para muito poucos.
Houve um curto circuito na minha cabeça. Primeiro, porque dez de dezembro é o aniversário de meu pai; depois, porque me lembrei do século XIX, o tempo de ouro da literatura, de Victor Hugo, de Tolstói, autor que mais me ensinou até hoje, e de como os escritores, nesse momento, faziam as vezes de voz muda da consciência de um povo.
André continuou falando:
− O filho de Clarice Lispector, Paulo Gurgel, queria instituir “A hora de Clarice”, um projeto de atenção à obra dela, todo dia dez de dezembro. Vocês topavam levar isso adiante comigo, aqui na Livraria Jaqueira?
Eu e Lula topamos. Na verdade, atenção a escritores é a minha missão, eu não podia “amarelar”, como dizem meus alunos. Começamos devagar a organizar tudo, com os limites dos nossos temperamentos. Iara, uma fada lá da livraria, também assumiu conosco o compromisso.
Combinamos que as pessoas passariam e-mails para mim dizendo que conto ou crônica gostariam de ler. Pois havia uma hora inteira de leitura de textos de Clarice Lispector de manhã e duas horas à tarde, afora outras atividades: na “hora do conto”, evento de muito sucesso da Livraria Jaqueira, a contadora de histórias infantis iria narrar histórias de Clarice; os encontros mensais da União Brasileira de Escritores (UBE) e das “Frentes da Psicanálise” reservariam suas pautas para Clarice e sua obra.
Ao longo da semana anterior ao aniversário, principalmente, a lista virou uma sanfona – crescia, diminuía, as pessoas pediam para eu escolher, eu respondia que cada um escolheria o texto de sua preferência, elas escolhiam, desistiam, escolhiam outro texto... e-mail para lá, e-mail para cá...
Certas pessoas amam alguns textos de Clarice Lispector, queriam ler “aquele” conto, lamentavam quando ele já tinha sido escolhido, apontavam outro a contragosto. Eu tinha que ter cuidado, pois o caso de amor das pessoas com Clarice é poderoso; elas se identificam com as personagens, emocionam-se, conhecem as histórias, dizem que gostam dos lugares que ela refere, visitam-nos, tiram retratos, falam da praça onde ela morou, da fonte da praça, da escola onde estudou...
Há uma espécie de triangulação inexplicável entre a cidade do Recife, seus habitantes e Clarice, a qual não é de lugar nenhum, mas o canto a que mais pertencia era o Recife, como bem dizia. A cidade do Brasil que mais vende livro de Clarice é Recife, quem gosta de livros adora “Felicidade clandestina”, aliás, o livro inteiro é amado pelos recifenses; as crônicas, por seu turno, trazem-na ainda mais para perto de nós – ela nos fala de suas empregadas domésticas, de suas dificuldades financeiras, de seus amigos, de seus filhos adorados... e do Recife, a cidade de sua infância, esse momento que imprime em nós o que seremos.
Nós, recifenses, intuímos isso de uma forma não explícita, sabemos como nossa cidade faz parte daquilo que Clarice é e, em silêncio, gostamos disso, até nos orgulhamos disso, de um jeito reservado, como só os pernambucanos fazem. Como Clarice faz. Há uma rota de entendimento calado entre nós...
Chega o sábado, dez de dezembro, depois de algumas reuniões e e-mails. De manhã, tivemos um pequeno atraso, lemos alguns contos... As energias estavam ainda desarrumadas, as coisas correram apenas bem. Minha lista começou a dar errado.
Aí Clarice começou a agir. Fez André desistir de sua timidez e resolver ser o mestre de cerimônia durante a tarde e a lista começou a funcionar, não de forma objetiva, mas ao sabor dos ventos e do acaso. E tudo se encaixou.
Começamos a chorar juntos enquanto líamos, a rir juntos, a olhar um para o outro e saber o que queríamos dizer, o que o outro pensava ou sentia. As palavras de Clarice abriam caminhos entre nós, nossos corações começaram a bater no compasso do dela e nos entendemos, nos emocionamos juntos e falamos por ela, com ela, sobre ela e, ao mesmo tempo, sentíamos que ela falava conosco e nós nos sentíamos traduzidos, tocados, felizes...
Não deu tempo de todos lerem, mas ninguém se importou... Estávamos plenos de compreensão do outro, de nós mesmos... A plateia sentia essa sensação de alguma forma, havia uma coisa boa no ar...
Chegou a hora da palestra dos psicanalistas, que trouxeram mais compreensão, mais reflexão... As perguntas, depois da explanação, foram ótimas, os adolescentes presentes não ficaram inibidos e enunciaram perguntas, dúvidas, fizeram colocações...
Eu sei que somos uma babel. Não conseguimos nos entender, não porque falamos línguas diferentes, mas porque não somos tolerantes o suficiente com o outro e sua idiossincrasia. Muros, guerras, bombas, cercas, armas e seus conseguintes desastres traduzem nossas imperfeições, nossos defeitos, nossas impossibilidades, nossas incapacidades de conviver em harmonia. Eu sei.
Entretanto, no dia do aniversário de Clarice, lá na Livraria Jaqueira, vencemos essa torre. E conseguimos entender, perdoar, relevar, improvisar, fluir, falar, ouvir... ser!
É claro que havia a senha de Clarice, seus textos francos, sofridos, suados, molhados de lágrimas... humanos, enfim. E, através dela, nos aproximamos, sem medo uns dos outros.
O mundo é uma noite numa trincheira... mas, às vezes, num instante, compreendemos que Platão tinha razão e que, portanto, é possível haver um mundo diferente, habitado por pessoas melhores, que confraternizam e são felizes na sua trajetória. E que a arte é um código de acesso a esse mundo para o qual rumamos, inevitavelmente.
Não estamos seguindo na mesma velocidade, é certo; às vezes, nos perdemos pelo caminho. Mas o aniversário de Clarice é a prova: venceremos!

A Paulo Gurgel, André Resende e Clarice Lispector, que, de jeitos diferentes, me proporcionaram um dia bom!