sexta-feira, agosto 31, 2007

Minha Alexandria

Tenho recentemente pensado no que me fez, nos últimos anos, me afastar de mim mesma do jeito como o fiz. Anos a fio, afogada, minha perna presa à âncora de um navio afundado. Cada pensamento tinha uma razão e um porquê.
Mas também no que, devagar e sem plano, me trouxe de volta e aos livros, que são meu alimento mais recôndito e inenarrável.
Tenho resgatado de prateleiras sujas meus livros queridos e os estou limpando e relendo, três ou quatro ao mesmo tempo, me lembrando de mim mesma e do futuro que pensei.
Lawrence Durrel me devolveu sua Alexandria e, só de inveja, vou escrever sobre o Recife, o cenário da minha vida. Se, como diz o autor, “somos filhos da paisagem em que vivemos”, talvez comece a me reconstruir a partir da compreensão desta minha cidade – metade água, metade pedra.

O segredo do Recife é um dilema: é que na água se estende a pedra e, na pedra, a água, e essa natureza híbrida e anfíbia obriga dilemas sem solução. Essa indecisão (sua água é concha da pedra e sua pedra tem saudade da água) provoca suas enchentes, confronto infinito entre a pedra e o mar.
Seus mangues se vingam ou morrendo ou matando, duas mortes indecisas em zonas que se recompõem de surpresas e imprevistos.
Recife é assim... Seu nome vem daí: da pedra que acalma e enfurece o mar.
Sua semente é o porto que convida, que acolhe... Mas que é também partida. E na promessa pequena está contido o futuro: olhando a figura do porto, vejo a cidade estendida nos seus mapas desmantelados.
Vem do porto esta umidade clara na atmosfera; este suor salgado no corpo; este mofo nos armários; este cheiro acre nas narinas; esta sujeira sem remédio; estas mulheres austeras que esperam ou que desconfiam; estes homens que partem; estas mães sozinhas que miram o horizonte vazio; esta circulação errática de riquezas; esta dificuldade imprópria de conciliar desejo e amor; este excesso de pontes que não motivam encontros; esta falta de doçura que partiu com o açúcar.
A maior parte de nós veio por esse porto: senhores, escravos, ladrões; bodas, armas e credos; valores, costumes, sonhos... E o Recife - nem ibérico, nem islâmico, nem holandês, nem indígena, mas amálgama de tudo isso e mais coisas além - brotou, vendido, no porto por uma multidão de mascates.
Esta mania de opor-se? Nasceu das pancadas do mar contra as paredes das docas.
Este povo calado, que espera, contrito, o que chega do mar, também sabe partir, quando é necessário; também sabe voltar, mesmo quando é difícil. Coisa de quem nasce no porto.
Estas mulheres duras têm medo de dar-se de todo e de tudo perder: guardam um pouco de si, pois é obrigatório viver, apesar das partidas. Mas lavaram o chão do porto suas lágrimas constantes. Estes homens adúlteros são só meninos saudosos, vencidos pelo corpo. Precisam de muito perdão prevenido no armazém.
Este abismo absurdo entre as partes da cidade está no porto projetado: vieram navios negreiros e plantaram no cais o começo de tudo. Nasceu uma ferida sem cura na salmoura do ar.
A parte mais nova da cidade, que traiu esta herança do porto, segue inconsútil roteiro de descabida autonomia: palácios, shoppings, vitrines são apenas fachadas que, mentindo, disfarçam uma superficialidade desastrada. Porque uma árvore não trai sua semente impunemente.
Percebe-se, no entanto, processo lento de volta ao porto na cidade. Em silêncio, em longos domingos, o Recife caminha nas cercanias das docas, examina o mar, pisa no marco zero, estende feiras, oferendas, como a fazer um retorno para o útero que o concebeu. Terminará por conciliar as contradições que o formaram.
Esse porto, nossa bússola, é um erro magnífico que acertaremos a consertar.

domingo, agosto 12, 2007

Outra solidão

Tenho uma solidão
sem nome
embutida
num soluço.

Ela mostrou-se tarde
e devagar.

Muito dela
está na doença
do meu filho
ainda
em carne viva.

Não passa,
nem quando
conheço
outra mãe ferida –
uma dor
não paga outra;
cada uma tem seu tanto de
surpresa e injustiça.

A solidão dessa dor
é sem cura,
como o luto inconcluso
que vivi
e ninguém adivinha.

Chega a ser ingrato
dizer da solidão
dessa dor.
Mas só a mãe
entende
a que sabe
cada filho –
seu desejo,
seu esforço,
seu afeto.

Essa perda incompleta
todo dia
atravessa
e anoitece
meu dia,
entretanto
não o vence
de todo.

E há um filete
de mim
que sobrevive
perto das ruínas
molhadas de lágrimas.

Há muito, porém,
suspeitei
a solidão em mim.

Ainda menina,
já se anunciava
num absurdo
impulso de agradar.

Ainda arrasto,
sangrando,
a sombra desse erro
marchetado na vida.

E há um perigo
e um medo
dentro do meu gesto
de procura
e solução.